quinta-feira, outubro 08, 2015

O desembargador mal-amado



Rui Rangel, desembargador na Relação de Lisboa, relator de um acórdão de que se fala sobre um assunto de que se fala ainda mais, foi acossado pelos media pelo seu escrito singular em que vitupera outros mais plurais de colegas de profissão.
O escrito do desembargador Rangel, vertido num acórdão recente e ainda em trânsito para tribunais superiores, notabilizou-se por várias razões que foram mencionadas nos media e que resultam daquela singularidade.
Devido à facilidade de disseminação mediática e à particularidade de os advogados de defesa do arguido recorrente se estarem nas tintas para o segredo de justiça, para não usar a expressão vernácula com direitos de autor, tal acórdão foi conhecido e anda à solta na net. Quem o procurar encontra. Ao ler tal peça de processo avulta logo a singularidade referida: contradições, obscuridades argumentativas e, segundo o Público descobriu, plágio puro e simples de passagens extensas de outras obras de outros autores, no caso um acórdão e um estudo científico alheios ao citador que não colocou aspas nas citações ipsis verbis para identificar a proveniência e deu azo à acusação de plágio.

Rui Rangel, acossado pela pressão mediática, falou agora ao jornal i. Para fazer emendas ao soneto e procurar a rima certa que lhe foge há muito, porque as discussões televisivas não costumam ser lugares poéticos e muito menos poiso de juízes no activo
Perante o acossamento mediático de alguns jornais que menciona como o Correio da Manhã e o Público, defende-se atacando os jornalistas e imputando-lhes a intenção de servirem uma "causa", sem mais especificidade: " O CM tem uma causa e a senhora do Público também tem uma causa" e mais: "tudo isto é uma campanha e, a seu tempo, tudo será explicado".  E lança uma insinuação maldosa e pelos vistos meio-mentirosa: "três jornalistas do CM, entre os quais o director, terão o salário penhorado". Mentira! diz o director do CM. Há uma caução que evita a penhora dos salários...

Portanto teremos uma conspiração urdida contra o desembargador Rangel por motivos esconsos e que o mesmo conhece e revelará "a seu tempo".  Vai perder a oportunidade, pela certa.  O leitor assim fica a matutar que causa será essa e se é comum aos visados. E, pior, se a causa é digna ou apenas reles, como deixa entrever o entrevistado e que motivará um agravo semelhante ao que sente e o fez accionar civilmente os visados do CM, pedindo choruda indemnização pelo relato de factos aparentemente verdadeiros.

Quanto ao plágio? Um mero fait-divers a que nem dá importância...

Porém, há outras afirmações na entrevista informal que relevam de considerações a merecer reflexão, sobre o papel dos juízes e a idiossincrasia específica deste juiz que chegou a desembargador.

Rangel que foi candidato à presidência do Benfica há bem pouco tempo, era ao mesmo tempo comentador televisivo de tudo e o par de botas habitual em parelha com Marinho e Pinto e outros. Nesses exercícios de comentarista eventualmente muito bem remunerado ( a título de direitos de autor e com isenção de IRS à taxa habitual?)  Rangel pronunciou-se sobre processos concretos sempre de modo abstracto, incluindo o processo em que agora acabou por ser relator em sorteio de que não se deu por achado na escusa que deveria impor-se.

O acórdão saiu do modo que  agora se lê, com impugnação do MºPº por eventual nulidade e outras razões constitucionalmente explicáveis.
Sobre o exercício da sua profissão, Rangel coloca-se entre os mal-amados porque "não faço parte dos cinzentões que acham que estão fechados numa redoma de vidro". Acha que foi o CEJ que assim os colocou fechados ao mundo cujas portas e janelas Rangel pretende abrir e servir de exemplo.
É um modo de ver que não concita muitas admirações entre os cinzentões e os coloridos de que se reclama, pela simples razão de que tal idiossincrasia tem reflexos que espelham afinal um cinzentismo decisório com muitas áreas obscuras, no campo específico em que se deveria tornar límpido e puro tal exercício.
Na impossibilidade de as decisões serem bacteriologicamente puras,  ao menos que não sejam contaminadas com a exposição e apresentação de opiniões prévias e polémicas que permitem se suscitem questões acerca da isenção e imparcialidade de quem decide.
A função de juiz exerce-se no acto de julgar, nos procedimentos concretos de sala ou gabinete próprio e não nas televisões a publicitar o ego sobre tudo e todos os assuntos que venham à baila.
Essa não será  uma forma desejável de dignificar o cargo e a profissão porque é no mínimo irrelevante para ao efeito e muitas vezes  prejudicial à imagem tradicional de serenidade, reserva, ponderação, imparcialidade e isenção que se exige a um juiz.
A opção pessoal do desembargador  por um espavento individual da sua imagem e justificado com a recusa em permanecer numa redoma imaginária, que julga nociva à imagem da magistratura está errada.
A melhor e provavelmente única forma de preservar a imagem da magistratura é a seriedade real ( não a postiça...) e a ética impecável a par da competência técnica no exercício dessa profissão. Isso não passa por exposições televisivas de egos inflamados a discutir o jogo do Benfica com o Sacavenense que já nem existe e colar essa imagem à de um juiz fora de redoma, é fatal para a credibilidade assinalada dentro de qualquer redoma. Pretender ser presidente de um clube "dos grandes", fazer campanha pública por isso e manter o estatuto de juiz ainda menos. Publicitar opiniões jurídicas sobre factos concretos em processos que lhe podem vir a calhar profissionalmente é o fim da credibilidade de qualquer juiz dentro ou fora da redoma.

Pode o desembargador Rangel ter as melhores intenções e propósitos mas tal pode também fugir-lhe do controlo, principalmente nas televisões e prejudicar a sua imagem e a dos demais juizes, por antonomásia. E por isso será mal-amado. Sibi imputet.

Em tempos,  Eça de Queirós que era filho de um juiz e conhecia a espécie,  escreveu sobre o "desembargador Amado", no Conde d´Abranhos em tudo e aparentemente a antítese deste desembargador mal-amado.

O texto é delicioso em contraponto ao desembargador mal-amado e está aqui integralmente, com um pequeno acrescento em forma de coda.

O Sr. Desembargador Amado era de uma boa família do Norte e tivera uma carreira singularmente fácil. Dizia-se dele: «aquele deixou-se ir e chegou».
Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado, sem abalos nem choques, numa ascensão gradual e confortável, até à sua poltrona de damasco vermelho da Relação de Lisboa. Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade, e cruzando as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente. Que de modo nenhum se creia que eu queira diminuir com azedume os méritos deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente desinteressado dos homens e mesmo de Deus.
O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia entrar numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal: Aquele ventre que ali vem, é o Amado! Era com efeito um ventre, que em certos dias da semana punha sonolentamente os óculos, e assinava com a mão papuda, onde os colegas lhe indicavam com o dedo; da sua ciência jurídica, nada direi, para não envergonhar as paredes e os móveis deste.27 quarto onde escrevo; da sua honestidade, sei que a sua grande fortuna e as suas pro-priedades de Azeitão o tornavam indiferente às tentações do dinheiro: mas condenaria Jesus e absolveria o mau ladrão, se o peitassem com um casal de patos bem gordos ou com um salmão fresco do Rio Minho.
Fazia, ao comer a sopa, um glou-glou nojento e repelente, e atirava para o soalho os escarros que merecia na face. Tal era esta besta obesa. O Conde detestava-o. E eu mesmo, apenas o respeito que lhe devia como sogro de S. Exª, me impediu certa noite ainda tremo ao recordálo! de lhe atirar estas mãos ao pescoço gordalhufo, e apertar-lho, apertar-lho até que lhe pendesse, inchada e negra, aquela língua onde a banalidade era mais usual que a saliva, e lhe saíssem das órbitas aqueles olhos que só tinham fixado neste mundo com algum interesse as postas de vitela de que se abarrotava.
Era uma noite que ele passara em casa do Conde. Desde o jantar, estirado numa poltrona, só denunciando a sua presença por arrotos frequentes, tinha dormido o sono bestial do seu enfartamento senil. Eu estava justamente contando à Srª Condessa, que me escutava com interesse, uma deliciosa anedota do Sr. D. João VI que lera nessa tarde quando ouvi, do fundo da poltrona onde dormitava o Vitellius, estas palavras, naquela voz espessa e brutal que era a repercussão sonora da sua inteligência: Olá, senhor secretário, veja lá em baixo se já vieram com a sege!...
Eu fiquei petrificado, com a lividez da cal. Mas a Srª Condessa que sejam quais forem as suas culpas tinha delicadezas tocantes, acudiu imediatamente.
Oh papá! E agitando a campainha, dirigiu-se ao João que aparecera.
Veja se já está a carruagem do papá! Enquanto fui secretário do Conde, tratei com Fidalgos, com Ministros, com Embaixadores, com Augustos Personagens, e só recebi de S. Ex.ª e poderia dizer de S.S. MM. e AA. aquela benévola consideração que talvez as minhas aptidões justificassem, mas que eu recebia como preciosa recompensa da minha dedicação. Mesmo junto dos degraus do Trono, só encontrei bondade, e a mão que eu ia beijar na humildade tradicional, apertava a minha com uma simpatia que me deixava na alma impressões inesquecíveis.
Só aquela obesa carcaça se arrojou a tratar-me como um lacaio! Morreu. Morreu da bexiga. Notou-se com admiração o fétido que lhe saiu do corpo, depois de morto, e a decomposição muito rápida das matérias serosas: isto talvez fosse a dissolução do corpo; mas o cheiro asqueroso vinha da sua alma torpe que se soltava, dando a exalação de uma latrina que se destapa.
O caixão em que o levaram pesava arrobas, e quando o embalsamaram e lhe extraíram o cérebro, viram que não era mais volumoso que o de um bacorinho recém-nascido. Na cavidade craniana meteram-lhe um pedaço de esponja velha, decerto mais útil e tão inteligente como o cérebro que substituía! Amortalharam-no na sua beca de cetim, que não cobre agora um desembargador mais morto e mais pútrido do que tinha coberto nos dias de sessão da Relação de Lisboa. Levaramno ao Alto de S. João, ao passo de quatro éguas cobertas de panos negros; e as quatro éguas agitavam a cabeça, parecendo vaidosas do cadáver que arrastavam: foi o único orgulho que inspirou jamais a companhia da sua pessoa. Ali apodrece aquele resto de matéria mal organizada, que rebolou durante anos pela terra, sob o nome desacreditado de Justiniano Sarmento Amado.
Este ventre segundo a frase de José Estêvão era naturalmente um títere, um títere obeso nas mãos de sua mulher: era ela quem lhe puxava as guitas da vontade. D. Laura Amado, de aspecto, dava a impressão de uma régua: esguia, chata, erecta,.28 perpendicular, com o seu vestido de seda negra, parecia, não uma senhora, vivendo num prédio à Estrela, mas uma criação pitoresca do ilustre Dickens. Moralmente, tinha a mesma rigidez dura e inflexível, o mesmo rectilíneo de régua. Era uma devota, de uma pontualidade de máquina no cumprimento da sua devoção. Desde nova até ao dia em que a levou uma benemérita escarlatina, rezou, rezou imperturbavelmente, cronometricamente, com um tique-tique-tique, de relógio.
Era dotada de uma língua feroz com que lacerava todas aquelas porque raras vezes, decerto por pudor, se referia aos homens que não exerciam uma devoção tão complicada, ou tinham os gozos, os luxos, as paixões que lhe proibia o seu Deus, um Deus especial, dela um Deus terrível, que vivia na Igreja de S. Domingos, insaciável de louvores, pródigo de catástrofes, sempre pronto a despedir, como raios, doenças mortais ou desgostos com as criadas, e que era necessário abrandar constantemente com promessas, missas, ladainhas e ofertas, porque o seu divino temperamento, de uma irritabilidade fora do vulgar, o mantinha no desejo frenético de fazer mal.
O sacerdote particular deste Deus, o intérprete na terra das suas vontades, era o padre Augusto, que morava numa casa de hóspedes às Portas de Santo Antão, e de quem D. Laura recebia a direcção espiritual, as ordens, os conselhos, as admoestações e as baforadas do hálito impregnado de alho.
Pode parecer irrespeitosa esta apreciação da família Amado, mas, para minha justificação, direi, que o Ex.mo Conde a abominava. E todavia tanto a sua polidez era perfeita nunca deixou de beijar respeitosamente a mão de sua devota sogra mão magra, amarela e seca como um caranguejo, de longos dedos que ela tinha sempre postos em atitude de reza, contra o peito, na igreja, sobre o regaço, na sala, e em cima do prato, à mesa.
Desta devota, e do outro, do montão de gordura de que falei acima, tinha nascido um anjo.

6 comentários:

Floribundus disse...

isto parece saido duma campanha alegre

numa das cartas diz de Paris que a monarquia está por um fio

este está corroido

zazie disse...

ahahahha O desembargador Amado

BELIAL disse...

Foi assim que uma ocasião, de repente, de entre os bancos, um morcego solta o voo, e estonteado pela luz, esvoaça furiosamente, vai bater nos vidros, vai bater nas paredes, vai bater, finalmente, no rosto venerável do Dr. Pascoal. O velho grita, o archeiro corre... Mas, como diz o nosso grande poeta, autor dos Cânticos do Céu:



Quem sabe donde vem a aragem fresca?

Quem sabe donde vem o voo d'ave?



Quem sabe de onde vinha o morcego?

No dia seguinte, tinha justamente o venerando doutor aberto a pauta – quando outro morcego, maior, mais negro, começa a esvoaçar furiosamente pela aula! O respeitável Dr. Pascoal fechou a pauta, saiu da aula, todo trémulo, todo branco...

Alípio, porém, vira o condiscípulo indigno que soltara os morcegos, e ali mesmo, na geral, decidiu, por amor da disciplina violada e do professorado ultrajado, acusá-lo ao decano. Mas como repugnava ao seu carácter leal ir, de viva voz, a casa do Dr. Pascoal, denunciar o condiscípulo, redigiu uma carta anónima com estas palavras:



O vilão que arrojou o morcego às faces de V. Ex.ª perturbou o recinto escolar, é o nº 89!



Era um certo Adriano Cravilho, que – posto que de uma inteligência notável e de.18 um temperamento honesto – tinha, como se diz em Coimbra, «o furor de fazer partidas».

Uma semana depois, condenado por um processo secreto e sumário, era riscado da Universidade perpetuamente. O respeitável Dr. Pascoal, porém, ficara tão reconhecido ao «anónimo» que lhe revelara o autor do malefício, que costumava dizer no conselho da faculdade, que, se soubesse quem era, «pespegava-lhe um accessit no fim do ano. Porque enfim, colegas, livrou a aula de um malvado!»

Estas palavras, espalhadas, impressionaram Alípio. O seu acto apareceu-lhe revestido de uma importância inesperada; examinando-o, descobria-lhe a nobreza, via-o como um verdadeiro serviço feito à Ciência, à Disciplina, à Ordem, ao princípio autoritário. E considerava que se é justifi-cado o pudor que nos faz ocultar o serviço feito a um amigo, há uma falsa modéstia em esconder um benefício prestado à sociedade. Pode esquivar-se ao reconhecimento quem salva um homem – não quem salva um princípio!

E dias antes dos actos, dirigiu-se a casa do Dr. Pascoal, e escrevendo diante dele as palavras textuais da carta anónima, convidou-o a comparar as letras, provando ao venerável professor que era ele, Alípio Abranhos, quem prestara aquele serviço tão marcante à Disciplina.

– Pois faz favor de deixar o seu nome... faz favor de deixar o seu nome – exclamou o ancião, que estava na idade em que a memória é como tela gasta, que, repuxada, se esgaça.

Alípio deixou o seu nome – e no fim do ano recebia o 1º accessit.

JC disse...

José:

Como costuma por aqui tentar desmontar a intrujice que é o PCP, leia, se quiser, este artigo de um ex-militante comunista que viveu na URSS e que conhece o partido por dentro, cujo link aqui deixo, para o caso de lhe ter passado despercebido.

http://observador.pt/opiniao/nao-quero-participar-a-segunda-vez-no-mesmo-filme/

josé disse...

Obrigado, já publiquei.

Vitor disse...

Impecável post.
Uma maravilha.
Obrigado, José.

A obscenidade do jornalismo televisivo