domingo, maio 29, 2016

O Mº Pº e o Sistema segundo Nuno Garoupa

 Sapo24, entrevista a Nuno Garoupa:

Os resultados são, por isso, condicionados?
É evidente que a conclusão final da comissão parlamentar de inquérito do Banif vai ser completamente diferente da do BES, porque a maioria politica é diferente. Além disso, não há consequências. A verdade é que nesta questão da banca levamos mais de dez anos disto, desde o início do caso BPN, e não ainda não há uma condenação. Como é que possível? Porque há um dado objectivo: já queimámos 50 ou 60 mil milhões na banca. Esse dinheiro desapareceu e o facto de o sistema judicial não conseguir responsabilizar alguém, é um mistério.
Pergunto-lhe a si, que é professor catedrático, o que falha?
É evidente que temos um problema sério com o nosso sistema judicial. E que não é só uma questão de leis, de falta de legislação, do enriquecimento ilícito. Temos um problema com a prática da própria investigação. Independentemente das considerações que possamos fazer, se ao fim de dez anos o Ministério Público não consegue ter nenhuma condenação, devíamos estar a discutir o funcionamento do Ministério Público. Mas é uma discussão a que toda a gente foge.
Porquê?
Porque os partidos políticos têm pavor do Ministério Público. Porque têm medo que no momento em que se abrir uma discussão sobre como mudar o Ministério Público, além das acusações de estarem a tentar interferir politicamente, que vão ser imediatas, surjam algumas capas complicadas no Correio da Manhã.
Para si, onde está o problema?
Acredito que é um problema sério de funcionamento. Há um problema de recursos, o Ministério Público não está dimensionado para os recursos limitados que tem, e há questões que têm a ver com legislação: continuo a defender que devíamos ter o princípio da oportunidade, como os americanos ou os espanhóis e outros países europeus, plea bargaining, a denúncia premiada e toda uma série de instrumentos que não há porque um conjunto de sábios portugueses acha que não deve estar na nossa legislação.
 
Há casos complexos, mas existem outros sem grande complexidade cuja decisão está presa há anos. Os juízes não têm de dar satisfações sobre o seu trabalho?
O Ministério Público reclama independência e autonomia para fazer as investigações e a gestão processual, mas, depois, não presta contas a ninguém – o Conselho Superior do Ministério Público é uma entropia. Voltando à banca, se em dez anos não há uma condenação, tem de se prestar contas disso, mas, como se nota, quer as nossas instituições políticas, quer a sociedade não forçam essa discussão. Além disso, há uma série de situações e vários processos mediáticos, entre eles o do ex-primeiro-ministro, que se arrastam em nome de uma complexidade que não existe. Ou sabem de onde vem o dinheiro, ou não. Se não sabem, acabou. É diferente de um caso como o BES/GES, que só no Panamá tem 51 veículos, o que demora e exige capital humano, Não sei quantos procuradores têm formação para olhar para 51 veículos e perceber como aquilo funciona.
 
Essa é outra questão, o Ministério Público está preparado para estes casos?
Voltamos ao princípio: como é que ao fim de dez anos não há uma unidade dentro do Ministério Público com formação nesta área? Todos percebemos que, quando há uma aranha de 51 veículos, um leigo olha e não entende. Mas há especialistas que sabem. Porque é que o Ministério Público não pôs um, três, cinco procuradores a ter formação? A agravar, temos uma lei de prescrição extraordinariamente favorável aos arguidos. Há ainda a questão da coordenação com o Banco de Portugal, com as agências de regulação, com as Finanças, que faz com que o Ministério Público se queixe de que está à espera que a outra instituição faça a investigação da parte tributária ou da parte regulatória.
Em Portugal, grande parte dos casos transforma-se em megaprocessos. É prático ou útil?
Esta estratégia do Ministério Público é chocante. Em Espanha, o ex-vice-presidente do governo do PP, Rodrigo Rato, que já tinha deduzida a acusação em dois processos, vai a tribunal enquanto outros processos, todos relacionados, continuam a correr. É acusado de gestão danosa num processo, de uso fraudulento de cartões de crédito noutro, de fraude fiscal noutro, mas cada um vai a julgamento na sua fase. A estratégia de querer levar a pessoa a tribunal por tudo ao mesmo tempo faz com que tudo prescreva e acabe por não ser condenação por nada.


Quem pode mudar isso?
Terá de ser sempre um acordo entre os partidos. Não há outra forma de mexer no Ministério Público, porque se for uma tentativa de quem está no governo, quem está na oposição vai fazer o discurso habitual de que estão a interferir.
O facto de a Assembleia da República ter uma maioria de deputados advogados, é positivo ou negativo?
Isso até poderia ajudar, porque percebem o problema do ponto de vista jurídico e poderiam fazer a ponte entre o que a sociedade observa e a forma como o problema se resolve. Mas falta vontade, há medo de mexer no Ministério Público.
Encontrar uma solução é da conveniência dos escritórios de advogados?
Aí temos um problema: também não conseguimos regular o lobbying. Já tivemos tentativas, Pedro Lomba primeiro e agora o governo de António Costa disse que estava entre as reformas a fazer. Mas não é um problema fácil de resolver se os próprios deputados não forem exigentes e aquilo a que temos vindo a assistir é que não há exigência nenhuma.


Uma das propostas que circula, é que os advogados passem a apresentar ao parlamento a declaração de interesses, incluindo as sociedades de que são sócios ou clientes. É um passo no bom caminho?
Há muitas formas de fugir a isso, desde logo o advogado dizer que não é sócio, apenas associado ou consultor. Isto pode ir ao limite de se começarem a criar veículos para não se perceber quem é cliente de quem. E quando rebentar um escândalo em que se descubra que o advogado X é o tal, ele vai dizer que cumpriu a lei. Estas questões não se resolvem com legislação mais dura, resolvem-se com comportamento éticos.
A contratação pelo governo e entidades do Estado de advogados e escritórios de advogados quando têm os seus próprios gabinetes jurídicos faz sentido? Há até pareceres de uns contra os de outros…
No caso particular de Diogo Lacerda Machado, não vejo grande diferença com a contratação que Passos Coelho fez de António Borges, além do valor e do formato do contrato. São pessoas que não estão a tempo completo no Estado, acumulam com actividade privada, mas representam o Estado em processos muito complicados. Evidentemente que se criam todo o tipo de questões de conflito de interesses, de confidencialidade, de defesa dos interesses do Estado. Mas isto radica em várias questões: o Estado, nesta altura, já não tem os melhores recursos humanos na área do mundo jurídico.
Porquê?
Porque deixou desfazer-se deles nos últimos 20 anos. Podemos ter a teoria da conspiração, dizer que isso foi feito para favorecer os escritórios. Não sei se foi feito conscientemente, até acredito que não, com muita incompetência e laxismo pelo meio. Mas se o Estado deixar de contratar pareceres tem um problema, porque não tem arsenal jurídico para ganhar processos, para estar bem representado em negociações. Por outro lado, as sociedades de advogados estão numa zona cinzenta, fazem advocacia, mas também fazem lobbying, que não está regulado. Misturam-se as duas coisas e criou-se a palavra facilitador. É muito difícil desmanchar isto, porque é uma prática de negócio instalada.
Nos últimos anos, e é escandaloso, já não é só legislação complexa que vai para os escritórios de advogados, são as portarias ministeriais, o que é inconcebível.
Os escritórios podem, ou devem poder fazer tudo?
O Estado começou por dizer que há legislação de tal maneira complexa que é melhor pedir a especialistas. Até aí, todos de acordo, os códigos, no tempo do Estado Novo, também foram feitos por ilustres catedráticos de direito penal ou de direito civil. Mas essa legislação hoje é dada aos escritórios sem qualquer obrigação de, por exemplo, estes não exercerem advocacia nessa área durante dois ou três ou quatro anos e começámos a ver que enquanto o sétimo andar faz a legislação, o oitavo já está a aceitar os clientes. Não pode. Nos últimos anos, e é escandaloso, já não é só legislação complexa que vai para os escritórios de advogados, são as portarias ministeriais, o que é inconcebível.
Como contrariar esta tendência?
Defendi algumas medidas numa sessão em que estava o actual primeiro-ministro, que espero que tenha ouvido e faça alguma coisa. Uma das primeiras, seria o Estado criar uma unidade central que faz a adjudicação e que começa a filtrar e a dizer o que pode ou não ser feito fora: portarias não, alterações à Lei-orgânica não… Há escritórios a fazer leis orgânicas, que são para ser feitas pelos serviços jurídicos dos ministérios. E a unidade central, se for bem estruturada, também está em condições de negociar os honorários com as sociedades de advogados de maneira mais favorável ao Estado, em vez de serem os vários ministérios, secretarias de Estado, câmaras e governos regionais cada um por si. É por isso que vamos ao portal dos contratos públicos [Portal BASE] e ficamos espantadíssimos com os valores brutais. Mas isto são tudo paliativos.
O Banco de Portugal tem os seus serviços jurídicos cheios de gente, fazer as resoluções bancárias nos escritórios de advogados é uma coisa que não se percebe.
E a resolução do problema?
A resolução é complicada. O Estado teria de fazer um investimento a dez anos e recuperar quadros jurídicos que acabassem com esta situação. Devo dizer que ter escritórios de advogados praticamente montados nas instituições do Estado não é uma situação comum noutros países europeus. O Banco de Portugal, por exemplo, fazer outsourcing das sociedades de advogados da sua própria litigância, é uma situação que não acontece nos outros países da Europa. O Banco de Portugal tem os seus serviços jurídicos cheios de gente, fazer as resoluções bancárias nos escritórios de advogados é uma coisa que não se percebe. No entanto, não passou pela cabeça de ninguém dizer que os escritórios que fazem resolução bancária estão inibidos de praticar direito bancário durante os próximos cinco anos. Há aqui um conjunto de conflitos de interesse que são óbvios, mas de difícil resolução.
Falou em ética. E quando não há ética, ou quando a sua ética é diferente da minha?
Podemos fazer leis mais estreitas em relação aos períodos de nojo, por exemplo, mas se as pessoas quiserem dar a volta à lei continuam a fazê-lo. O problema é que a sociedade portuguesa não é muito exigente. Não vale a pena falar em nomes populares, mas há várias pessoas que publicamente se fazem facilitadores e continuam aí sem qualquer problema social, já nem digo legal ou de outra natureza, em vez de ficarem afastadas durante anos.


Premiar e punir, os portugueses têm dificuldade em tomar decisões?
Penso que sim, com consequências que, a prazo, podem ser complicadas. Se olharmos para Itália ou para Espanha, e falo nestes países porque têm muitas parecenças com Portugal, há um antes e um depois. No caso italiano há o antes e o depois de 1992 e, apesar de haver muita corrupção, há muita gente punida. Em Espanha, há um antes e um depois de 1996, também com muita corrupção, mas muita gente punida. O nosso problema é que ainda estamos no antes e não há meio de chegar ao depois. Mesmo os processos mediáticos são estranhíssimos porque, em geral, ao contrário do caso italiano e espanhol, são processo pessoais, nunca são partidários.
quero perceber como é que um primeiro-ministro pode, segundo o Ministério Público, estar envolvido em branqueamento de capitais e em corrupção sem que isso envolva outros altos cargos do partido
Como se alguém pudesse agir sozinho o tempo todo?
Nunca está em causa o financiamento dos partidos, por exemplo. Em relação ao processo do ex-primeiro-ministro, estou com algum interesse em ver como é que vai acabar, porque quero perceber como é que um primeiro-ministro pode, segundo o Ministério Público, estar envolvido em branqueamento de capitais e em corrupção sem que isso envolva outros altos cargos do partido. Isso não foi possível no Partido Popular Espanhol, não foi possível no PSOE, não foi possível em partidos italianos. Em Portugal acontece. O nosso sistema está a dar os primeiros passos, fazem-se acusações a pessoas, mas nunca se põe em causa mais nada e isso mostra, mais uma vez, que não há exigência da sociedade.
Ninguém viu…
Ninguém viu, ninguém sabia. Dou um exemplo que descreve o país político: nas suas memórias, o professor Cavaco conta que no princípio dos anos 90, na comissão política do PSD, era Dias Loureiro secretário-geral, quando se falava de financiamentos ele [Cavaco] saía da sala. Ou seja, saiu da sala, não há responsabilidade. E isto é ainda em 2016 a forma de pensar: saí da sala, não vi nada, não sei nada, não sou responsável. Mas toda a gente sabe que alguma coisa se passa ali, toda a gente desconfia.
um conjunto de elites que começa a ter um problema (...) como fazem vida meramente partidária, não estão integradas nos grupos mais inovadores da sociedade e, por isso, não há ideias
Ainda há elites em Portugal?
Havemos de ter sempre elites, o que temos é umas elites muito depauperadas economicamente e um conjunto de elites que começa a ter um problema – não quero dizer que as elites políticas estão mal preparadas -, que se nota mais à direita do que à esquerda, que é o profundo fosso entre as lideranças partidárias e as elites nas outras áreas do saber. Há 30 anos as pessoas tinham carreiras empresarias, académicas, na cultura ou outras. Havia uma fluidez entre as várias elites que hoje não há. Hoje, como fazem vida meramente partidária, não estão integradas nos grupos mais inovadores da sociedade e, por isso, não há ideias. Não havendo ideias, temos powerpoints de dez folhas sobre a reforma do Estado em que a única coisa que se apresenta são cortes.


Comentário:

Nuno Garoupa põe o dedo na ferida aberta que temos há muitos anos e os media não conseguem vislumbrar claramente. Com jornalistas do tipo Felgueirinhas ou mesmo a Lourença, nunca conseguirão ver a ponta de um corno. Têm-se como estrelas de um universo às escuras de uma ignorância atroz que julgam iluminada pelos cursos de jornalismo que frequentaram.

Não há sindicância dos temas que Nuno Garoupa aqui levanta em claro porque esses jornalistas nem sabem o que são esses problemas. Quem não sabe é como quem não vê, lá diz o povo.
Temos por outro lado o fenómeno curioso, tipicamente jacobino: nos bastidores da política vale tudo, desde que não apareça nas primeiras páginas dos jornais, como o Correio da Manhã, o Independente da actualidade. E se aparece é apenas porque se descobre uma incoerência ou uma imparidade legal de pormenor, geralmente. E nesses pormenores se joga tudo deixando de fora o essencial. O exemplo mais flagrante é o caso Sócrates que tresanda a corrupção do sistema e que envolve as grandes empresas do país que já foram vendidas ( et pour cause) como a PT e a EDP, para além de outras e os maiores bancos como a CGD, o BCP e o BES/GES. O caso BPN ao pé destes é um menino de coro que foi apanhado a roubar berlindes aos colegas que roubam as mercearias.
O caso Sócrates é impressionante por causa dos advogados que têm, pela desfaçatez de que dão provas e que espelha o sistema processual penal que temos. Uma obra de catedráticos de Coimbra ( Figueiredo Dias e Costa Andrade) que com as melhores intenções gizaram uma outra geringonça que está avariada na função principal de conduzir ao destino os passageiros mas que garantem ser da melhor qualidade possível e que só precisa de óleo ou de centralina actualizada.

Nuno Garoupa aponta o dedo ao poder político e tem razão, evidentemente. As soluções político-criminais que foram encontradas ao longo dos anos, desde 1987, têm sido patrocinadas por certas forças políticas que precisam de alterações a preceito, como no caso da Casa Pia. Sempre sob a capa da defesa dos direitos, liberdades e garantias de todos menos dos lesados e ofendidos.

E que dizer da "bête noire" Ministério Público? Mais uma vez plena razão a Nuno Garoupa, embora com nuances.

O Ministério Público segundo Garoupa é a bête noire do poder executivo e do poder político dos partidos em geral. Tal acontece evidentemente porque os partidos políticos em geral e em particular os do "arco governativo" têm telhados de vidro muito frágil e de natureza criminal. Financiamentos, corrupção, favores, jeitos, cunhas, tráficos de influência, etc etc. Tem-se a noção quando se fala off record com responsáveis políticos que há um mundo paralelo que escapa aos cidadãos e jornalistas que sabendo disso não relatam, não denunciam e não expõem. Porquê? Porque são cúmplices por qualquer motivo: ou por afinidade político-ideológica ou por interesse futuro ou por mera ignorância prática de problemas que não querem entender.

Ora o que Garoupa não diz claramente é que o Ministério Público também tem um medo que se pela desses políticos. Tem medo de que os mesmos sejam assessorados pelos advogados do costume que colocam entraves escondidos nas entrelinhas da jurisprudência casuística de certos desembargadores comprometidos e que deveriam ter sido reformados após a passagem em locais da política. Tem medo de fazer má figura nos processos que investigam e andam como o rei que vai nu, pensando que conseguem fazer as omeletes com ovos podres e apresentam por vezes resultados temerários ou de consistência duvidosa.

Para compreender o que Nuno Garoupa diz é preciso conhecer mesmo sumariamente o que é o MºPº e o que pensam de tal instituição aqueles que fizeram as tais leis penais e isso foi objecto  dos primeiros postais que aqui escrevi, em 2003.

A maior criminalidade do país no capítulo económico e da corrupção passa pelo DCIAP que é um departamento criado pelo antigo PGR Cunha Rodrigues, na sequência de escândalos de corrupção que envolviam os mesmos de sempre e que andam por aí, passeando-se nas tv´s como se nada fosse com eles, contratando políticos saídos de governos ( sim, estou a referir-me à Mota-Engil e a Jorge Coelho, por exemplo, mas há outros). Escrevi em 2012 aqui um postal sobre este MºPº de Cunha Rodrigues e o fantástico combate à corrupção que envolveu um amigo do peito de Dias Loureiro e que foi o primeiro director do...DCIAP.

Tudo o que então ficou escrito deu em águas de bacalhau.  Garoupa aponta o dedo ao MºPº: " é um problema sério de funcionamento. Há um problema de recursos, o Ministério Público não está dimensionado para os recursos limitados que tem, e há questões que têm a ver com legislação: continuo a defender que devíamos ter o princípio da oportunidade, como os americanos ou os espanhóis e outros países europeus, plea bargaining, a denúncia premiada e toda uma série de instrumentos que não há porque um conjunto de sábios portugueses acha que não deve estar na nossa legislação."

Inteira razão. Porém, apesar de tudo, o MºPº está melhor agora do que há uns anos, na altura em que teve a direcção de uma Cândida de Almeida ou Pinto Monteiro. E porque é que o MºPº não funciona ainda melhor e suscita reservas a Nuno Garoupa e outros que também percebem o problema desse modo, incluindo este escriba?

Um dos motivos principais é a organização interna do MºPº. É uma máquina que tem as suas regras de funcionamento e que tem vindo a refinar um poder jacobino que assenta numa legalidade estrita e levada ao extremo numa intervenção que é castradora de veleidades avulsas.
Se tal é apanágio do rigor democrático acaba também por ser  perverso uma vez que transforma em funcionários desmotivados os magistrados que apenas cumprem segundo as regras, sem mais.
Há dois exemplos que mostram o problema: os comunicados da PGR sobre casos pendentes e o exercício disciplinar sobre os magistrados.
Basta ler o teor dos comunicados da PGR sempre que se suscitam notícias de interesse publicado ou público para se notar o temor atávico e por vezes subtilmente aterrorizado dos mesmos perante certos poderes de facto. Uma magistratura assim está refém de salafrários e isso é fatal.
Basta ver o que sucedeu ao dirigente do sindicato dos magistrados do MºPº, com um procedimento disciplinar, sancionado pela própria PGR, por ter cometido um lapso de expressão no caso do processo do Marquês, para se perceber o terror difuso infundido em cada magistrado em concreto se tiver a veleidade de se pronunciar mal sobre determinado assunto.

O CSMP, o conselho superior de gestão dos magistrados que é composto por várias pessoas ( 17) de proveniência do poder político e dos magistrados tem funcionado como o órgão de controlo que impõe a cada magistrado o espectro de um processo disciplinar, sempre que qualquer magistrado sai fora do risco, real ou imaginário, precedido de inquéritos de inspectores do próprio MºPº que apresentam sugestões de penas disciplinares aterradoras ( perdas de vencimento, com as suspensões de funções, multas, demissões, etc etc).
Poderá questionar-se se isto não deve ser mesmo assim, mas como em tudo deve existir um modus in rebus. O clima que se cria com estes procedimentos não favorece a actividade do MºPº e isso é negativo. É um clima que é vivenciado por mais de mil e quinhentas pessoas em funções e é uma das armas mais úteis para os delilles e companhia.

O que se torna interessante é saber que os titulares do poder político executivo que deveriam ter como lema a ética e a legalidade também estrita olham para isso como algo inatingível, indesejável e irrealista. E actuam como se não estivessem abrangidos por esse rigor democrático. O episódio contado por Garoupa acerca de Cavaco sair das reuniões partidárias sempre que Dias Loureiro começava a falar de financiamento é exemplar disto que escrevo.

Os magistrados, esses, estão vinculados a papéis oficiais, a relatórios oficiais, a despachos oficiais, a tramitações oficiais, a prazos oficiais e a regras oficiais. Tudo o que saia disto não existe para um magistrado e se for desrespeitado é alvo de sanção disciplinar porque um magistrado é agora, mais que nunca,  um funcionário.

Como tal e porque não tem formação específica em direito bancário ou de seguros, em direito médico, em direito de ambiente ou em direito rodoviário socorre-se de especialistas para lhe darem a conhecer o que entendem sobre casos concretos. E os relatórios apresentados são precisamente isso, de especialistas que assim são tomados como o nec plus ultra do entendimento sobre as matérias.
Tal acontece no direito tributário e infracções fiscais em que a investigação e análise dos factos fica a cargo dos departamentos governamentais das Finanças ou de qualquer crime grave cuja investigação fica a cargo de polícias que dependem directamente do Executivo, tendo autonomia táctica para tal, como é o caso da PJ.

E que faz o MºPº nos seus gabinetes com aquele aparato subjacente? Torna-se juiz do inquérito assim realizado, sem veleidades que coloquem em causa a sua função. Acusa ou arquiva segundo a sugestão daqueles peritos e assim fica.
Há excepções? Haverá, mas são mal vistas por inspectores que olham para tal serviço anos e anos depois.

Nuno Garoupa cita o caso da ausência de especialistas em determinadas matérias como o direito bancário e questiona: "como é que ao fim de dez anos não há uma unidade dentro do Ministério Público com formação nesta área? Todos percebemos que, quando há uma aranha de 51 veículos, um leigo olha e não entende. Mas há especialistas que sabem. Porque é que o Ministério Público não pôs um, três, cinco procuradores a ter formação?"

Porque é que não pôs? Boa pergunta porque a resposta a ela dá a imagem do MºPº que temos. A resposta quanto a mim é esta: ninguém, no MºPº, desde a PGR até ao estagiário que entra ao serviço depois de ter passado pelo CEJ, se importa verdadeiramente com isso, por causa do fenómeno exposto.

Há uns cursos rápidos de formação de magistrados, uma espécie de workshops que decorrem geralmente às sextas-feiras em comarcas de todo o país, sobre diversos temas específicos e técnicos. Esses cursos, obviamente são úteis, mas insuficientes para tal. Uma especialização em direito bancário leva seis meses em pós-graduação de fim de semana na Universidade de Coimbra e é pago com propinas a condizer. Muito caras.  Os brasileiros parece que gostam muito desses cursos. Em Portugal se um magistrado quiser especializar-se em tais matérias paga do seu bolso e depois só será aproveitado se estiver no lugar certo, que é tomado por concurso...ou seja, provavelmente nunca.

Pode concorrer para o DCIAP? Poder, pode, agora. No tempo daqueles dois era por convite avulso e sem critério especial. Mas se viver fora de Lisboa tem que pagar estadia na capital e ninguém lhe pagará ajudas de custo para ir ver a família ao fim de semana. Se colocar o problema ao CSMP dir-lhe-ão por escrito, depois de longa deliberação com votos contra e a favor  que afinal não tem direito. Se lhe dessem esse direito seria um desaforo porque toda a gente iria querer o mesmo...

Nuno Garoupa: vá para os EUA e esqueça este país de funcionários da legalidade que não conseguem fazer melhor que isso deixando à solta quem deveria estar preso e manietando os que poderiam fazer algo por isso.

8 comentários:

Rui Verde, Pedro Garcia Rosado, Matilde Montgomery, João Dias e outros disse...

Desculpe a impertinência,mas gostava de dar nota do seguinte: amanhã, segunda-feira, dia 30 de Maio, o Nuno Garoupa apresenta na FNAC CHIADO ás 18:30 o livro que escrevi "Os Três Magníficos. Sócrates,Lula e José Eduardo dos Santos. Vida e negócios paralelos".
Cumprimentos,

josé disse...

Estaria lá, se pudesse.

contra-baixo disse...

Prezado José,

Detive-me na seguinte resposta que escapou ao seu comentário:

"Em relação ao processo do ex-primeiro-ministro, estou com algum interesse em ver como é que vai acabar, porque quero perceber como é que um primeiro-ministro pode, segundo o Ministério Público, estar envolvido em branqueamento de capitais e em corrupção sem que isso envolva outros altos cargos do partido."

Sublinho o "segundo o Ministério Público".

Conhecendo, como razoavelmente conheço, pergunto também eu - dado o modo de funcionamento das administrações pública e local, em que tudo anda abaixo e acima, à superior e inferior consideração, como é que pode, de facto, não também estarem envolvidos outros altos cargos dessas administrações.

Temo, sinceramente, que ao ser uma investigação de sobremaneira focada no homem esta não vá acabar por borregar, acabando por ser nós, os contribuintes, a ter de pagar os estragos.

Não adianta apontar aos advogados de JS, eles estão simplesmente a fazer o trabalho deles, se bem ou mal tudo depende do desfecho.

Saudações.

José disse...

O problema do aparecimento do crime em modo de autoria implica um dolo. A co-autoria também. A cumplicidade, bem, talvez não seja assim.

A administração pública é conivente com certos crimes mas faz como o Cavaco com o Dias Loureiro: saem da sala quando se discute o modus operandi.

Quanto aos parceiros de governação é igual aos macaquinhos que não sabem não vêem, não ouvem e não cheiram...

José disse...

E depois aparecem os tais advogados que, claro, "fazem apenas o seu trabalho".

Pois sim.

contra-baixo disse...

A administração pública é conivente com certos crimes mas faz como o Cavaco com o Dias Loureiro: saem da sala quando se discute o modus operandi.

O problema é esse, as Administrações são parte do modus operandi e se não pecam por acção fazem-no por omissão. São os primeiros a por o rabo de fora sacudindo a responsabilidade para os políticos (e estes para aqueles).

José disse...

Por omissão a equiparar a uma acção só se tivessem um dever de garantir a não produção do resultado e o omitissem.

Não me parece fácil de equacionar tal questão jurídico-penal.

contra-baixo disse...

Compreendo o ponto de vista, no entanto esse é o argumento que os autores em crimes de corrupção e afins usam para se defender - que foi cumprida a lei, que nos "papeis" se demonstra a conformidade legal. Há tempos dizia-me um agente da PJ que analisa processos de contratação pública que estes, do ponto de vista do cumprimento das formalidades, não têm quaisquer vícios.
A questão é que se os dirigentes substituíssem a sua acção por uma considerada lícita (e o CCP e CPA, por exemplo, dão respostas em relação ao que é uma acção lícita) e houvesse inversão do resultado isso, para mim, seria mais do que suficiente para os chamar à responsabilidade criminal (na responsabilização sancionatória e reintegratória isso já acontece, e ninguém questiona).

O Público activista e relapso