Decorre no Estoril um evento notável organizado pela "sociedade civil" com impacto mediático assinalável.
Para saber em que consiste realmente tal evento, a identidade dos participantes e até a dos promotores não se deve procurar a informação nos jornais porque não a trazem. Depois queixam-se muito da internet e coisas assim. No entanto, só na internet é possível saber quem organizou tais conferências, quem foi convidado e os respectivos temas, além do mais.
Seja como for, ontem falaram na dita conferência quatro juízes que se notabilizaram em anos recentes nos respectivos países: Antonio Di Pietro na Itália; Baltazar Garzón em Espanha; Sergio Moro no Brasil e Carlos Alexandre em Portugal.
O convite a Carlos Alexandre decorre naturalmente dessa notoriedade e que resulta em parte de um fenómeno parolo que o mesmo denunciou: o de ser apelidado de "super-juiz" pelos jornalistas super-parolos da nossa praça. Não foi o juiz quem lhes chamou parolos, mas são na mesma porque não percebem o papel e função de um juiz de instrução no sistema jurídico-penal que temos. O próprio juiz explicou que é o Ministério Público quem detém o poder de investigação criminal e não o juiz de instrução. Ao contrário dos restantes juízes presentes, vindos de outros países, em Portugal não compete ao juiz de instrução dirigir o processo penal mas apenas assegurar o cumprimento pelo MºPº e opc dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos envolvidos, mormente suspeitos e arguidos. Isso é muito mas depende sempre da iniciativa do MºPº. Quando uma escuta chega ao JIC já passou antes pelos OPC e MºPº; quando um JIC aplica uma medida de coacção é a requerimento do MºPª; quando um JIC faz uma busca domiciliária, idem aspas.
Isto que é básico no conhecimento do processo penal ainda não chegou ao saber da parolice reinante no jornalismo nacional.
De algum modo compreende-se porquê: os jornalistas, em geral, têm cursos médios e quando são superiores são de média categoria, ou seja, de comunicação social, ministrados por outros jornalistas formados sabe-se lá como. Alguns, os antigos, eram bons por serem muito capazes na profissão, quando esta se limitava a escrever o que é básico: quem, o quê, como, quando, onde e porquê, relativamente a factos simples e de compreensão comum.
Portanto, em matéria jurídica são raros os jornalistas que percebem o mínimo, embora o panorama esteja a mudar muito depressa, particularmente de há uma dúzia de anos para cá, no rescaldo de casos como o Casa Pia e outros que envolveram políticos, área em que estes jornalistas se especializam em pouco tempo, com os usos e costumes das redacções mediáticas. A política é o caldo de cultura deste jornalismo caseiro e parece que sempre foi pelo historial dos jornais que podem ser consultados cronologicamente. Tudo o que se lhe associe tem cobertura mediática garantida e enviesada pela certa, também segundo os usos e costumes caseiros.
A prova está mesmo no que se passou ontem nas conferências do Estoril. Os três jornais mais importantes relatam assim os acontecimentos.
Primeiro o CM que relata o essencial em poucas linhas e várias fotos.
Depois o Público que relata numa página a mesma coisa com mais ademanes e chama a Carlos Alexandre "o juiz mais conhecido o país" dando eco à recomendação "esta coisa do super-juiz tem de parar!"
Por fim o Diário de Notícias que escolheu caminho diverso: após um pequeno texto introdutório que diz a mesma coisa que aqueles dois dos outros jornais, entrevista dois juízes, o italiano e o espanhol. O texto é da responsabilidade de Carlos Rodrigues Lima que é um dos exemplos mais positivos do jornalismo judiciário evolutivo. Aprendeu muito em pouco tempo e já tem fontes seguras para lhe explicar o que precisa.
Então o que é que falta neste jornalismo judiciário e porque é que continua a ser parolo, de algum modo? Por um motivo: para saber jornalismo é preciso saber mais que jornalismo. Muito mais. E isso sabiam alguns dos antigos...
No Estoril os oradores deste ano são às dezenas e alguns deles sabem mais dos fenómenos que estes juízes falaram ontem, sobre corrupção, colaboração processual com vantagens asseguradas e até sistemas judiciários comparados e respectivas diferenças.
Ouvir "operadores judiciários" sobre estes fenómenos é importante, mas não essencial. Para tal é preciso ouvir quem pensa nestes assuntos há anos e percebe melhor como se articulam.
O "princípio de Peter " ultimamente muito arredado dos media como expressão corrente, paradoxalmente manifesta-se nas notícias que correm, por culpa do jornalismo que temos, com profissionais que deixam muito a desejar. Ontem as tv´s, todas elas, desprezaram olimpicamente o assunto das conferências dos juizes e mostraram o que sabem fazer melhor: ouvir especialistas da bola em programas de prime time e horas contínuas. Julgam que é isso que o povo gosta...pelo "share" que outros profissionais lhes dão a conhecer. Àquela hora quem tem a tv ligada necessariamente vê o que lhe dão e como todos lhe dão o mesmo, os "shares" são avassadalores...
Quem conhece melhor a corrupção são os envolvidos nela e não necessariamente quem a combate processualmente: políticos em prè-reforma e que deram uma perninha em certas empresas ou advogados de "grandes escritórios", particularmente os que mais falam contra a corrupção.
Quem tem melhores conhecimentos sobre o respectivo combate são os mestres do passado, os romancistas, os pensadores de outrora e os que a souberam combater com instrumentos eficazes, mormente em forma de lei e os aplicaram efectivamente. A cultura real do conhecimento humano é talvez o mais importante para se perceber tal fenómeno.
Ouvir quem a combate processualmente é tornar a escutar o velho fado de sempre que cansa ouvidos cansados.
Dito isto, um regime que obriga um magistrado como Carlos Alexandre, titular de um órgão de soberania sempre que intervém na qualidade de juiz de instrução num processo, a justificar-se com todo o cuidado e mais algum, dizendo que pediu autorização ao CSM para falar ali e que nenhuma das alusões que fez se refere a qualquer processo singular ou que teve de justificar uma ausência de uma tarde ao trabalho, a fim de evitar rasteiras que alguns dos seus pares estão sempre à espera para o poder tramar de vez, é um regime que tem um sistema de justiça celerado, mesmo que seja uma democracia. Um regime decente não procura controlar os seus juízes singulares através de um órgão de gestão, dito democrático porque tem lá representantes de partidos e facções políticas.
É uma vergonha e duvido que algum dos outros juízes presentes tenham efectivamente percebido a razão das justificações do aludido juiz. Duvido que tenham percebido a verdadeira natureza dos conselhos superiores das magistraturas, hoje em dia e do carácter instrumental que revestem para controlar efectivamente o poder judicial.
Mais que aludir à corrupção ou à "delação premiada" ou mesmo ao problema da liberalização do tráfico de droga, foi isto que o magistrado em causa implicitamente acabou por dizer de modo mais uma vez cifrado e que muito poucos terão entendido, mas é isto que verdadeiramente é preocupante na actual situação da justiça portuguesa: a composição e funcionamento dos conselhos superiores das magistraturas e o modo como acabaram instrumentalizados para determinados efeitos em prol dos interessados de sempre e do costume, ou seja da verdadeira corrupção.
Haja alguém que deite a pedra para o charco porque a situação está a tornar-se perigosa e preocupante no modo de funcionamento destas super-estruturas, para a independência dos magistrados individualmente considerados.
Ninguém fala, actualmente, nas magistraturas. É um verdadeiro império do medo que se propaga a um ritmo mais rápido que as conquistas do outro Alexandre, o Grande, da Antiguidade.
Os poucos que escrevem nos jornais fazem-no em modo quase temerário e sobre assuntos anódinos. Os sindicatos ocupam-se de trivialidades e o essencial da função vai-se exercendo com este carácter deletério que me parece perigoso para a própria essência da democracia.