Contactada pelo Observador, a assessoria de imprensa da defesa de Sócrates assegurou que a ação judicial não visa impedir a publicação de notícias sobre o processo mas sim “impedir a devassa da vida privada do eng. José Sócrates que é feita diariamente pelo jornal Correio da Manhã”.
Questionada sobre se serão interpostas outras providências cautelares que visem outras publicações, a mesma fonte oficial garantiu que “neste momento, só o grupo Cofina é visado. O que não impede acções semelhantes caso outras publicações venham a seguir o mesmo caminho que as publicações da Cofina”, concluiu a mesma fonte oficial.
Portanto o que está em jogo neste momento é a possibilidade de um qualquer cidadão, visado em notícias que o afectam impedir judicialmente a publicação de tais notícias através de um mecanismo judicial chamado providência cautelar de natureza cível.
O estratagema configura objectivamente um acto de censura e atentado à liberdade de imprensa e informação se vier a ser deferida tal providência.
O que diz o CM de hoje sobre isso? Pouco e num editorial o jornalista Eduardo Dâmaso expõe o ponto de vista redactorial.
Segundo refere o jornal a proibição abrange "despachos e promoções do MºPº documentos, decisões das autoridades judiciárias competentes e transcrições ou o teor de conversas alvo de intercepções telefónicas".
Ou seja, em rigor e ao contrário do que dizem os promotores da iniciativa o jornal nada pode publicar sobre o assunto, nem sequer escrever que José Sócrates é suspeitos da práticas de crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção, como o faz na edição porque tal lhe fica vedado.
Será legítimo e legal?
O que é uma providência cautelar desta natureza? Aliás, que natureza tem esta providência cautelar? É "inominada"? Parece certo que se baseia em questões de ofensa a direitos de personalidade, assunto complexo e que já foi tratado em tribunais. Para se ver a extensão da complexidade basta ler aqui, este estudo académico.
Para se perceber o essencial basta citar um acórdão. Este, de 2003, e relativo a um cidadão anónimo, com este resumo:
— Segundo o Ac. do STJ, de 26 de Setembro de 2000 (SILVA SALAZAR)(38), a aplicação do art. 335.º do Cód. Civil conduz a que a liberdade de expressão não possa atentar, em princípio, contra o direito ao bom nome e reputação, salvo quando estiver em causa um interesse público que se sobreponha àqueles e a divulgação seja feita de forma a não exceder o necessário a tal divulgação;
Citando aquele estudo publicado pela OA e da autoria de Tiago Soares da Fonseca:
Além do recurso à responsabilidade civil, o art. 70.º, n.º 2 do Cód. Civil consagra como tutela da personalidade as providências preventivas e atenuantes, consoante o estado em que a ofensa se encontrar.
O recurso a estas medidas depende do preenchimento de certos pressupostos(72). Vejamos quais.
Em primeiro lugar, exige-se a ocorrência de um facto ilícito que tanto pode consistir numa ofensa consumada, como numa ameaça. Ao contrário da responsabilidade civil, não se exige que o acto ilícito seja cometido de forma culposa. Apenas releva o facto ilícito e não qualquer juízo de censura que se possa fazer sobre o agente. Assim, tais providências poderão ter lugar em situações puramente objectivas(73), sem prejuízo de se poderem também aplicar em situações culposas. Por outro lado, relativamente às providências preventivas, ao contrário do que sucede com a responsabilidade civil, não se exige a existência de dano. Basta a simples ameaça para a elas se poder recorrer.
(...)
Segundo CAPELO DE SOUSA(78), com o qual concordamos, para que se possam requerer as providências preventivas, não basta a ameaça da personalidade física ou moral. É ainda de exigir, apesar de a lei não o dizer, «que seja significativo o mal cominado e ponderável o receio, o medo ou a perturbação pela sua cominação.» Caso contrário, o recurso a tal providência poderá ser considerado abusivo (art. 334.º do Cód. Civil).
Ora nesta perspectiva tudo indica que o assunto deve resolver-se em sede de ponderação entre o interesse particular do visado em não querer que sejam publicadas notícias sobre uma situação processual penal concreta, em que o segredo de justiça já não existe, na prática e quem tem acesso aos elementos do processo tem legitimidade para dá-los a conhecer e por outro lado o interesse público evidente na informação pública e publicada sobre tal assunto que aliás é relativo a crimes em que qualquer cidadão se pode constituir assistente no processo e auxiliar o MºPª.
É esta a questão que a providência cautelar propõe.
Quid Juris?
O grupo Cofina abusou desse direito? Vai abusar desse direito? Pois isso é que é outra questão que tem que ser ponderada judicialmente. Noticiar o teor de despachos das autoridades judiciárias ou de qualquer elemento de prova existente nos autos é abuso da liberdade de informação? Noticiar o teor de transcrições telefónicas que obrigatoriamente dizem respeito a assuntos do processo e não contendem necessariamente com a vida privada embora com ela possam estar relacionadas é abuso desse direito e ilícito?
Não me parece que um tribunal de natureza cível se possa pronunciar facilmente sobre tal assunto e muito menos que decida em contrário ao interesse público evidente e notório que se evidencia em múltiplas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Dar provimento a estas providências, sem fundamentação sólida e indiscutível significará abrir a porta a que qualquer um que se julgue ofendido com publicação de notícias sobre a sua pessoa, mormente qualquer político ou cidadão que exerça funções públicas, possa requerer a censura completa de notícias sobre si.
No limite legitimaria que o próprio MºPº viesse requerer providências cautelares nos processos com vista a garantir com injunções pecuniárias a não publicação de matérias em segredo de justiça que apesar de constituirem crimes as respectivas medidas penais se afiguram manifestamente ineficazes.
Portanto, que tal uma censura assim constituída, sob a capa da defesa de direitos pessoais de arguidos excelentíssimos que só actuam precisamente por causa disso?
Aliás, porque razão não requer o MºPº idêntica providência a fim de calar efectivamente os advogados de defesa de tal arguido que têm insultado pessoalmente os magistrados do processo? Há alguma diferença notória no caso?
Enfim, esperemos que apareçam os Charlies que se manifestaram em Janeiro pela liberdade de informação, mas pelos que hoje se pode ler nos jornais, com excepção óbvia do JN ( do amigo Camões que soube logo do assunto...) nem uma linha se pode ler e muito menos editoriais de charlies indignados com esta Censura efectiva e com a caução do poder judicial.
Sobre o segredo de justiça, velho cavalo cansado da batalha que alguns hipócritas ainda travam, deve dizer-se o seguinte:
o segredo de justiça interno acabou de alguma forma com o acórdão dos desembargadores Rangel/Caramelo.
O segredo de justiça externo nesse contexto acabou de igual modo. Primeiro porque foram os próprios advogados da defesa do arguido em causa a proclamá-lo publicamente e sem pudor algum depois de o violarem sistematica e impunemente, sem actuação que se conheça da OA.
Depois e tal como já disse o penalista Rui Pereira, do PS e antigo governante de um governo Sócrates, esse segredo perde todo o sentido quando é facto que os crimes em causa possibilitam que qualquer pessoa se constitua assistente e por isso o interesse público no conhecimento dos factos é evidente. Porém, bastaria ao MºPº fazê-lo através de um despacho para esvaziar de conteúdo hipócrita quem ainda cavalga esse cavalo cansado.
ADITAMENTO:
Segundo o Observador que teve acesso ao conteúdo da decisão ( que devia ser publicada pelo grupo Cofina, oportunamente) as razões essenciais do deferimento do pedido de providência seriam estes:
A juíza que decretou a providência cautelar contra todas as publicações do grupo Cofina não vê qualquer interesse público na revelação das escutas telefónicas que o Ministério Público entende que provam a entrega de centenas de milhares de euros em dinheiro a José Sócrates. E justifica o deferimento da providência que impede o Correio da Manhã (CM) e a revista Sábado, os órgãos da Cofina que mais têm noticiado sobre a Operação Marquês, com a defesa dos direitos de personalidade de José Sócrates e a violação do segredo de justiça que o CM, na visão da magistrada, praticou nas suas edições de 20, 21 e 22 de Outubro.
Estes serão os fundamentos essenciais da decisão da juíza Florbela Moreira Lança tomada no dia 26 de Outubro e ontem notificada aos visados.
Em primeiro lugar, o interesse público na revelação das escutas deve ser aferido pelo jornal e não apenas por um juiz de direito com as suas idiossincrasias próprias e que devem ser justificadas e fundamentadas na decisão ( o CM refere ser extensa... e por isso talvez lá esteja). Pelos vistos o jornal nem sequer foi ouvido antes da decisão por motivos que se prendem com a celeridade ( escreve-se no Observador que "de acordo com o Código do Processo Civil é permitido a dispensa da audiência prévia dos visados pela acção desde que a mesma coloque em causa “o fim ou a eficácia da providência”) e o Observador escreve ainda:
"Contudo, e apesar de reconhecer genericamente o interesse público (logo, jornalístico) do processo judicial que envolve José Sócrates, a juíza que decretou a providência cautelar não vislumbra naquelas notícias do CM “que interesse público está subjacente ao relato de conversas obtidas através de escutas telefónicas, algumas delas, até da vida privada de pessoas que não foram constituídas arguidas”.
E continua, citando o despacho judicial:
"A meu ver, a questão não se coloca tanto/só neste conflito [liberdade de imprensa vs direito ao bom nome], mas antes e sobretudo no facto dos artigos publicados no Correio da Manhã violarem o segredo de justiça”
Por isso mesmo, ao constatar a violação do segredo de justiça, que entende que existe para proteger a investigação mas também o direito ao bom nome dos arguidos, e ao constatar que o interesse público das notícias do CM não está devidamente fundamentado, a juíza concluiu:
O segredo de justiça, a presunção da inocência e os direitos de personalidade prevalecem, cedendo o direito de informar, que tem como limites os direitos, deveres e proibições constitucional e legalmente consagrados. (…) já que a violação daquele [segredo de justiça] poderá até prejudicar a investigação”Daí ter decidido deferir a providência cautelar pedida por José Sócrates e emitido a ordem judicial que impede todas as publicações do Grupo Cofina de publicarem notícias sobre a ‘Operação Marquês’.
Ora nesta questão do segredo de justiça é que porca torce, e muito, o rabo...porque a violação de segredo de justiça é um crime e a indiciação da prática de um crime não equivale à sua efectiva prática e cometimento.
Para que haja crime é necessário que haja um inquérito, um julgamento e uma decisão transitada em julgado. Nada disso aconteceu no caso concreto e a juiza do processo cível dá de barato, aceitando os argumentos do requerente que tal sucedeu- e não sucedeu, necessariamente nem sequer indiciariamente se se atenderem certos pressupostos conhecidos publicamente e teoricamente enunciados.
Esta decisão, assim fundamentada é nula, tanto mais que o crime de violação de segredo de justiça é passível de análise em sede de ponderação de interesses em presença, como seja o interesse público na informação e por isso a pescadinha está com o rabo na boca. Pode muito bem suceder que a indiciação de violação de segredo de justiça não ocorra com a densidade criminal aduzida e foi isso que o criminalista Rui Pereira já afirmou publicamente, ou seja, que não subsiste crime nesse caso porque não se verificam os elementos constitutivos da infracção.
A Mª Juiza ao dar por assente tal matéria meteu a foice em seara alheia e errou. E provavelmente em modo grosseiro se foi essa a única razão de fundo para o deferimento da pretensão.
A presunção de inocência não é só para aplicar ao requerente...