"Evocar Marcello Caetano é, antes do mais, recordar o homem e o amigo de minha família, desde o final dos anos 3o do século passado.
O homem. Impoluto no carácter, determinado na personalidade, austero, aparentemente distante e frio, inteligência rigorosa e metódica, grande sistematizador e expositor, cultura clássica e moderna sólida, de claro pendor francófono, facilidade e recorte estilístico na escrita.
Na intimidade, ainda, afectivo e atencioso, muitas vezes nos mais pequenos pormenores. Sempre de uma persistência (aqui e ali talvez teimosia) de um critério meticuloso no trabalho, de um sentido de responsabilidade pessoal, cristã e cívica marcada por uma educação conscienciosa, uma carreira inicial a pulso, uma militância católica e de serviço comunitário (de que a Conferência de S. Vicente de Paulo foi exemplo), marcada pela doutrina social da Igreja e o neotomismo. O amigo de família desde o final dos anos 30. Mestre de vida e superior do meu pai.
Na Mocidade Portuguesa, onde o teve como colaborador e ajudante de campo até 1944. No Ministério das Colónias, onde beneficiou do seu secretariado até 1947. Novamente, conselheiro no Governo, nos anos 6o, Marcelo Caetano como ministro da Presidência, meu pai como subsecretário de Estado da Educação Nacional.
Ou, no início dos anos 70, Marcello Caetano presidente do Conselho de Ministros e meu pai ministro de várias pastas. E, antes e para além de tudo isto, com sua mulher, a inexcedível Teresa Barros, filha do escritor e pedagogo liberal João de Barros, padrinhos de casamento de meus pais (em 1947), seus filhos Ana Maria e Miguel padrinhos de meu irmão Pedro, em 1955, e eu próprio devendo-lhe o nome, apesar de Marcello Caetano ter entendido que o padrinho deveria ser da geração do pai e não mais velho do que ele (escolhendo Camilo de Mendonça). Como não lembrar a narrativa que me chegou da lua-de-mel de meus pais em S. Martinho com carro emprestado pelos padrinhos, os sucessivos Natais na velha casa junto ao Camões, os passeios na Quinta do Linhó, as sugestões dadas no liceu, a apreciação de trabalho do 5° ano sobre a Constituição Francesa de 1791, as obras oferecidas estimulando (e pesando decisivamente) na ida para Direito, os sábados à tarde na Choupana (entre 196o e 1966, ouvindo, a sua tertúlia política), o rigor com que impôs o afastamento da Choupana e do convívio pessoal enquanto fui seu aluno (de 1966 a 1968), o modo paternal como me acolheu em jantares semanais entre 1968 e 197o, na ausência moçambicana de meus pais?
São centenas de episódios ou histórias familiares, que continuaram no Brasil, onde, no Rio de janeiro, Marcello Caetano conviveu com meus pais e meu irmão Pedro, e de onde respondeu a cartas minhas até à sua morte, em 1979.
Mas, para além desta dimensão pessoal - sem dúvida a mais importante para mim e minha família -, como não lembrar a do cientista e professor de Direito, a partir da década de 30? Cientista, que criou uma verdadeira Escola de Direito Público na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, escola essa que teria como seus sucessores André Gonçalves Pereira e, depois, Diogo Freitas do Amaral, e influenciaria, de modo impressivo, o ensino de Direito Administrativo na sua Faculdade, na da Universidade Católica, na da Universidade Nova de Lisboa, na do Minho, na do Porto, assim como a legislação e a jurisprudência mesmo após 1974.
Embora tendo cultivado o Direito Constitucional, a Ciência Política, a História do Direito, o Direito Internacional Público, o Direito Colonial e Ultramarino, o Direito Comparado, o Direito Penal e até a Economia Política e a História da Filosofia Política, foi o Direito Administrativo o seu domínio de eleição, cabendo-lhe a fundação da correspondente Ciência, em termos globais, desde o Curso, depois Manual, de 1936. "
Este retrato de Marcello por Marcelo Rebelo de Sousa, ( um com um L a mais e outro a menos...) hoje [12.8.2006] no Expresso e que se estende nas páginas da Actual num artigo insosso de 4 colunas e várias fotos, assinado por Manuela Goucha Soares, vale o seu significado. É a primeira vez, que me lembre ( e tenho boa memória arquivada) que se pode ler este desvelo quase familiar e intimista por Marcello C., vindo de Marcelo R.S. Em trinta anos( não teve tempo antes, lê muito...), chegou a vez da verdade afectiva se sobrepor a uma verdade funcional? Haja Deus!
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