No suplemento W do Negócios de ontem há uma entrevista extensa a José Milhazes a propósito do seu livro autobiográfico que relata a sua ida para a União Soviética, a expensas do Partido Comunista, a sua ilusão e consequente desilusão.
Na entrevista, Milhazes fala do mesmo assunto explicando que foi para lá em 1977 à espera de encontrar "tudo aquilo com que eu sonhava. Justiça social, igualdade de oportunidades, direito
a educação. à saúde. Tudo aquilo que eu não tive quando era criança".
Milhazes, no seu livro fala sobre a família, de pescadores das Caxinas, pobres, mas nem por isso pessoas de utopias ou ilusões. "Quando a esmola é grande, o pobre desconfia", assim explica a renitência dos familiares directos em aceitar a doutrinação do então embevecido crente no comunismo como salvação da humanidade.
Uma das razões porque escrevo neste espaço de internet por conta da Google é a de perceber estas opções ideológicas em favor do comunismo prático numa altura em que havia tantas denúncias públicas dos seus efeitos perversos, dos seus crimes contra a Humanidade e da sua feição totalitária que mesmo assim atraía esta espécie de ingénuos deslumbrados com teorias e doutrinas radicais de combate aos ricos e burgueses. Uma das explicações que encontro, já o disse, é o fenómeno da inveja, como sentimento geral de alguém que não suporta ver os outros em melhor posição social, assacando-lhes a culpa directa de se encontrarem na mó de baixo.
O comunismo sustenta-se dessa inveja visceral e endémica que pretende substituir uma classe de possidentes por uma classe de proclamados oprimidos por aqueles. Portanto, sustentando como base ideológica de uma doutrina uma luta entre essas classes.
A teorização de autoridades intelectuais de um passado filosoficamente morto, fornece o álibi necessário para que aquele sentimento primitivo seja sublimado e apresentado como desejo de justiça social, legitimando a acção concreta e a opção determinada por movimentos e partidos que provocaram desgraças inomináveis e hecatombes históricas, como o holodomor de Estaline, o genocídio como um dos horrores máximos que a Humanidade pode temer e que aconteceu por causa dessa teorização e práticas ideológicas.
Ainda hoje os partidos herdeiros desse horror denegam tal acontecimento, assemelhando-se por isso aos que denegam outros genocídios na História. Com uma diferença: o PCP que assim procede não é punido publicamente por isso e continua a ter a compreensão indulgente da bem-pensância caseira dos pachecos, flunsers e rosas, mais a companhia limitada do costume.
Por causa disso, compreendo muito mal que um José Milhazes, como tantos outros que aderiram conscientemente a uma doutrina dessas e a um partido desses, desprezassem os avisos e testemunhos e documentos e provas que já existiam em Portugal, nos idos de 1974 a 1977 e preferissem acreditar nas patranhas que agora reconhecem como tendo sido o prato que lhes serviram e eles sorveram com a gula dos que têm fome e sede de justiça.
E não compreendo, além do mais, porque nesses verdes anos, foi publicado em Portugal um livro que agora é reeditado pela Bertrand que então o publicou originalmente em dois volumes.
O Arquipélago de Gulag, de Alexandre Soljenitsine foi publicado originalmente em França, em 1973, sendo livro passado clandestinamente da União Soviética para o Ocidente e que deu muito brado na altura, mesmo em Portugal.
O advento do 25 de Abril de 1975 ajudou a relativizar o que aí se denunciava: o horror dos campos de concentração soviéticos, comunistas que comparados ao Tarrafal, na altura há muito extinto, faziam este passar por um verdadeiro campo de férias.
Tal comparação nunca era feita e pelo contrário assistia-se e continua a assistir-se à denúncia do fassismo de Salazar, pondo em evidência o Tarrafal mas esconde-se debaixo da consciência o horror dos Gulags.
Milhazes e outros como ele poderiam saber tudo isto em 1975, data da publicação do primeiro tomo desse livro em Portugal, mas aparentemente não quiseram, tomando tal por propaganda ocidental contra o comunismo soviético. Quiseram enganar-se e ser enganados e o motivo continua a permanecer apenas aquele acima exposto.
Mais: o segundo volume deste livro, publicado originalmente em França, pela editora Seuil, saiu em 1974. Por cá foi traduzido e publicado em 1977, altura em que trabalhadores da editora, em comissão, tentaram impedir a sua distribuição nacional, por causa de tal livro ser contra-revolucionário e fascista.
Também estes factos não incomodaram minimamente os que vituperavam a Censura de Salazar e do Estado Social de Marcello Caetano.
Actualmente já não subsiste a Censura como exame prévio oficial ao que se publicava. Existe outro tipo de censura que aqui também se aplica: o facto de a Geringona no poder incluir apoio de partidos comunistas impede a discussão alargada do fenómeno comunista, decorrente de factos que estão neste livro. E o melhor exemplo dessa censura interiorizada nos media em geral é o chumbo, no Parlamento, há dias de um voto de condenação do Holodomor, o holocausto soviético.
Percebe-se de algum modo como antes de 1968, para quem nasceu na década de 40 e por isso não acompanhou bem o que se passou em 1956 na Hungria, alguns intelectuais tenham caído no PCP, por oposição ao salazarismo, como é o caso de António Barreto que tal explica no Sol de hoje, assim:
Diz que aos 17 anos, em 1963, em Coimbra, não havia mais nada do que o PCP, na oposição. E foi comunista até 68-69, quando percebeu o que se passava na Checoslováquia.
De facto, tais acontecimentos foram muito bem relatados, mesmo por cá, nessa época. Só não viu quem não quis e só acreditou no PCP quem quis. Barreto deixou de acreditar e saiu.
Vida Mundial de 30.8.1968 , com artigos extensos sobre o assunto ( "do estalinismo à crise checoslovaca", um deles, assinado pela redacção) e imagens da invasão soviética e dos tanques em Praga, nas praças medievais da cidade.
Vida Mundial de 21 de Agosto de 1970, com um dossier de várias páginas sobre o assunto, incluindo um artigo sobre um português, Luís d´Oliveira Nunes que viveu os acontecimentos e os conta em várias paginas muito interessantes:
Outros houve, porém, que tendo acesso a informação sobre a realidade soviética não acreditavam nela e preferiam a narrativa do Partido que resumia tudo a uma querela propagandística do fascismo para denegrir o "sol na terra" e prejudicar a luta dos oprimidos operários e camponeses contra os opressores capitalistas. Esse discurso pegou e ainda pega nos tiagos oliveiras e outros joões ferreiras para não falar nas ritas ratos de todo o lado.
É pena que pessoas como José Milhazes não tenham querido saber melhor como era, na altura, em 1975-77, podendo fazê-lo. Depois, no caso de Milhazes, só em 1991, veio a desilusão e a descrença que poderiam muito bem ser evitados se dessem ouvidos à sabedoria antiga sobre as esmolas que se dão aos pobres...
Ou então seguindo o que se diz no Evangelho: felizes daqueles que acreditam mesmo sem verem...
9 comentários:
Obrigatória a coluna de Alberto Gonçalves no Observador de hoje.
Resume de uma forma excelente muito do vem sendo escrito neste boogue ao longo dos anos: o idiota útil de "direita.
Quando a esmola é grande, o pobre desconfia.
E quando os alertas são muitos, fecham-se os ouvidos e os olhos, não se acredita que "aquilo" possa ser assim.
Durante anos ouvimos que a verdade era só uma e rádio moscovo não falava verdade.
Vem o 25 e qual pêndulo, passa-se do 8 para o 80.
Como S. Tomé, Milhazes só acreditou quando tocou a chaga.
Dudu, bem visto.
Fico na dúvida se se terá mesmo arrependido ou se, simplesmente, busca noutro lado aquilo que não encontrou lá.
Substitua-se, na citação da página da entrevista, "Rússia por "Portugal" e "Putin" por "Salazar", e não andaremos longe da ladaínha anti-fassista.
Diz o entrevistado, também, na mesma página, que defende que estamos no mundo para ter uma vida digna. Ora, a mim parece-me que a dignidade está, antes de mais, na conduta de cada um. Consoante as circunstâncias, poderá ser mais ou menos difícil conduzir-mo-nos dignamente.
A afirmação sobre o sofrimento também me parece pouco realista. Quer estejamos nesta vida para sofrer, quer não, é facto inegável e insofismável que o sofrimento é parte da vida; e até podemos interrogar-nos se a vida é vida sem sofrimento... Posso estar a tirar conclusões precipitadas - e hei-de ler o livro - mas fico com a sensação que o autor parece considerar que só sofre quem é materialmente desfavorecido - o que está muito longe de ser verdade.
De resto, a tal condenação do Holocoiso menor é uma coisa tipicamente idiota de democrata. É o Estado a prescrever moral avulsa. Aliás, sob que moral condenariam aquilo? A moral laica e republicana que dizem não existir?
Se aquilo é condenável moralmente é imbecil e coisa de retardado - ou hipócrita - sujeitá-la a voto parlamentar. Deve subentender-se que o parlamento é que passa a moral?
Se não é condenável moralmente, desde logo porque cada um pode ter sua moral, então mais vale - e é a única coisa que faz sentido, em tal caso - deixar a cada um a faculdade de o condenar pessoalmente, segundo a sua própria moral.
Uma idiotice que, ao cabo, só desprestigiou o Estado português. Para quê?
Sobre a inveja, Bertrand Russel
Où ça? Where?
Está online. é um capítulo da "Conquista da Felicidade".
Certo zaie
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