quinta-feira, maio 26, 2016

Vital Moreira, o democrata contra a liberdade de expressão

Vital Moreira no Económico:

De facto, a liberdade de expressão não fica de modo algum diminuída só porque se tem de respeitar o direito ao bom nome dos outros. A liberdade de expressão não abrange a liberdade de injuriar ou de difamar outrem. Não precisa.

1. Suscitou uma reação negativa nos círculos jornalísticos a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que, num processo cível, condenou um militar que acusou publicamente o então candidato presidencial Manuel Alegre de “traição à pátria”, por este ter apoiado a luta de libertação das antigas colónias portuguesas. Mas, a meu ver, a crítica não tem fundamento.

A Constituição reconhece e protege, à cabeça dos “direitos, liberdades e garantias pessoais”, o direito à integridade moral das pessoas, incluindo o direito ao bom nome e reputação. Por isso, quando o Código Civil, em sede de “tutela geral da personalidade”, protege as pessoas contra ofensas à sua personalidade moral – onde a doutrina e jurisprudência não têm dúvidas em incluir a proteção do direito à honra e ao bom nome – e quando o Código Penal prevê e pune os crimes de difamação e de injúria, ambos se limitam a sancionar a ofensa dos referidos direitos fundamentais garantidos na Constituição.

Trata-se de direitos fundamentais universais – que as pessoas não perdem quando se tornam políticos – e que valem também nas relações entre particulares. É certo que nos media prevalece a ideia de que, por definição, os políticos não têm nenhum direito à honra nem ao bom nome; mas além de ser pedestremente demagógico, esse “racismo” antipolítico é profundamente antiliberal.

Ora, a acusação de “traidor à pátria” é uma mais infamantes que se podem fazer a um político, até por constituir a imputação de um crime grave, sobretudo quando ela não tem nenhum fundamento, como sucede no caso concreto, visto que manifestamente não se verificavam os pressupostos legais do referido crime.

2. É verdade que um certo fundamentalismo dominante nesta matéria, com apoio numa infeliz jurisprudência do TEDH de Estrasburgo, atribui proteção quase absoluta à liberdade de expressão quando os alvos são políticos.

Mas tal como todos os demais direitos fundamentais, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, sofrendo limitações derivadas da proteção constitucional de outros direitos fundamentais – como o já referido direito ao bom nome e reputação e o direito à privacidade, entre outros –, e de outros interesses constitucionalmente protegidos, como o segredo de Estado ou o segredo de justiça.

Absolutizar a liberdade de expressão para justificar todo o tipo de ofensas à honra alheia, só porque se trata de políticos, traduz-se em aniquilar, sem nenhum cabimento constitucional, aqueles outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos. De facto, a liberdade de expressão não fica de modo algum diminuída só porque se tem de respeitar o direito ao bom nome dos outros. A liberdade de expressão não abrange a liberdade de injuriar ou de difamar outrem. Não precisa.

Sendo indiscutivelmente um dos pilares essenciais de uma ordem liberal – como expressão da liberdade de pensamento, como manifestação do pluralismo ideológico e político e como meio de denúncia dos abusos dos poderes estabelecidos, públicos ou privados –, a liberdade de expressão não deve porém fugir à regra clássica segundo a qual a liberdade de uns deve parar lá onde ela lesa a liberdade dos outros.

Por conseguinte, não existe nenhuma razão para defender a imunidade – que rima com impunidade – das ofensas jornalísticas aos direitos de personalidade de outrem em nome da liberdade de expressão. Muito menos se justifica qualquer alinhamento corporativista neste fútil combate.



Comentário:

Antes de 25 de Abril de 1974 Manuel Alegre seria julgado pelo crime de traição à pátria se fosse apanhado em Portugal. Estava refugiado na Argélia onde fazia propaganda política de incitamento à deserção dos militares portugueses que combatiam no Ultramar que então era território nacional. Traição mais clara que esta é difícil de encontrar.

Artº 171º e 172º  do Código Penal de 1886:





É claríssimo que à luz da legalidade vigente na época em que Manuel Alegre incitava à subversão contra o regime de então ( Salazar e Marcello Caetano) incorria na prática do crime correspondente à noção de traição à pátria.

Não constitui por isso qualquer injúria chamar-lhe traidor, porque o foi  e sendo tal facto a verdade não pode ninguém ser condenado por tal.
A não ser que a traição à pátria deixasse de o ser por obra e graça de um golpe militar ocorrido em 25 de Abril de 1974 que apeou o regime então vigente. Nessa altura, as pessoas que se encontravam presas por terem praticado actos idênticos aos que Manuel Alegre praticou fora do território nacional mas com plena expressão radiofónica no interior do mesmo, e com o efeito aqui produzido, deixaram de poder ser punidas criminalmente por isso. No entanto, formalmente e de acordo com a lei vigente só a amnistia subsequente eliminou tais factos do domínio das infracções penais puníveis. Eliminou a punição mas não apagou o facto ocorrido...

Uma das primeiras medidas da Junta de Salvação Nacional e do Movimento das Forças Armadas foi precisamente essa: amnistia imediata de todos os presos políticos «salvo os culpados de delitos comuns».


Afirmar como o tenente-coronel piloto aviador Brandão Ferreira o fez e por isso foi condenado na Relação de Lisboa, em acórdão relatado pelo desembargador Antero Luís, antigo director do SIS, que Manuel Alegre foi um traidor à pátria não é injurioso, não é difamatório nem é falso.  É apenas a expressão da mais pura verdade perante o critério que então existia quando os factos foram praticados.

Manuel Alegre deixou de ser traidor à pátria depois de 25 de Abril, ipso facto?  Só se o novo regime tivesse a virtualidade de legitimar retroactivamente todos os que foram opositores ao antigo, transformando-os nos verdadeiro patriotas e todos os demais portugueses que apoiaram Salazar e Caetano classificados ipso facto como verdadeiros traidores.




Ora isto é insuportável teórica, prática e perante qualquer senso comum. Excepto para Vital Moreira, o eterno malabarista dos conceitos relativos.



E ainda há outro problema: é ilegítimo defender o antigo regime ao ponto de quem o defende ser apodado de fassista  ou quiçá traidor à pátria democrática?
Quem continua nos dias de hoje a defender o antigo regime não pode chamar traidor a quem então o atacava incorrendo em práticas criminalizadas?

Que liberdade democrática será essa que se equivale à que então era restringida por lei?  É proibida nos dias de hoje a liberdade dessa expressão de opinião?

É sobre isso que o TEDH irá certamente pronunciar-se. Vital Moreira, esse, já o fez negando tal liberdade. Diz que é democrata...

Questuber! Mais um escândalo!