domingo, setembro 08, 2013

Jornalismo só



O Público de ontem trazia um artigo de página, anunciado na primeira como "Só 6% dos incendiários florestais condenados tiveram prisão efectiva." 
O título engana o leitor ao mesmo tempo que revela um dado estatístico, objectivo, por causa do advérbio "só" que deveria ter valor de adjectivo. As estatísticas dizem apenas o que revelam as aparências e são por isso eventualmente enganadoras.
Nota-se pelo artigo que o advérbio surgiu por interpretação estritamente estatística dos números  frios que revelam matematicamente que entre 2007 e 2011, foram condenados 6% dos imputados e julgados pelo crime de incêndio.
Quem coloca o advérbio do poema "só" num artigo destes deveria acompanhá-lo de significados precisos para revelar a estranheza adjectivada.
Tal como o poema, as decisões dos tribunais são sempre solitárias porque relevam  de sentenças gizadas por juízes sós, acompanhados apenas por dois guias interiores e invisíveis cuja inefabilidade é a essência dessas decisões: o Direito e a Justiça.
Só quando se compreende o sentido dessas decisões concretas é possível acompanhar os artigos de condimentos essenciais à compreensão adjectivada. Para as entender, é necessário, no mínimo,  ler as mesmas e perceber como se formaram.
Ora uma estatística raramente apresenta tais condimentos e a chave para os compreender reside necessariamente num trabalho exaustivo e complexo de análise casuística que o jornalismo não pode fazer de um dia para o outro, por muitas chamadas telefónicas que realize em tempo record de fecho de edição. E tal jornalismo não pode ser da bola ou do jogo, cujos lances todos podem ver.
Daí, perante essa dificuldade, o arbítrio do advérbio e a desinformação imanente. O anti-jornalismo a espreitar por onde menos se espera porque servido com dados de factos objectivos.
Uma conclusão apressada revela que os tribunais aplicam penas lenientes para crimes de incêndio e que apenas em 14 processos, em quatro anos,  o não terão feito. 
Como explicar então a aparente objectividade dos números? Como sempre, pelos pormenores, onde se esconde o diabo da falsidade se não for detectado a tempo.

Objectivamente há uma moldura penal razoável para este tipo de criminalidade: 12 anos de prisão no máximo e caldeada por nuances de comportamente e ilicitude, segundo o artº 174 do Código Penal:

1 - Quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2 - Se, através da conduta referida no número anterior, o agente:
a) Criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado;
b) Deixar a vítima em situação económica difícil; ou
c) Actuar com intenção de obter benefício económico;
é punido com pena de prisão de três a doze anos.
3 - Se o perigo previsto na alínea a) do n.º 2 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos.
4 - Se a conduta prevista no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
5 - Se a conduta prevista no número anterior for praticada por negligência grosseira ou criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos. 



As estatísticas, como se reconhece no artigo, não reflectem a distinção entre incêndios dolosos e negligentes. É de presumir que aqueles 14 condenados o foram pela prática de crime doloso. Ainda assim, se perigo para bens pessoais e patrimoniais for criado por negligência, a pena pode ir até 10 anos de prisão.
As estatísticas mostram que no período indicado, entre 233 condenados, 113 o terão sido com penas suspensas na sua execução, ou seja, prisão que fica em tempo de espera pelo bom comportamento futuro dos condenados.

No artigo, dois entrevistados consideram que os tribunais aplicam penas com pouca severidade, nestes casos. Objectivamente assim parece- e será?  Um dos entrevistados considera que "as penas deviam ser exemplares". Exemplares porquê? Pela gravidade do crime, objectivada em quê, exactamente? No sentidmento colectivo exacerbado pelos media? Se o for só por isso não deveriam nada ser exemplares porque a vox populi, aqui, funciona como vox minor, de interesses que se fixam em complexidades jornalísticas cuja simplificação nos leva a crer que são apenas conjunturais e de calendário noticioso a preencher ao modo de encher chouriços: estofo noticioso para noticiários da noite e primeiras páginas que vendem. Objectivamente quem é o único  vencedor das parangonas incendiárias e das imagens televisivas de fogos com chamas dantescas? Apenas os donos que exploram os media. Com prejuízo a meu ver evidente, para a sociedade que não necessita de imagens fortes de incêndios a lavrar em todos os noticiários televisivos como se tal fosse equivalente a uma volta a Portugal. Não necessita porque o efeito de réplica criminosa parece evidente e desnecessário. Os jornalistas não pensarão assim, mas se pensarem melhor talvez mudem de ideia e aceitem a censura das imagens destes casos. Sem imagens não há espectáculo e não haverá incentivo aos actores do mesmo.
Outro dos entrevistados entende que os tribunais são benevolentes na aplicação daquelas molduras penais. Serão mesmo? E poderá dizer-se que os tribunais, neste como noutros casos, tendem a "desculpabilizar, aceitar e contextualizar?"
Objectivamenta assim parece, pelo número estatístico. E realmente? Quem frequenta profissionalmente os tribunais pode ter a ideia precisa que perante um arguido concreto, acusado de uma acção concreta, perante uma discussão concretamente limitada por uma acusação concreta e com circunstâncias a discutir que superam em larga medida o que costuma ser notícia de primeira página,  tal acontece. Os tribunais portugueses são constituídos por pessoas que avaliam os actos e a culpa de quem julgam. E esse tal julgamento é terrivelmente solitário e depende necessariamente daqueles guias citados, frequentemente condicionados pelo meio, pelos media em casos contados, pelas circunstâncias da discussão em julgamento e pela idiossincrasia do sistema em si próprio, gerada pela rotina, hábitos profissionais e contexto judicial geral, ou seja pela jurisprudência habitual e conhecida ao longo dos anos de profissão.
Nesse panorama conjunto parece correcto afirmar que os tribunais portugueses são geralmente benevolentes para com arguidos. Tendem mais à compreensão da culpa do que à justificação das condutas, mas a balança pende geralmente para a caridade judicial, porque as discussões ao vivo dos factos concretos que afectam pessoas, congregam vários factores que só em imediação de audiência se compreendem. Sendo esse um sentimento difuso, como se altera o mesmo para um maior equilíbrio do Direito e da Justiça do caso concreto nestes casos de incêndios florestais?

Vejo uma solução se tal problema existe: precisamente a atenção mediática sobre os julgamentos e não sobre as detenções como acontece na generalidade. Precisamente em artigos como este, cuja utilidade pode surtir efeito entre as poucas dezenas de milhar de leitores que o leram. E o resto da população?
Se uma sentença penal condenatória deve reflectir a apreciação concreta da culpa de um indivíduo também tem que ponderar, para além do mais,  um princípio de direito penal que é o da prevenção geral, ou seja o factor de dissuasão publicamente transmitido pelo tribunal ao povo em geral, em nome de quem se aplica a Justiça.
Ora como é que tal princípio pode ter algum relevo se a decisão é transmitida quase em solitário numa sala de audiências vazia de público, na presença ( quando o seja) de um arguido que até pode residir longe da comunidade local e portanto com um efeito quase nulo de prevenção geral porque ninguém dará conta da condenação, depois de ter dado conta da eventual prisão preventiva ocorrida geralmente mais de um ano antes de tal condenação?
Conta-se que actualmente há para cima de cinquanta pessoas detidas por suspeita de incêndio, fogo posto como dantes se dizia.  Quantas dessas pessoas irão ser efectivamente condenadas? Que efeito de prevenção geral pode existir se ninguém saberá ao certo quando tal sucederá e porquê?
Tal é a prova de que os media não estão particularmente interessados em sindicar a actividade dos tribunais a propósito de advérbios de quantidade. Estão interessados em preencher espaço informativo.
Que o façam então com rigor, isenção e objectividade. Aquele advérbio mata estas qualidades...porque é a essência da notícia e do recado jornalístico desnecessário no caso concreto.