Observador, Vasco Pulido Valente sobre Cavaco Silva
Cavaco é um homem exemplar: bom filho, trabalhador, responsável, óptimo marido (em 50 anos de casado só não dormiu na mesma cama da mulher 1 por cento das noites, uma façanha pela qual a nação inteira o admira), perfeito pai, honesto, imparcial e dedicado. Não admira que os portugueses tenham feito dele ministro, primeiro-ministro e Presidente da República, embora seja um “intruso” na política, sem qualquer ambição pessoal e, sobretudo, odeie o ruído à volta do seu nome e a curiosidade à volta da sua pessoa. Não enriqueceu com as posições a que foi elevado. Quando está em Lisboa, vive num apartamento modesto (suponho que alugado) e, no Algarve, na “Casa da Gaivota Azul”, assim poeticamente chamada em homenagem a uma espécie de poema que Vasco Graça Moura lhe fez, não sei com que intenções, e que também tem, benefício da arte, um painel de azulejos do imortal Cargaleiro.
Sendo um bom católico e um homem de paz, Cavaco não odeia ninguém, excepto, claro, a gente que não o acha tão admirável como ele se acha, que lhe atrapalhou a vida, que não lhe obedeceu ou por puro desvario disse mal dele. Essa longa lista começa com Mário Soares (a grande força de “bloqueio”) que em Belém intrigava contra ele, que assistia sonolentamente às reuniões de quinta-feira e que no fundo (coisa que não escapou a Cavaco) o desprezava. Mas Vítor Constâncio (governador do Banco de Portugal) vem a seguir com a maioria dos dirigentes socialistas – e com Sócrates, um aldrabão, um ignorante e um obstinado, dado a cenas de hipocrisia e a fúrias contra tudo e contra todos. De qualquer maneira, e tirando estes parceiros da cena política, o inimigo principal de Cavaco eram os “media”, que merecem um parágrafo à parte.
Tanto como primeiro-ministro, como Presidente da República, ele execrou visceralmente “os media”. A concepção de política que o guiava era uma concepção de director-geral: o chefe bem informado e ajudado por especialistas, despachava no seu gabinete, longe do ruído da rua, a bem “do superior interesse da nação”; o governo e o parlamento aprovavam e a populaça fazia o que lhe mandassem. Tal qual como o Prof. Salazar gostava de fazer as coisas, com alguns ornamentos democráticos para disfarçar. Ora, os “media” criticavam, acusavam, distorciam. Um ou outro, como “O Independente”, até nem se coibiam de inventar notícias ou conspirações. Mais do que isso faziam dele uma figura do contínuo espectáculo da política indígena e ele não gosta de escândalos como o escândalo das “escutas”, que vários peritos dizem que ele próprio inventou. Fosse como fosse, apesar de alguns percalços, Cavaco conseguiu ficar no seu casulo, sem um acto decisivo que impedisse ou moderasse a crise em que o país caiu.
O que ele gostava naquele lugar do Estado era da proeminência que a situação lhe dava e da sensação de pertencer aos regentes do mundo. Com todo o cuidado apresenta no livro a prova fotográfica dos seus encontros com as celebridades que viu e ele julga que lhe dão lustre e por reflexo provam a sua importância pessoal: presidentes, primeiros-ministros, papas e similares. A vaidade paroquial do homem não tem medida; com os seus três papas, em particular, quase que se baba. Em contrapartida, o que mais lhe custava eram as reuniões com Sócrates (118 contou ele com o zelo com que contava a sua assiduidade ao leito conjugal). Em primeiro lugar, ele achava que Sócrates não passava de um mentiroso sempre pronto para o enganar. E, depois, Sócrates não percebia o que lhe diziam, se o que lhe diziam não concordava com os seus planos. Cavaco tomava notas numa estenografia secreta (que ele inventara na Faculdade) para se precaver de Sócrates e tentou até ao fim meter naquela cabeça irascível meia dúzia de noções elementares de economia e de finanças. Sem resultado.
A conclusão deste melodrama foi que os portugueses acabaram por sofrer uma crise, que o Presidente e o primeiro-ministro podiam adiar e com certeza atenuar. Cavaco previu o que ia acontecer desde pelo menos 2008. Mas não achou necessário prevenir os portugueses ou dissolver a Assembleia, porque a Constituição não lhe permitia interferir na política do governo. E, em matéria de lei, ele como qualquer director-geral era um devoto.
A comparação é fácil, mas ao ler estas 500 e tal páginas sem uma ideia, sem um pensamento sobre a situação e o futuro de Portugal, sem uma crítica ao sistema político, mas saturadas de uma satisfação incompreensível , não consegui esquecer Eça e os seus políticos: o conde de Abranhos, o conde de Gouvarinho, o genial Pacheco e o conselheiro Acácio. Reconheço, repito, a banalidade. Só que esta banalidade tem a vantagem de ser verdadeira.
É justo este retrato de Cavaco Silva? Sendo ferozmente subjectivo não interessa muito definir a justiça adjectiva mas sindicar apenas a opinião com os factos disponíveis.
Por exemplo esta passagem, significativa:
Tanto como primeiro-ministro, como Presidente da República, ele
execrou visceralmente “os media”. A concepção de política que o guiava
era uma concepção de director-geral: o chefe bem informado e ajudado por
especialistas, despachava no seu gabinete, longe do ruído da rua, a bem
“do superior interesse da nação”; o governo e o parlamento aprovavam e a
populaça fazia o que lhe mandassem. Tal qual como o Prof. Salazar
gostava de fazer as coisas, com alguns ornamentos democráticos para
disfarçar.
Cavaco execrava os media em geral, ou seja, não tinha grande respeito e admiração pelos jornalistas, porquê? Para mim, porque se julgava superior no entendimento das realidades governativas. Os economistas em geral tendem a julgar que percebem melhor o país e a sociedade que os demais especialistas de outras matérias. Ora os jornalistas não são especialistas de coisa alguma a não ser no modo de redigir notícias.
Esse complexo de superioridade de Cavaco Silva, bem real a meu ver, dava-lhe uma vantagem na forma como decidia porque obtinha a informação por outra via que não os media e estes pareciam-lhe mal informados ou mesmo ignorantes de certas matérias, mormente económicas. Logo, sem grande credibilidade informativa a não ser nos factos de mexericos que ainda permitiam aumentar o complexo.
Não obstante, o que me espanta é saber o que se passaria no caso dos mexericos que envolviam pessoas da entourage de Cavaco Silva, como Oliveira e Costa que foi seu ajudante em governos ou Dias Loureiro, homem de mão do partido de poder que então era o PSD e que Cavaco Silva conservou como conselheiro de Estado até não poder mais.
Esses mexericos não eram anódinos porque envolviam assuntos de Estado, como movimentações de dinheiros públicos em operações que Cavaco Silva deveria sindicar.
Como é que Cavaco se informava relativamente a esses assuntos, por exemplo o caso do SIRESP e da SLN em que Dias Loureiro tinha parte relevante? Não sei e julgo importante saber para formar opinião sobre Cavaco e a sua superioridade relativamente aos media.
O que se passou com o BPN, as acções que lhe foram propostas e depois transaccionadas a preços muitíssimos favoráveis e que lhe deram um lucro considerável, pouco usual e eventualmente desonesto, fica atravessado como facto incontornável do perfil de carácter de Cavaco Silva. Muito negativo, este facto e destruidor de qualquer credibilidade acerca da seriedade inquestionável como homem de Estado. Não basta dizer e proclamar que "ainda está para nascer quem seja mais honesto do que eu"... porque a percepção mediática deste caso, de acordo com o senso comum, é arrasadora e terminante.
Sobre Cavaco Silva como homem de Estado, na governação:
O que ele gostava naquele lugar do Estado era da proeminência que a
situação lhe dava e da sensação de pertencer aos regentes do mundo.
Esta vaidade pessoal e intransmissível está de acordo com os resultados obtidos como governante e político nestes últimos 30 anos para não recuarmos um pouco mais atrás, aos governos da AD?
Isso merece outra reflexão que implica conhecimentos em que Cavaco Silva se sente ainda mais superior e já justificou em livros anteriores.
Porém, merece que se questionem as opções políticas e governativas, também por quem não tendo tais conhecimentos pode reflectir sobre tais opções.
Vasco Pulido Valente não se aventura nessa floresta e é pena porque é dela que saiu toda a madeira que agora temos para nos queimar.
Dizer que Cavaco é um personagem de Eça, do género acaciano, sendo relativamente certo, por causa do tal respeito atávico a leis muito convenientes para a inacção interventiva, é pouco.
A ausência, em Cavaco Silva de "pensamento sobre a situação e o futuro de Portugal, sem uma crítica ao sistema político, mas saturadas de uma satisfação incompreensível" é arrasador do perfil de qualquer homem que se pretenda figurar como tendo sido de Estado.
Cavaco Silva foi apenas um director-geral? Vou ver melhor. Mas tendo a concordar.