quarta-feira, outubro 21, 2009

Figuras de Estado

Notícias de ontem e anteontem:
O Presidente do Conselho Superior de Magistratura (CSM), Noronha Nascimento, imputou à Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) uma interferência a nível político-partidário, com o objectivo de condicionar as eleições legislativas, através da declaração pública sobre a decisão do CSM suspender a classificação de serviço do juiz Rui Teixeira, até que esteja decidido a acção cível relativa à indemnização pedida ao Estado por um político do PS.
Na resposta a Noronha Nascimento, António Martins, presidente da ASJP , afirmou a falsidade dessas imputações de Noronha Nascimento e devolveu ao mesmo a acusação de não saber estar à altura do cargo que ocupa ( frase divulgada ontem , nestes termos, pelo sapo -notícias e que afinal é falsa, segundo a própria fonte, citada aqui) .
Depois desta troca pública de recados, Rui Rangel, também juiz desembargador e presidente da AJPC, (outro sindicato de juizes, mas com pouca representação), acusou Noronha Nascimento e António Martins de «populismo e demagogia», notando que não é com «acusações pessoais na praça pública» que se credibiliza a imagem dos juízes.
«A idoneidade e a credibilidade dos juízes não se defendem desta maneira», disse Rui Rangel.

Assim, que dizer destas figuras do Estado? A função de juiz e exercício judicial vivem um pouco da imagem de serenidade, ponderação, bom senso, capacidade de entendimento das realidades e do Direito.
Um juiz é uma pessoa imbuida de poder público que decide um pleito, em nome da Justiça, da Lei e do Direito, dando a cada um o que lhe pertence, segundo esses parâmetros.

Tomem-se estas qualidades e projectem-se nesse panorama que por aí decorre, entre juízes, com um pano de fundo eleitoralista, para os órgãos superiores do poder judicial orgânico: o CSM e o STJ.

O presidente do STJ, Noronha Nascimento, como o próprio salienta e bem, é a quarta figura do Estado. Conforme se pode ler no editorial do Público de hoje, anda em litígio particular com o director do periódico, pedindo numa acção cível a quantia de 150 mil euros, por ofensas à sua pessoa. Que ofensas?
Em tempos ( 2006), um blog publicou o "corpo de delito" que começava assim:
“Querem um símbolo, um expoente, um sinónimo, dos males da justiça portuguesa? É fácil: basta citar o nome da Noronha de Nascimento e tudo o que de mal se pensa sobre corporativismo, conservadorismo, atavismo, manipulação, jogos de sombras e de influências, vem-nos imediatamente à cabeça.
O juiz - porque é de um juiz de que se trata - é um homem tão inteligente como maquiavélico. Anos a fio, primeiro na Associação Sindical dos Juízes, depois no Conselho Superior da Magistratura, por fim no Supremo Tribunal de Justiça, esta figura de que a maioria dos portugueses nunca ouviu falar foi tecendo uma teia de ligações, de promiscuidades, de favores e de empenhos (há um nome mais feio, mas evito-o) que lhe assegurou que ontem conseguisse espetar na sua melena algo desgrenhada a pena de pavão que lhe faltava: ser presidente do Supremo Tribunal de Justiça. O lugar pouco vale (quem, entre os leitores, sabe dizer quem é o actual presidente daquele tribunal, formalmente a terceira figura do Estado?). Dá umas prebendas, porventura algumas mordomias, acrescenta uns galões, mas pouco poder efectivo tem. "
Este editorial de José Manuel Fernandes, em Setembro de 2006, pode valer a indemnização pedida, em detrimento de uma liberdade de expressão que pode incluir a crítica mesmo acerada e pessoalizada a um recém-eleito presidente do STJ? Veremos o que dizem e escrevem os tribunais, incluindo o Europeu, dos Direitos do Homem...
A verdade, porém, é que este facto torna-se sintomático de outro que ontem foi conhecido: Portugal anda pelas ruas da amargura no que toca à liberdade de expressão nos media. Num ano, passou do 16º lugar no ranking, para o 30º! Aquela acção pode não ter contado, mas conta muito para o ambiente geral, como refere o editorialista José Manuel Fernandes no Público de hoje.
E quanto às restantes figuras do Estado, o que temos?

A primeira figura deste mesmo Estado, o presidente da República, tem feito as figuras que se conhecem, a propósito da putativa vigilância de que foi alvo, num caso que envolve jornais e jornalistas.

A segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, Jaime G. foi reeleito presidente, depois de se conhecerem as consequências nulas da sua acção contra vários indivíduos que supostamente o difamaram e o tribunal considerou que não. Jaime G. e quem o reelegeu, precisamente os representantes do poder legislativo, passaram olimpicamente por cima desse fait-divers. Coisa de somenos e fruto certamente de pequeno percalço de carreira.

A terceira figura do Estado, é o primeiro-ministro que temos e cuja figura é a sexta mais bem vestida do mundo ocidental, Itália incluida. Tal como o PM desse país, instaurou acções criminais e cíveis contra jornais e jornalistas ( e bloggers) o que ajuda imenso nesta imagem de luxo que temos lá fora, na liberdade de informação.
É por estas e por outras que somos um país de costumes de estadão, como dizem os brasileiros.

ADITAMENTO, às 22h e 42:

Edgar Lopes, membro da Associação Juizes pela Cidadania, na caixa de comentários do postal, "corrigiu" a expressão que utilizei em relação a essa associação que apelidei de sindicato de juizes.
Em modo cordato e simpático, esclareceu que tal associação não é um sindicato, mas apenas uma "associação cívica, de juízes, que pretende contribuir para a discussão e reflexão sobre os assuntos da Justiça, procurando deles aproximar os cidadãos, descodificando a linguagem normalmente utilizada.
A nossa principal preocupação passa pela necessidade de o cidadão comum, aquele em nome do qual se administra a Justiça, possa compreender e voltar a sentir a Confiança que tem vindo a perder."

Portanto, nada de sindicato; tudo de associação cívica.
Pois bem. O que distingue uma associação de um sindicato? O facto de este ser uma associação, mas de classe. Portanto, para defesa de interesses de classe. No caso, de juizes.

Será a Associação Juizes pela Cidadania uma associação aberta a outros cidadãos que não juizes? Não. O artigo sexto dos estatutos é claro nesse ponto.
Portanto, como associação, é principalmente uma associação de classe. Será para defesa dos interesses da classe, de um modo típico, recortado em estatuto e com incidência nos aspectos socio-profissionais dessa classe? Não parece que assim seja, pela leitura dos estatutos e pelo que esclarece Edgar Lopes.
Mas...repugnará tal defesa de classe, a essa associação cívica, sempre que tal se colocar como assunto em debate público? Também não parece que assim seja. Ou seja, ocasional, incidental e oportunamente, a Associação Juizes pela Cidadania assumirá a natureza de sindicato- e sem problema algum, parece-me. Não aconteceu já? Que significado terão, aliás, as intervenções pontuais, agora mesmo, acerca deste problema que se gerou à volta do caso Rui Teixeira?

Porém, para distinguir verdadeiramente, onde vai a AJpC buscar a legitimidade derivada da constituição como associação? À lei civil do código que regula as associações ou à lei avulsa sobre o sindicalismo?
E se for apenas à lei civil que regula as associações, como explicar a exclusão da qualidade de sócio a todo e qualquer neófito que não seja juiz e ao mesmo tempo dissociar a natureza de classe da associação e consequente defesa de interesses de classe que ocorrerá sem dúvida alguma?

Segundo o artigo quarto dos estatutos da AJpC- A Associação tem por objecto a promoção e a defesa dos valores do Direito e da Justiça, com vista ao reforço da credibilidade e confiança do sistema judiciário junto dos cidadãos.

Tendo em atenção esta dualidade virtualmente presente nos estatutos da AJpC, parece-me que só por meio de um cuidado extremo, delicado e muito subtil, se poderá distinguir o papel dessa associação, do papel da associação abertamente sindical, em casos como o apontado e outros que não contendam directamente com a matéria socio-profissional, mas que podem conferir dimensão importante a esses assuntos. Por exemplo, a própria independência dos juizes e do poder judicial.
Como o próprio Edgar reconhece
no comentário -"Apesar de muitos terem temido que o fosse ou viesse a ser, nunca foi esse o nosso caminho"- o risco de se passar do "contributo para a discussão e reflexão sobre os assuntos da Justiça", para uma discussão sobre temas propriamente de classe e portanto abertamente sindicais é permanente.

Será a AJpD capaz de um equilíbrio que por vezes se fará no fio de uma lâmina mais fina que uma navalha?
Tenho as minhas dúvidas. Mas que não impedem de retribuir o abraço.

Questuber! Mais um escândalo!