domingo, outubro 11, 2009

A Esquerda- etiologia II

Outra personagem que explica a Esquerda que temos ou que é explicado por ela, é Carlos Tê, o letrista das canções de Rui Veloso e cujas letras são, algumas delas pelo menos, admiráveis. Carlos Tê, em entrevista à revista NM, do Diário de Notícias, conta assim, a sua visão da esquerda onde esteve e por onde passou.

O que se torna mais interessante nestas histórias sobre a génese do mito da esquerda que permanece docemente suspenso em hibernação, no inconsciente colectivo de uma maioria de pessoas em Portugal, é perceber o logro de que agora se dizem vítimas . Como se na altura, não tivessem qualquer alternativa ao putativo engano e isso fosse uma fatalidade como o destino que lhes marcou a hora. Como se não houvesse informação disponível e mais do que suficiente para os alertar e avisar do perigo do logro.

Uns Tony de Matos da política? Sem dúvida. O kitsch não anda longe destas mentalidades.

Torna-se encantador ler agora o que os mesmos entendem como uma fantasia de juventude, um "anacronismo", uma forma de mexer na "poeira da História", o que é um discurso comum a muitos antigos esquerdistas arrependidos, como por exemplo Saldanha Sanches.

Não obstante, a essência da ideologia, do mito e da crença, essa nunca a abandonaram...e daí a s recidivas ocasionais e os afectos declarados em matéria política.

A nossa esquerda vive dessas memórias, temporariamente apagadas e em letargia funcional. Mas que regressam a galope sempre que o sistema de recuperação afectiva as revitaliza.

NM- O Voo Melancólico do Melro é sobre um bando de amigos, mas faz um retrato de Portugal no pré e no pós-25 de Abril. Como olha para a evolução política do país nos últimos trinta anos?

Carlos Tê- Houve um apaziguamento da ideologia, que foi perdendo peso, já não existe uma fractura entre a esquerda e a direita, as diferenças são mais ténues. Por isso, o que me preocupa mais é a maneira como os portugueses se dissociam da coisa política, transformando os políticos num «eles» e os votantes num «nós», como se «eles» e «nós» não fossem a mesma coisa, como se os políticos não fossem emanações das pessoas. Isso incomoda-me. Os portugueses não podem continuar a fazer dissociação. O Estado somos todos.

NM- E o Tê ainda consegue saber onde está, se à esquerda, se à direita?

Carlos Tê- À esquerda, mas já não olho rancorosamente para as pessoas de direita. Aliás esse foi um dos meus mitos maiores. Eu, antigamente, pensava que todas as pessoas de esquerda eram boas pessoas e que todas as pessoas de direita eram más pessoas (ri). Agora sei que não é assim. O crescimento também é isto.

NM-A forma como no seu livro (d)escreve o PREC é absolutamente genial. Foi assim tão caricato?

Carlos Tê- O PREC é um momento à parte na nossa história. Foi ridículo e é isso que o torna brilhante. Para mim foi extraordinário viver aquele período. Não sei como o cinema português não pega naqueles momentos geniais.

NM-Porque é que não pega?

Carlos Tê- Porque tem vergonha, acho que há uma tendência da intelligentsia portuguesa para varrer coisas para debaixo do tapete que me incomoda profundamente. É uma coisa que os italianos, os espanhóis, os ingleses, os americanos não fazem, muito pelo contrário. Do pó conseguem criar, embalar e vender. Nós não, nós varremos para debaixo do tapete. O PREC é um dos momentos gloriosos da nossa história, não propriamente pelo que se passou, mas pela forma picaresca como se passou. Acho que era o Woody Allen que dizia que a comédia é tragédia mais tempo. O PREC é isso. Eu dizia coisas e fazia coisas que... e os outros também. Lembro-me perfeitamente de... olhe, aqui onde estamos, a Quinta de Serralves, pertencia a uma família nobre qualquer e lembro-me de que um desses pequenos grupos de esquerda queria assaltar a quinta e transformá-la numa comuna. Andaram a discutir planos e tudo. Foram momentos únicos na vida das pessoas.

NM-E o Carlos nessa altura era o quê: maoísta, trotskista, marxista-leninista?

Carlos Tê- Não fazia a mínima ideia do que isso queria dizer, mas ia atrás. Um dizia «vamos» e a gente ia, as raparigas mais bonitas eram trotskistas, a gente ia, as boazonas eram maoístas, a gente ia. É nesse sentido que digo que o PREC foi brilhante.

NM-Alguém sabia ao que ia?

Carlos Tê- Havia alguns que pensavam que sabiam, que eram os líderes, mas eles próprios estavam agarrados a ideias que tinham sessenta anos, viviam no tempo dos bolcheviques, e isso também é extraordinário, era como se estivéssemos na Revolução de Outubro. Estamos a falar de 1975, quando faço uma pequena retrospectiva e penso que nesse ano o Jim Morrison já tinha morrido, os Doors já tinham gravado a sua obra, o Jimi Hendrix já tinha morrido, os Beatles já se tinham separado, e nós ainda a falar de maoísmo (ri). O anacronismo era extraordinário. O mundo já tinha mudado e nós ainda a mexer naquela poeira toda da história.

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