domingo, outubro 18, 2009

O romance de Polkanski

Rolling Stone, de 2.4.1981

Roman Polanski nasceu em 1933, de família com ascendência católico-judaica e com seis anos vivia em Cracóvia ocupada pelos nazis. A mãe foi levada por estes, para o campo de concentração de Auschwitz, de onde nunca mais voltou. O pai sobreviveu ao campo de Mauthausen. Polanski foi protegido por outras famílias polacas e foi maltradado, gravemente ( tem uma placa metálica na cabeça, por causa disso). A fome e os maus tratos de infância eram recordados pelo mesmo, assim, numa entrevista à revista americana Rolling Stone, no número de 2 de Abril de 1981:
" Esses dias eram difíceis por duas razões", diz em modo calmo. "Uma era simples: passávamos fome. É mais fácil a uma criança aguentar isso do que uma mãe cujo filho tem fome." A voz baixa. "A outra razão por que era tão difícil, devia-se à ausência dos meus pais. Era muito pequeno e sentia muito a sua falta. Isto é instintivo para uma criança. Não se pode compensar. Não há modo de o ultrapassar." Pausa. "Ficava à espera de os voltar a ver."

Esta entrevista de Polanski àquela revista, tinha o pretexto do filme Tess que o realizador acabara de rodar e o artigo menciona o acontecimento como "uma desculpa ao público e imprensa americanos pela sua fuga à lei, em 1978. Em Fevereiro desse ano, Polanski considerou-se culpado de acusações de relações sexuais ilegais ( unlawful sexual intercourse) com uma menor de 13 anos. Cumpriu 42 dias de detenção no Instituto da California para Homems de Chino, submetendo-se a testes psiquiátricos. E então fugiu para Paris. Continua fugitivo; não pode colocar o pé nos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá ou qualquer outro país com tratados de extradição com os Estados Unidos. "

A revista, mais à frente, explica Polanski com as suas próprias palavras:

" Praticamente cresci sozinho. Não tive o benefício de uma boa educação que os meus me poderiam ter dado se não houvesse guerra. Mas talvez me tenham dado o primeiro impulso ( first stage). Vim de um meio burguês, um ambiente confortável (pampered background), e talvez esses seis anos da minha vida antes dos nazis aparecerem, criaram este tipo de indivíduo especial que gosta das coisas bem feitas. Quando faço qualquer coisa, tenho de a fazer bem. Como escrever uma carta. Escrevo poucas cartas porque me leva muito tempo a fazê-lo. Rasgo-as e escrevo outra vez até estar mesmo satisfeito. É a diferença entre talento e génio.
Talento é algo com que se nasce, algo que surge naturalmente, com facilidade. Quando se pega nesse talento e se trabalha e trabalha, levando o mais longe possível, isso é génio."

Na actualidade, Polanski tem 76 anos, casado há vários com uma actriz ( Emmanuelle Seigner), com dois filhos ainda pequenos e com uma vida normal de pai de família.

Os acontecimentos das últimas semanas, com a prisão de Polanski na Suíça, na sequência do mandado de captura por aquele facto relatado e acontecido em 1977, dá que pensar.

Em primeiro lugar, que facto foi esse e como se desenvolveu nessa altura?
Diz a BBC da época ( 11.3.1978) que Polanski, então com 43 anos, fora preso pelo facto de ter violado ( rape) uma rapariga de 13 anos, na casa do actor Jack Nicholson.

Estava em liberdade provisória e deveria apresentar-se em tribunal na semana seguinte. Enfrentava uma pena de prisão que poderia chegar aos 50 anos, pelas 4 acusações concretas, iniciais, de violação, sodomia, maus tratos a menor, com drogas à mistura. Mas o julgamento nem sequer seria por essas acusações porque se dera como culpado de algo como "having unlawful sex with the 13-year-old girl", diz a notícia da época, de Agosto de 1977, altura em que o mesmo fora preso num hotel de beverly Hills.

Em Dezembro desse ano de 1977, era para ter ficado 90 dias preso, enquanto era submetido a perícia psiquiátrica, tendo sido libertado ao fim de 42 dias. Então, em Fevereiro de 1978, em liberdade provisória, fugiu para França, com receio de apanhar uma pena de prisão efectiva por vários anos.
Segundo relatos posteriores, do próprio juiz da sentença, era intenção do mesmo aplicar uma pena leve ( light sentence) e expulsá-lo dos Estados Unidos se não tivesse fugido.

E agora, com a prisão e perspectiva de extradição? Vai continuar a prevalecer a ideia original da pena leve e expulsão do país?

Os tempos são outros, os anos passaram e a própria ofendida, já declarou sentir-se indemnizada e portanto o assunto transcende o problema da mesma ofendida, para se concentrar numa dupla questão que se desenvolve actualmente: a questão moral, social e política e a questão penal e processual.
Sobre esta última, diga-se já o que nos reserva a nossa lei nessa matéria:

Um crime de violação consumada ( que já vimos que pode nem ser isso que está em causa) , praticado em 1977, por cá, há muito que teria prescrito, porque a pena, por mais pesada que fosse nessa época ( e não era) prescreveria ao fim do decurso de todo o seu tempo de pena máxima, acrescido de metade.

Em França, onde o realizador reside, o debate sobre a prisão actual, a relevância do crime de há mais de trinta anos e a mudança de mentalidade nas opções criminais dos delitos contra menores, suscitam discussão acesa e que envolve várias personalidades públicas e notórias.

Curiosamente, a discussão não assenta directa e estritamente nos aspectos jurídicos, porque se assim fosse, Polanski não teria sido acolhido em santuário, durante mais de trinta anos sem que alguém se preocupasse com isso. Nenhum político ou personagem mediático se preocupou com o facto de Polanski ter cometido o crime que cometeu, nestes últimos trinta anos. Até lhe deram prémios e é reconhecidamente um dos maiores cineastas mundiais, radicado em...França.

A França não se incomodou com a presença de Polanski no seu território, como cidadão francês, durante este tempo todo, Preocupa-se agora, acenando com os aspectos jurídicos que nunca considerou suficientes para o extraditar ou devolver à procedência do local do crime.
Mas...há uma cisão entre a opinião pública do povo em geral que aprova a prisão do fugitivo e o repatriamento para o local do crime para ser julgado e uma elite de artistas, escritores, intelectuais que pugnam pela libertação do mesmo, em nome da paz jurídica, da prescrição do crime na memória da própria vítima e do senso de equilíbrio derivado destas contradições.
Para acicatar ainda mais esta cisão, alguns intervenientes vieram lançar achas para uma fogueira mediática que se aproxima mesmo da fogueira inquisitorial em que os factos perdem relevância perante outros factores de ponderação de culpas e expiação.

Uma deles é um sobrinho do antigo presidente Miterrand, Frédéric Miterrand. Homosexual assumido, escreveu em 2005 uma espécie de romance autobiográfico que deu que falar agora que foi nomeado ministro da Cultura por Sarkozy. Este leu o livro e afiançou a grande qualidade do mesmo ao tratar do turismo sexual na Tailândia e das aventuras homosexuais do autor com rapazinhos de idade acima do limiar da pedofilia. Mesmo assim, o tema e a circunstância e o vigor que o autor colocou na defesa do cineasta polaco, suscitaram uma reacção negativa na população e uma onda de protesto e pedidos de demissão.

Outro que afina por diapasão um pouco diferente é Daniel Cohn Bendit. Distanciou-se dessas elites e do seu próprio passado de libertinagem sexual ( le grand bazar, como lhe chamou) dos anos setenta em que foi apanhado em escritos nitidamente pedófilos. Qual a razão do afastamento dessa solidariedade de classe? Precisamente a justiça de classe: uma para os poderosos e influentes e outra para o cidadão comum que Bendit agora denuncia por receio de ...incoerência.
É neste entreposto que se coloca o teorema Polanski: juridicamente é assunto pendente nos USA. Em França não é e nunca o foi. Em Portugal, idem, por causa do tempo que passou.
Em França, porém, não querem ligar ao tempo jurídico e hipocritamente ligam ao problema de fundo que nunca os incomodou.

E em Portugal, como será?
Até agora, quase ninguém se pronunciou nos media...e no entanto, o problema é interessante.

Quid Juris?
Aditamento em 21.10:
O tribunal de recurso suíço, segundo notícias de hoje, negou a pretensão de liberdade provisória a Polanski, enquanto aguarda pela extradição.
Polanski, segundo tudo indica, vai mesmo ser apresentado a julgamento ou sentença, no tribunal do local de onde fugiu, em Fevereiro de 1978: Los Angeles.


Questuber! Mais um escândalo!