Hoje no Público, João Miguel Tavares escreve uma crónica para dizer que o ministro João Calvão da Silva não o devia ser. Por falta de idoneidade para o cargo, acrescento eu.
Tudo por causa de um assunto que o Observador notou e que era sobre isto:
O “bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade – comum unidade –, com espírito de entreajuda e solidariedade”. Foi
assim que o jurista João Calvão Silva, especialista em direito bancário
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, enquadrou a
“liberalidade” no valor de 14 milhões de euros dada pelo construtor José
Guilherme a Ricardo Salgado. Esta análise de João Calvão Silva e outra,
de Pedro Maia, também da Universidade de Coimbra, foram enviadas por
Ricardo Salgado ao Banco de Portugal e levaram o governador Carlos
Costa, segundo o próprio, a manter a idoneidade do ex-presidente do BES.
Este assunto, aliás, já o ano passado mereceu esta prosa, a propósito da questão coimbrã dos pareceres:
O artigo [ de JMT ] é dedicado ao mesmo tema já por aqui mencionado: a relevância dos pareceres catedráticos na ecologia do Direito e no desenvolvimento das prerrogativas.
A
Ricardo Salgado, perante o conhecimento público do recebimento de uma
prenda privadíssima, factor de escândalo e fonte de potencial crime,
colocou-se uma questão de como recuperar a honorabilidade idónea ao
exercício do cargo de dono daquilo tudo, ludibriando o BdP.
A "indoneidade" de um bancário é coisa que tem que se lhe diga e não é apenas do senso comum. Ou será?
O economista Miguel Cadilhe, antigo ministro parece saber do que fala quanto escreveu, em 25 de Junho deste ano:
O artigo 30.° do RGICSF diz-nos, em genérico, quem pode, ou se quisermos, quem não pode,
num banco, ser administrador executivo ou não-executivo, ou ser membro
dos órgãos de fiscalização, ou pertencer a conselhos gerais e de
supervisão. O Banco de Portugal (BdP) tem poderes de vetar nomes, com
base em requisitos exclusivos e subjectivos. Desses órgãos, "apenas
podem fazer parte pessoas cuja idoneidade e disponibilidade dêem
garantias de gestão sã e prudente, tendo em vista, de modo particular, a
segurança dos fundos confiados à instituição". Vendo bem, poucas
mas fortes são as palavras desta norma que marcam realmente o poder de
veto do BdP. Sublinhemos estas quatro: idoneidade, sã, prudente, segurança.
A idoneidade
da pessoa reúne, por exemplo, condições de ética, integridade,
seriedade, responsabilidade, inteligência, competência, experiência,
maturidade, equilíbrio, legalidade. O requisito da idoneidade diz
tudo, quase não seria preciso pôr mais na escrita. O legislador
preferiu, porém, e bem, desenvolver e relativizar o conceito de idoneidade,
tendo em vista os fins da banca. As outras três palavras que citei são
uma espécie de redundância explicativa dos grandes critérios da pessoa idónea
nos bancos, ainda que esta não se esgote nos critérios: a "gestão sã e
prudente" e a "segurança dos fundos" chamam por solidez, rentabilidade,
crescimento, ponderação, precaução, verdade patrimonial, etc.; e afastam
riscos exorbitantes, temeridades, produtos complexos e ignotos,
divagações patrimoniais, etc. Afastam voos de Ícaro.
A idoneidade vista à lupa...
Não
contente com isso, o legislador do artigo 30.° acrescenta que, na
apreciação da idoneidade, o BdP e os bancos devem ter em conta "o modo
como a pessoa gere habitualmente os negócios ou exerce a profissão", em
especial nos aspectos de capacidade de decisão, cumprimento das suas
obrigações, preservação da confiança do mercado.
O mesmo artigo 30.° concretiza alguns dos mais graves e flagrantes indiciadores de falta de idoneidade, os quais incluem, por exemplo, a
condenação "por furto, abuso de confiança, roubo, burla, extorsão,
infidelidade, abuso de cartão de garantia ou de crédito, emissão de
cheques sem provisão, usura, insolvência dolosa, insolvência negligente
(...), falsificação, falsidade, suborno, corrupção, branqueamento de
capitais (...), abuso de informação, manipulação do mercado de valores
mobiliários, ou pelos crimes previstos no Código das Sociedades
Comerciais". Sublinhemos aqui duas palavras: crimes, condenação.
Seria preciso explicitar todo este obscuro rol de marcadores? Sim, acho
que sim. Todavia, chamar-lhe meramente "indiciador" é que não parece o
mais apropriado.
Ora
estes critérios são canja interpretativa para os catedráticos do
Direito, como o dito Calvão, especialista em "direito bancário" e dos
seguros, certamente. Alguém terá mencionado a Salgado: vira-te para a
"cidade do conhecimento". É lá que está o saber salvífico nas horas de
aperto jurídico. E terá sido assim que telefonou, conversou, almoçou ou
jantou com o professor doutor. "Preciso de um parecer que me devolva a
idoneidade sem mácula", pode muito bem ter dito depois de explicar o
inexplicável: 14 milhões de euros pela porta do cavalo que cairam na
conta suíça de modo que só um RERT livrou da apreensão por crime
fiscal.
O professor doutor saberia disto? Então para
que serve um catedrático? Para dar pareceres e ensinar direito, sabendo
os factos. O problema resumia-se a dar um aspecto respeitável a algo
que evidentemente o não era e toda a gente, incluindo a família, já
tinha percebido que o não era. Um empreiteiro entrega 14 milhões de
euros a um banqueiro para este guardar e fazer coisa sua. E o banqueiro
nem sequer podia dizer aos sócios porque era segredo e tinha vergonha.
Isto abona alguma idoneidade, mesmo jurídica, a um banqueiro de um
banco que estatutariamente rejeita este tipo de esquemas negociais?
Como
é que o direito bancário pode resolver um problema que é do senso comum
e pouco tem a ver com leis a não ser para as tornear?
Com
um parecer catedrático, voilà! Transformar pelo processo alquímico do
direito um mistério inexplicável em algo perfeitamente corriqueiro.
"Liberalidade", foi a palavra mágica encontrada.
O empreiteiro ofereceu ao banqueiro 14
milhões de euros, não interessa porquê e que este arrecadou numa conta
secreta na Suíça. E por lá ficaria muito caladinha não se dera o caso de
poder tratar-se de um crime. De branqueamento, pois claro, por causa da
fraude fiscal inerente. E de um RERT salvífico que permitiu repôr algum
ao Fisco.
O catedrático apenas deu um conselho, tal
como o beneficiário dos milhões tinha dado o seu conselho... e o BdP
aceitou o conselho como bom para atestar a idoneidade do banqueiro.
Perfeito. A fome de idoneidade juntou-se à vontade de comer da
credulidade. E ficaram saciados.
Então o que falhou neste esquema
catedrático? Falhou a própria essência do parecer: e se os 14 milhões
não fossem uma liberalidade, uma prenda? E se o catedrático soubesse
disso? E se tal valor por si mesmo fizesse desconfiar, como desconfiou a
família do banqueiro? E que devia então fazer o catedrático? Dar o
parecer, sem o vender? Uma "liberalidade"?
E como interpretar juridicamente, à luz
desses factos, as palavras que nunca se diriam noutro contexto e com um
significado saboroso a conferir dimensão catedrática a uma ingenuidade
proibida- "o bom princípio geral de uma sociedade que quer
ser uma comunidade – comum unidade –, com espírito de entreajuda e
solidariedade"?
É esta a questão coimbrã do momento: para quê, pareceres destes?
E
de resto continua por responder a questão que vale vários milhões de
euros: e para quem eram realmente os 14 milhões? Eram mesmo para o
Salgado? Essa é que não está respondida...e Salgado, católico praticante
é caridoso. Porém, a caridade verdadeira começa por nós mesmos e não
devemos assumir o que não nos pertence, principalmente por caridade
porque antes disso está a Justiça. Mesmo a dos homens...
Este, o perdulário, é que poderia dizer...se
quisesse. E então saberíamos muito mais.Mas também não vai dizer porque
até agora não disse nada. De nada. Mesmo nada. Não pode dizer nada.