Daqui, InVerbis:
Fica sem efeito a decisão do Tribunal de Instrução Criminal de levar a julgamento o bastonário da Ordem dos Advogados por difamação a juiz.
O Tribunal da Relação de Lisboa anulou a decisão do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) em levar a julgamento o bastonário dos Advogados, Marinho Pinto, pelo crime de difamação agravada ao juiz Carlos Alexandre.
No acórdão da 5.ª Secção da Relação, de 18 de Dezembro, a que a agência Lusa teve hoje acesso, refere-se que é revogado o despacho do 1.º Juízo do TIC, de 12 de Junho de 2012, considerando os juízes desembargadores que Marinho Pinto não cometeu o crime que lhe foi imputado.
Num programa de televisão, o bastonário dos advogados proferiu declarações que o juiz do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Acção Penal) de Lisboa considerou difamatórias as afirmações de Marinho e Pinto a propósito da medida "desproporcionada de prisão preventiva".
Vejamos o caso singular. O acórdão da Relação que desautoriza a decisão do tribunal de Instrução Criminal que decidiu submeter Marinho e Pinto a julgamento pelo crime de difamação do juiz Carlos Alexandre, está aqui neste sítio e pode ser lido. O Ministério Público, aliás, tinha arquivado os autos inicialmente...
Este acórdão da Relação pronuncia-se sobre uma questão fácil de entender: havia ou não indícios suficientes para que Marinho e Pinto fosse julgado por aquele crime? É só isso. Não é o julgamento do facto imputado a Marinho e Pinto que está em causa mas apenas a ponderação jurídica de o mesmo poder ser submetido a julgamento criminal pela prática de um crime, no caso de difamação. Há ou não indícios suficientes para tal? Ou seja, será mais provável uma condenação do que uma absolvição perante os indícios do processo? É só isso e isso é muito porque outro tribunal poderia ter tomado decisão diversa da que este tomou. Basta essa consideração para se entender que a Relação não andou bem, porque quis julgar o facto liminarmente.
O tribunal da Relação, em acórdão subscrito por Margarida Bacelar e Agostinho Torres entendeu que não havia indícios suficientes para tal, ou seja para Marinho e Pinto ser julgado. Mas entrou em seara alheia, de algum modo porque não se lhe pedia que fizesse o julgamento dos factos, sem a prova toda exposta publicamente, designadamente acerca das motivação do bastonário para proferir as aleivosias que proferiu. Marinho e Pinto boquejou, como está habituado a fazê-lo e mais uma vez impunemente. Marinho e Pinto, a partir de agora tem carta branca para subir a parada e dizer mais e ainda mais gravoso do que tem dito. Até do tribunal da Relação e daqueles juízes em particular. E quem diz Marinho e Pinto diz outros- que aliás não faltam por aí. Porque o que lhe apeteceu dizer não foi só o que disse, entenda-se. Marinho e Pinto está comprometido com um grupo de indivíduos que governaram este país durante uns anos e foi apenas por isso que atacou o magistrado em causa, por motivos esconsos.
A prova? A fotografia de 8 de Setembro de 2009, da reunião cimeira na Ordem dos Advogados é apenas um indício, mas os restantes indícios permitem pronunciá-lo por esse facto de atentado à honra pessoal de um juiz, no meu entender. A bom entendedor...e no meu entender este acórdão pode, neste contexto, ser tão escandaloso quanto o que despronunciou o arguido Paulo P. no caso Casa Pia.
O acórdão contém partes interessantes sobre a essência do crime de difamação. Algumas delas:
"Porque
a questão é esta sendo já o momento de a introduzir: se o crime de
difamação protege um direito fundamental que é a honra havê-lo como
praticado pode contender com outro direito fundamental que é a liberdade
de expressão, para o que aqui interessa, na sua “faceta” de liberdade de opinião[viii]
(cfr os arts. 26º, nº 1 e 37º, nº 1 da Constituição). Por isso, a
contextualização assume um papel sobremaneira relevante. É na avaliação
concreta do caso que se deve procurar a imprescindível harmonização
entre os bens jurídicos eventualmente conflituantes obstando a que um se
sobreponha ao outro.
Nesta matéria, influenciando
naturalmente a jurisprudência nacional, o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos (TEDH), como refere Iolanda Rodrigues de Brito[ix],
ao interpretar e aplicar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos
(CEDH), nomeadamente o seu artigo 10º, tem desenvolvido uma doutrina de
protecção reforçada da liberdade de expressão quando o visado pelas
imputações de factos ou pela formulação de juízos de valor desonrosos é
uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou
público em geral. Interesse público, entenda-se, «enquanto conceito
normativo e não meramente ‘um interesse do público’» havendo de resultar
esbatida a identificação das pessoas envolvidas[x].
Essa influência natural que tem
vindo a aumentar é justificada pela circunstância de a CEDH vincular o
Estado português na ordem jurídica interna embora subordinada
hierarquicamente à Constituição, como reconhece parte expressiva da
doutrina e também a jurisprudência[xi]. E também, o que tem sido mais controverso[xii],
pela circunstância de o próprio TEDH se arrogar um «controlo europeu»
sobre se uma determinada restrição se conforma com a liberdade de
expressão[xiii].
Na análise e síntese que é feita por Iolanda Rodrigues de Brito sobre a jurisprudência do TEDH[xiv]
sobressai a ideia assente de que o debate de opiniões e a sua
divulgação relativamente a questões de interesse geral devem ser tão
amplos quanto possível ainda que sem ultrapassagem dos limites da defesa
da honra. Contudo, esses limites são também eles, por sua vez, muito
mais amplos quando o visado pelas opiniões for alguém numa veste
pública, fora do âmbito da sua vida privada, e não um simples
particular. A liberdade de expressão é válida para as opiniões que são
manifestadas através de uma linguagem forte e exagerada e que, por isso,
ferem, chocam ou incomodam[xv].
Esta orientação tem sido designada
como de «protecção forte, com limitação máxima, ou mesmo anulação total
da margem de apreciação nacional nas restrições ao exercício do direito
à liberdade de expressão» por contraposição à «protecção fraca» noutras
matérias em que se invoca violação da liberdade de expressão[xvi].
Estando em causa juízos de valor em matérias de interesse público o
TEDH «adopta uma posição de intervenção máxima e de sobreposição dos
seus critérios aos das decisões nacionais, nada deixando praticamente à
margem de apreciação nacional»[xvii]
(...)
A
par desta influência tem-se feito sentir também a da lição do Prof.
Costa Andrade que a partir da doutrina e da jurisprudência
constitucional defendeu[xxi] que devem «considerar
atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre
realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou
sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo,
quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto
a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às
realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa
dos seus autores ou criadores,
posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou do
desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a
carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica (…) que a atipicidade da crítica objectiva pode
e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias
públicas, com destaque para os actos da administração pública, as
sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as
decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e
o Parlamento». E que «a atipicidade da crítica objectiva
não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das
apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja
qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o
correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece
limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das
expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o
seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.
Defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como
reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do
visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes
dados de facto. Esclarece, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar
e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o
visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignando
expressamente que uma coisa é
criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor,
dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.» [xxii]
O que é que Marinho e Pinto disse publicamente, na tv, de grave e atentatório da honra daquele juiz? Isto:
“(…) Eu
acho que é manifestamente desproporcionada a prisão preventiva, essa
medida de coacção, relativamente quer à gravidade dos factos quer à
intensidade da culpa, isto, o crime em si não devia, não admite na nossa
Lei, prisão preventiva (…)”
“(…) Obviamente
reflexo de uma Justiça, de um funcionamento justiceiro próprio dos
tempos da Inquisição, isto é (…) o juiz faz o que lhe apetece, decide,
não tem limites na Lei, ele torce a Lei, adapta a Lei aos seus
preconceitos, aos seus medos, aos seus complexos, à sua idiossincrasia (…) Em
Portugal, as prisões são escolas superiores de criminalidade, as
pessoas saem mais criminosas do que entraram, portanto, atirar com uma
miúda de dezasseis anos e com um jovem de dezasseis anos para a prisão
isto é terrível”
“(…) Aliás, qual foi o crime do jovem? Foi ter filmado? (…)”
“(…) Por amor de Deus, isto é terrorismo de Estado! (…)”
O que diz a Relação e Margarida Bacelar em particular, sobre estas declarações incendiárias e boquejonas? Isto:
"Foi,
no fundo, o exercício do «direito a dizer coisas mal ditas» em que não
cabe a averiguação e prova da verdade do que se afirmou pois estamos no
domínio dos juízos de valor.
Apesar de tudo, o teor das
declarações em causa inculca a ideia de que se criticou a decisão
judicial, certamente, e o sistema de justiça mas não expressamente a
pessoa do assistente.
Note-se que nos factos descritos e
que valem como acusação o nome do assistente não é referido em parte
alguma. Nem sequer é indicado o tribunal que proferiu a decisão que o
recorrente criticou sendo apenas referido pelo assistente que interveio
no processo na sua qualidade de juiz de turno."
Traduzindo por miúdos: Marinho e Pinto é um asno, mas tem direito a sê-lo.
Mas a Relação, a meu ver, errou num pressuposto e por isso a sua decisão está errada na base: Marinho e Pinto atacou a pessoa do juiz que proferiu aquela decisão por ser aquele juiz e não outro. Essa é que será a verdade que não foi dilucidada e poderia sê-lo em julgamento e é aí que reside a essência grave deste crime de difamação. Os indícios suficientes da prática desse crime existem e deveriam ser analisados em sede de julgamento, o que o tribunal da Relação acaba de impedir, pronunciando-se sobre o fundo da questão, quando não o deveria ter feito. Este crime não exige sequer, para a sua verificação, o animus injuriandi, a vontade de ofender, mas neste caso ela existiu e reforçada e é a que o explica. Nada mais.
A Relação e Margarida Bacelar, aliás, entenderam bem o assunto. E como prova da aparente má consciência lá adiantam na decisão que...
As
expressões podem sem esforço ser tidas na compreensão do cidadão
mediano, atendendo ao seu valor literal, como dirigidas a um sistema de
justiça que permite que um juiz – um qualquer juiz – faça o que lhe
apeteça, que decida sem limites na lei que interprete e aplique a lei de
acordo com os seus preconceitos, os seus medos, os seus complexos a sua
idiossincrasia não se apresenta como um ataque à pessoa do assistente
no sentido de considerar que este haja tido uma atitude profissional de
deliberada parcialidade ou de desrespeito pela lei.
Mas mesmo que se possa considerar
que se trata de uma crítica directamente dirigida à actuação do
assistente no «horizonte de contextualização» a que já se aludiu é
também patente que ela se situa na área do seu comportamento
estritamente profissional e não atinge o núcleo da dignidade pessoal do
assistente. Nem sequer nela se descortina o uso de expressões
humilhantes ou susceptíveis de rebaixar a pessoa do assistente,
expressões que, então sim, ficariam excluídas da atipicidade da crítica a que alude a doutrina acima exposta.
E tais considerações não relevam de qualquer processo intencional. Marinho e Pinto, no contexto em causa, numa altura em que o juiz de instrução criminal visado foi alvo do ataque boquejão, tinha já proferido outras expressões igualmente injuriosas. Nomeadamente numa cerimónia pública, de abertura do ano judicial e sem citar o referido juiz deu plenamente a entender que ao mesmo se referia. A desembargadora em causa não pode dizer que não sabe disso e do que isso significa.
Assim, passar a ideia, no acórdão, de que Marinho e Pinto não ofendeu porque disse o que disse em modo genérico e como asno que foi, sem querer atingir a honra e consideração do visado, não é suficientemente sério de modo a que possa ser escrito num acórdão como expressão de uma Justiça de olhos vendados. E esta é uma crítica que faço, tendo em atenção os considerandos do próprio acórdão: a ampla liberdade de crítica, sem grandes entraves que não sejam os que resultam de uma subjectividade cujos limites confesso que não fico a conhecer porque o acórdão é pobre de considerações a esse respeito. E com o apoio sufragado das decisões recentes do tribunal Europeu dos Direitos do Homem.