domingo, janeiro 28, 2018

A história do coelho guisado com especiarias

Há outra passagem no texto da entrevista ao  historiador de coelho guisado que impressiona pela inteligência aguda que transcende:

" Sobretudo nos alvores havia uma adesão ao regime de uma parcela significativa da população". Ou seja, o tal conformismo, afinal era mesmo feito de uma adesão convicta a Salazar que o historiador do guisado entende desmistificar. E fá-lo assim:

"Vemos a encenação da Exposição do Mundo Português. Não havia nada igual. Já imaginou o que era ver aquilo naquela época? As pessoas vinham a Lisboa e diziam: "Que império que somos...! As pessoas estavam seduzidas por aquela mística colonialista que aliás vem da I República".

Portanto, a tal Exposição foi apenas um artifício propagandístico do regime para consolidar o "conformismo" e épater le bourgeois.

Ora vejamos se assim terá sido.

Qual é o nosso maior feito histórico? Qualquer araújo de escola primária o sabe: demos "Novos mundos ao Mundo!"

Em 1940 perfaziam centenários entre os oito séculos da nossa nacionalidade e da nossa soberania. Procurou-se então afirmar clara e robustamente a Fé presente e a Gloria passada, como então se disse.

É isto apenas uma obra de propaganda política ou uma representação cultural do maior relevo, envolvendo todo o povo numa Nação como a nossa?

Qual é a nossa maior obra da Literatura? Qualquer araújo da primária o sabe: Os Lusíadas. Também serão uma obra de propaganda?
No livro do finais do século XIX e que serviu até bem dentro do século XX ( a minha edição é a 14ª...), Manual Encyclopedico para uso das escolas de instrucção primaria, do Conselheiro Achilles  Monteverde, dizia-se assim de Camões: "Príncipe dos poetas portugueses, a quem a língua portuguesa deve as suas maiores belezas e a nação a sua glória" .

Enfim, este desgraçado, com este tipo de atitudes solertes o que pretende, de facto? Mostrar-se rebelde e inconformista? Enfim, novamente.

Alguns recortes de época para nos situarmos no tempo então vivido, o tal de "conformismo e obediência".

Em 1de Setembro de 1939 a Alemanha invadiu a Polónia e começou a II Guerra Mundial. O SI de 23 de Setembro mostrava na capa como fora:


O editorial de Guedes de Amorim mostrava bem o sentimento geral da geração ainda jovem, perante o que viria aí: o que o povo em geral queria paz e foi isso que não teve durante vários anos, naquela época. O espectro da guerra pairava nos espíritos dos jovens, cujos pais tinham assistido a uma guerra mundial mortífera e sem precedentes. O articulista escreve que "O Século XX não tem deixado viver a minha geração". E vinha aí outra guerra que então nem se calculava o custo e que seria ainda mais pesado que o da Primeira.
Salazar era nessa altura uma garantia de paz, não de conformismo.


 Em Junho de 1940, já com a Guerra em plena actividade destruidora,  a Celebração dos nossos feitos históricos era mais que razoável e estimável. Não era propaganda para entreter conformistas.


Em Fevereiro de 1942, a França caíra nas mãos dos alemães e a Século Ilustrado de 14 de Fevereiro mostrava assim, com uma capa em que destacava as eleições do presidente da República, Carmona, então reeleito. 


 

 Por outro lado, na mesma edição dava-se conta que os franceses resistiram como puderam...mas não chegou.




O que fez então Salazar, perante o espectro da Guerra? Tentou evitar que nos envolvêssemos...
Em  Fevereiro de 1942, logo após a queda da França, foi falar com Franco, à Espanha, como mostra esta edição do S.I. de 21 de Fevereiro desse ano.  [Está errada a data da "queda de França" que ocorrera em 1940. Este relato de Amadeu de Freitas é publicado nesta edição da revista que é de 14 de Fevereiro de 1942. Não fui verificar e dei por assente que o jornalismo de então era tão rápido como o de hoje...de resto pouco altera o que escrevi quanto a Salazar e à sua atitude perante a guerra]
Salazar saiu poucas vezes de Portugal, esta foi uma delas e talvez a mais importante:





Depois disto tudo continuar a vincar o carácter "obediente" no sentido de submisso e "conformista" no sentido de não rebelde, ao povo português de então, é no mínimo miopia histórica. Uma receita de coelho guisado, com rabanetes e especiarias em vez da tradicional.

Questuber! Mais um escândalo!