segunda-feira, janeiro 04, 2010

O Estado das costas largas

Estado levou 24 anos para pagar indemnização. É este o título de primeira página do Público, sobre um caso singular que o jornal relata assim, ainda nessa primeira página:

O Estado só agora aceitou indemnizar um doente infectado há 24 anos com VIH no Hospital de Santo António, e por intervenção do Tribunal dos Direitos do Homem. O doente morreu em 2001.”

Que caso é este e que notícia é esta que Público destaca? A gente vai ler o interior da notícia, onde se fala nas “agruras dos cidadãos quando ficam nas mãos da justiça” e repara nos factos relatados pelo próprio jornal:

Um cidadão foi infectado com VIH num hospital público em Janeiro de 1986, através de uma transfusão de sangue.
Em 1993 o Governo publicou um decreto-lei destinado a indemnizar os hemofílicos infectados com VIH.
Em 1996, o cidadão solicitou a indemnização ao Governo, mesmo não sendo hemofílico.
Durante um ano, o Governo não respondeu.
Em 1997, o cidadão recorreu à justiça dos tribunais administrativos, no Tribunal Administrativo do Porto, accionando o Governo.
Em 2000, o STA decidiu que o Estado não era parte do processo.
O processo voltou nessa data para o mesmo tribunal administrativo, em acção apenas contra o hospital.
Em 2005, o STA decidiu que nem o hospital era responsável pela infecção do VIH, pela razão de que na data dos factos, em 1986 o vírus nem era conhecido e por isso a transfusão não poderia ser considerada como “actividade extremamente perigosa”.
Perante a decisão, o advogado do cidadão recorreu ao tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Na pendência dessa acção, o Estado aceitou pagar a indemnização de 70 mil euros, por acordo.

Com base nestes factos a notícia é a que se pode ler. E os comentários que se podem aduzir são estes:
- É falso que o Estado tenha demorado 24 anos para pagar a indemnização, porque esta só foi pedida em 1996 e o Estado só se obrigou a pagar ( aos hemofílicos), em 1993. Portanto, quando muito o Estado demorou 13 anos a pagar e não os 24 da cacha.
Portanto, temos uma notícia com um título objectivamente falso, contra o Estado, mas não só. No interior da mesma dá-se conta das "agruras" dos cidadãos com a malfadada Justiça. Um "autêntico calvário" , no entender do jornalista José Augusto Moreira que assina a mesma.
As agruras começaram logo no facto de a acção proposta no tribunal administrativo, em 1997, ter sido "mal posta", como se costuma dizer.
Tendo sido posta contra o Estado, o STA, em 2000, quatro anos depois e em final de instância, o que não pode ser considerado anormal, decidiu que o Estado não era parte no processo.
Em função desse erro processual imputável ao cidadão, terá sido instaurado outro processo contra o hospital. Acção que se veio a revelar improcedente, (como acontece muitas vezes), em 2005 e em última instância. Portanto, cinco anos para decidir em última instância a nova acção, derivada de um erro processual originário, não parece anormal.
Perante a improcedência da acção e segundo o argumento apresentado- o vírus em 1986 não era conhecido sequer e por isso a responsabilidade do hospital só em termos objectivos se poderia configurar- o cidadão recorreu à justiça do TEDH. Argumento? Se os hemofílicos tiveram direito a indemnização especial, também os meramente afectados por transfusões o terão.
E o TEDH não chegou a decidir porque houve acordo.
E como teria decidido, poderá perguntar-se...? Mais: quanto tempo demorou até ao acordo? Será também um tribunal de calvários e agruras?
Enfim, uma notícia que apenas tem o objectivo de enlamear o vilipendiado Estado e de caminho os tribunais que são um calvário.
Ainda bem que temos um jornalismo assim, para redimir estas agruras.

Questuber! Mais um escândalo!