Mário Soares goza nos tempos que correm e há anos a esta parte de uma condescendência imerecida, injustificada e afinal só compreensível pela uniformização formatada dos media nacionais.
Os artigos do Sol não fogem a este padrão básico, porque assinados por luminárias como Ana Sá Lopes e outros anónimos do texto impresso. Para encontrarmos ideias diversas sobre o percurso funesto de Mário Soares pela política nacional dos últimos 45 anos não irá ser fácil e aposto que nem o Diabo fará a diferença. Não tem gente com estaleca suficiente para tal o que mostra bem o grau de desgraça que atingimos em tantos anos quantos os que Salazar esteve no poder.
A grande condescendência para com o nosso Kerenski ( deixou efectivamente a esquerda comunista fazer o que nunca deveria fazer, logo na Constituição de 1976) atingiu já as raias do inimaginável com um unanimismo que atinge o actual presidente da República que esqueceu tudo quanto ouviu de Marcello Caetano quando já tinha idade de entender. Sobre o que o pai, ministro de Salazar, lhe ensinou nem vale a pena falar.
Marcelo Rebelo de Sousa é o símbolo actual da nossa maior decadência: a de apostatar o que de melhor tivemos no século XX, com o Estado Novo e o Estado Social que se lhe seguiu.
Não foi a Liberdade aparente que se recuperou em 25 de Abril de 1974 que constituiu a maior dádiva, como agora é proclamado, mas o perdimento de uma realidade que era importante para qualquer povo que se preze: o da independência e aprumo moral e respeito por nós próprios enquanto povo e pelo nosso passado secular.
Isso, temo bem, perdeu-se e Mário Soares foi um dos obreiros principais de tal tragédia, porque tal nunca lhe disse nada. Filho de padre apóstata, republicano jacobino, activista político no tempo da desordem republicana que originou o 28 de Maio de 1926, saiu bem à geração que o criou, oposta em tudo à geração que criou Salazar. Mário Soares é um filho bastardo da pátria que foi a nossa durante séculos e não merecia ter sido o que foi, a não ser por inversão dos valores que entretanto se operou. Mário Soares é filho do anticlericalismo, do jacobinismo e de um esquerdismo incipiente que sempre se opôs à tradição nacional e ao conservadorismo que tivemos. Isso basta para que nunca o tivesse gramado e é suficiente para muitos o hagiografarem como um improvável Vasco Pulido Valente, nascido num meio parecido que nos denega a nossa natureza de país católico, tradicional e conservador, por eles tomado como "atrasado", em função sabe-se lá bem de quê...
O prè-obituário do Sol afina pelo mesmo diapasão mas consegue mesmo assim ser minimamente objectivo na análise do percurso de vida do agora quase finado e por isso recomendo leitura integral.
O editorial do filho de António José Saraiva é exemplar desta condescendência atroz, desta falta de perspectiva história e desta cegueira que não permite ver além das amizades familiares:
Há vários mitos que tendem a permanecer quanto à figura do quase-finado. Um deles é o do papel desempenhado em 1975 aquando do assalto do PCP e esquerda comunista em geral, ao poder político, com auxílio directo do MFA.
O "comício da Alameda" em que Mário Soares, em 19 de Julho de 1975, alertou os presentes de Lisboa ( várias centenas de milhar) para o perigo iminente que o PCP constituía tem sido demasiado sobrevalorizado como factor determinante para o travão imposto ao PCP que culminou em 25 de Novembro com a estrondosa derrota militar e política e o seu afastamento das veleidades do PREC. Esta versão dos acontecimentos, aqui contada por uma analfabeta Ana Sá Lopes ( no sentido que Vasco Pulido Valente apodou a outra, Clara Ferreira Alves) é a "oficial", repenicada vezes sem conta mas é uma falsificação história, a meu ver.
Tal mito esquece esta realidade vivida a Norte do país e que nunca é devidamente valorizada ou até mencionada como devia ser:
No Verão de 1975, em Braga e noutras localidades, os católicos tomaram a iniciativa de combater o PCP e fá-lo-iam de modo eficaz, quer houvesse ou não um Mário Soares que lutava pela sua pele e não por qualquer religião ou direitos individuais.
Foi preciso uma revista francesa- Paris Match, edição de 23 de Agosto de 1975- vir cá para dar conta da realidade que os demais órgãos de informação nacionais escondiam...
Outro mito é o da descolonização. Mário Soares foi um dos obreiros efectivos e eficazes da entrega das antigas províncias ultramarinas que tinham sido nossas colónias até aos anos cinquenta, aos movimentos guerrilheiros, particularmente os enfeudados ao comunismo soviético. Mário Soares não cuidou de precaver o que poderia acontecer aos seus concidadãos que ainda lá estavam e até disse mais: se se opusessem à independência ou tentassem uma solução à moda da Rodésia de Ian Smith, teriam a oposição dele e do país que então o mesmo governava, como ministro dos Negócios Estrangeiros. Isto só será entendido como traição à pátria se não se conhecesse o que Mário Soares tinha combinado com o PCP, em Paris, pouco antes de 25 de Abril de 1974: a entrega incondicional desses províncias à independência, tal como aconteceu.
O que o Sol escreve sobre o assunto, da autoria de António Bilrero (?) dá uma ideia aproximada da realidade história que então foi distorcida pelos meios de Direita que ainda existiam no país.
A entrevista à Der Spiegel, de Junho de 1974, aqui citada neste artigo foi já transcrita aqui e tem mais matéria que esclarece cabalmente o que Soares então disse aos alemães da revista...
Outra questão importante é o que ocorreu após a eleição de Soares como presidente da República, em 1986, um dos desastres maiores para a democracia, nestes últimos 40 anos e que teve o papel preponderante do PCP ( et pour cause). Tal significou o aparecimento de uma casta política que permanece actualmente agarrada ao poder e que se alimentou a leite e mel da corrupção chinesa do jogo de Macau e arredores. Stanley Ho e sus muchachos continuam a dar cartas em Portugal, agora na GlobalMedia, entre outros "investimentos".
O assunto poderia ter ficado resolvido em 1991 mas não foi porque o poder judiciário ( de Cunha Rodrigues e Rodrigues Maximiano, marido de Cândida de Almeida, todos de esquerda socialista ) tal não consentiu. Um dos escândalos maiores da nossa democracia que foi enterrado nas brumas do esquecimento, mas que neste artigo ( Ana Sá Lopes) é devidamente lembrado embora com aquele tinto de condescendência jornalística que não questiona.
Depois disto aparece a menção à "protecção" de Soares aos amigos, como Sócrates, Salgado e Craxi, apresentada com a simples explicação de que o dito "não deixa cair os amigos"...e a democracia e transparência e Justiça que se danem que aqui não fazem falta nenhuma.
Para mim, a imagem que melhor define Mário Soares no início do seu percurso é esta da Paris Match, de 23 de Agosto de 1975, igual a nenhuma outra que a imprensa portuguesa jamais publicou. Soares é sempre apresentado como amigo dos seus amigos mas não se conhece com exactidão o que lhe pertence, o que auferiu durante o exercício do cargo, o que lhe ofereceram os tais amigos e isso revela bem o grau de suprema condescendência que não têm para com outros.
Deviam comparar este quase finado, da democracia, com o que Salazar, Marcello Caetano e os seus ministros tinham quando morreram e como o ganharam. Afinal, a democracia devia permitir estas comparações para mostrar a sua ética e moralidade supostamente superiores...
Para tal seria suficiente fazer um apanhado geral dos quadros que lhe foram oferecendo e que guardou ( Salazar doou logo a melhor pintura que lhe ofereceram, da Renascença italiana, ao museu do Caramulo...)
Esta imagem resume bem o que era Mário Soares no Verão do PREC: um indivíduo comum, com fruteiras simples em cima da mesa de casa...
O que se passou nos 20 anos a seguir ficou mais ou menos retratado aqui e não é nada lisonjeiro ou digno de apreço democrático ou outro.
Pelo meio ficaram duas bancarrotas que medraram à sombra das medidas económicas perfilhadas pelo quase finado. Porém, nem isso é suficiente para mostrar a mediocridade do mesmo e dos malefícios que objectivamente foi causando ao país, como governante e como presidente da República.
Um país que escolhe pessoas destas como líderes e ainda por cima as cobre de encómios depois de saber o que fizeram, merece o destino que tem: a pobreza que se continua há décadas, sem fim à vista.
Os que lhe tecem encómios, por seu turno, não sentem tal pobreza porque levaram uma vidinha à sombra de benesses, carreirismo e empregos garantidos para os seus, como apaniguados do sistema entretanto criado. São agora uma casta que se pretende continuar o caminho encetado pelo líder que agora se fina e de quem se sentem filhos adoptivos. Percebe-se mas não deviam enganar tanta gente ao mesmo tempo, este tempo todo.
Para se ter uma perspectiva correcta do que foi o percurso deste democrata do epicurismo pessoal, é preciso ler outras opiniões que não afinem pelo analfabetismo reinante ou pelos mitos correntes.
Em 28 de Julho de 1977, o jornal de direita, A Rua publicou este editorial em que se define o essencial da opinião daqueles que não alinham por aquela corrente maioritária, de condescendência, ignorância e analfabetismo:
Para terminar e ainda mais contundente é esta afirmação apócrifa atribuída a Marcello Caetano e que me parece ter toda a dimensão da tragédia que nos atingiu estas últimas 4 décadas, tendo como protagonista principal o agora quase finado.
“Em poucas décadas estaremos reduzidos à indigência, ou seja, à caridade de outras nações, pelo que é ridículo continuar a falar de independência nacional. Para uma nação que estava a caminho de se transformar numa Suiça, o golpe de Estado foi o princípio do fim. Resta o Sol, o Turismo e o servilismo de bandeja, a pobreza crónica e a emigração em massa.”
“Veremos alçados ao Poder analfabetos, meninos mimados, escroques de toda a espécie que conhecemos de longa data. A maioria não servia para criados de quarto e chegam a presidentes de câmara, deputados, administradores, ministros e até presidentes de República.”
Marcello Caetano, sobre o 25 de Abril
A profecia de Marcello Caetano cumpriu-se integralmente com uma agravante não prevista: não há quem tenha a noção da tragédia, em Portugal. Em quantidade ou qualidade suficientes, quero dizer. Capaz de inverter este unanimismo que se instalou na sociedade portuguesa e que é o seu principal mal moral.