segunda-feira, março 16, 2015

O legado de Salazar foi malbaratado?

Em finais de Julho de 1970, o reino de Salazar já não era deste mundo. O seu legado, com o desaparecimento de cena política dois anos antes e a morte lenta que sofreu , foi analisado ao tempo pela revista Vida Mundial. Cito os recortes porque me reconheço na análise e me parece interessante como ponto de discussão.
Toda este tema, aliás, é apresentado como um modo de tentar perceber o que se passou nestes últimos 45 anos da nossa vida colectiva.
Não me parece que o legado do tempo de Salazar pudesse ser executado religiosamente pelos seus fiéis.
Desde logo porque esse legado era algo que o tempo mudara inexoravelmente e os executores testamentários sabiam disso porque tinham vivido o tempo em que a herança se constituíra, conhecendo os desígnios do de cujus.
Foi esse o principal drama de Marcello Caetano, do qual, no meu ponto de vista,  se saiu garbosamente e com honra, tendo sido afogado com a praia à vista.

Em 30 de Julho de 1970, a revista consagrou todas as 64 páginas a esse legado e à sua história.

No intróito explicava assim, citando um discurso de Salazar, de 18 de Fevereiro de 1965 ( data daquela imagem que publiquei abaixo) em que se referia ao regime do Estado Novo e seu futuro:



No discurso, Salazar mencionava que a natureza do regime não estava em causa com a sua sucessão por "corresponder ele às características da índole portuguesa e aos anseios da maior parte da população".
Acho que era exactamente assim e Salazar tinha razão. Mas não por muito tempo porque foi a partir daí que a "índole portuguesa" começou a mudar e os "anseios da maior parte da população" se modificaram.

É este o ponto essencial da minha argumentação: foi essa índole e esses anseios que se modificaram com o tempo e isso pouco tem a ver com Salazar ou líder que lhe sucedeu, Marcello Caetano.

Este, em  finais de Setembro de 1970 quando efectivamente sucedeu a Salazar na chefia do governo e com o regime ainda semelhante ao anterior,  discursou e definiu o que iria fazer do legado de Salazar: continuar a executá-lo, mas adaptando-o a novas realidades, como Salazar faria se fosse vivo e com plenas capacidades.
Marcello Caetano é explícito: "o próprio dr. Salazar teve ensejo, durante o seu longo Governo, de muitas vezes mudar de rumo, reformar o que ensaiara antes, corrigir o que a experiência revelara errado, rejuvenescer o que as circunstâncias mostravam envelhecido."


O que poderia fazer Marcello Caetano do legado de Salazar? Manter os pressupostos de não discutir a pátria, a família ou Deus? À custa de um maior cerceamento das liberdades fudnamentais de expressão e reunião?

Mesmo que o quisesse, os tempos já não eram os mesmos. Mudaram e foi isso que alterou tudo. Não foi a mudança de líder.

Quanto à pedra de toque do regime, o da integralidade da Nação, colocava-se o tema da guerra no Ultramar.
No início, em 1961, Salazar fora claro: rapidamente e em força, para defender o que era nosso. Vinte anos antes, recusou entrar na II Guerra...


O que alterou essa política de força no Ultramar português? O mesmo que sucedeu com os EUA no Vietnam. Não foi o líder dos EUA que perdeu a guerra por desistência de "ãnimo". Foi o conjunto de circunstâncias que a tal conduziram. E o tempo tem muito a ver com isso. Há quem dê a volta ao tempo e o engane, mas não por muito tempo. O tempo ganha sempre.


Como signo do tempo volto a colocar aqui a imagem fantástica da pedra tumular de Salazar que é fascinante pela beleza estética da simplicidade.


E faço-o porque descobri o autor da mesma em pleno labor de execução. A semiótica destas imagens dão-me uma noção desse tempo que dificilmente se explica em textos, tal como a imagem de 1965 da minha aldeia não se entende sem se ter vivido.
Quem está a gravar o nome AOS seguido da data 1970 é um cantoneiro anónimo.
A figura de cantoneiro, no regime do Estado Novo, parece-me lendária e digna de história. Porém, no caso, afigura-se lapso a menção a cantoneiro que era o funcionário da JAE que lidava com a limpeza das bermas das estradas e aquedutos.

A figura de chapéu a que só falta o cigarro pendurado nos lábios é a de canteiro, o artista da cantaria, o mestre que antigamente sabia mais da pedra do que os arquitectos de hoje. É esse mestre que a figura mostra e agora já não há. Parece que há escultores...tipo Cutileiro e afins.


11 comentários:

SGFiltro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
zazie disse...

Linda a pedra e lindas as associações que o José faz.

Floribundus disse...

o 44 continua na pildra
o monhé tem futuro como cómico de revista

Unknown disse...

"CANTONEIRO" deve ter sido lapso, pois quem trabalha a pedra é o "CANTEIRO

Bic Laranja disse...

O lapso de «cantoneiro» por «canteiro» é sinal de que os tempos tinham mudado. Indicia «canteiro» ser já termo desusado é mal conhecido do escriba para referir um artesão que afeiçoava e lapidava a pedra. Sobrava (e sobra) o termo «pedreiro» como generalização redutora, pois que designa, em rigor, sòmente alvanel que assenta pedra.
Tudo sinal de tempos progressivos, de tábua rasa.

Bic Laranja disse...

Desusado e mal conhecido (maldita mecanografia a sobrepor-se à escrita!)
Cumpts.

Pedro Alves disse...

Cantoneiro por canteiro e marmore por granito.

José disse...

Exactamente. Lapsos a mais.

José disse...

Já agora, há muito tempo que não vejo aquele "maço" ( de maçon?) nas mãos de um "artista" ( era assim que se dizia dantes para designar estas pessoas).

Bic Laranja disse...

Poema da Pedra Lioz

Álvaro Gois,

Rui Mamede,

filhos de António Brandão,

naturais de Catanhede,

pedreiros de profissão,

de sombrias cataduras

como bisontes lendários,

modelam ternas figuras

na lentidão dos calcários.



Ali, no esconso recanto,

só o túmulo, e mais nada,

suspenso no roxo pranto

de uma fresta geminada.

Mas no silêncio da nave,

como um cinzel que batuca,

soa sempre um truca…truca…

lento, pausado, suave,

truca, truca, truca, truca,

sob a abóbada romântica,

como um cinzel que batuca

numa insistência satânica:

truca, truca, truca, truca,

truca, truca, truca, truca.



Álvaro Gois,

Rui Mamede,

filhos de António Brandão,

naturais de Cantanhede,

ambos vivos ali estão,

truca, truca, truca, truca,

vestidos de sunobeco

e acocorados no chão,

truca, truca, truca, truca.



No friso, largo de um palmo,

que dá volta a toda a arca,

um cristo, de gesto calmo,

assiste ao chegar da barca.

Homens de vária feição,

barrigudos e contentes,

mostram, no riso dos dentes

o gozo da salvação.

Anjinhos de longas vestes,

e cabelo aos caracóis,

tocam pífaro celestes,

entre cometas e sóis.

Mulheres e homens, sem paz,

esgaseados de remorsos,

desistem de fazer esforços,

entregam-se a Satanás.



Fixando a pedra, mirando-a,

quanto mais o olhar se educa,

mais se estende o truca…truca…

que enche a nave, transbordando-a,

truca, truca, truca, truca

truca, truca, truca, truca.



No desmedido caixão,

grande sonhor ali jaz.

Pupilo de Satanás?

Alma pura, de eleição?

Dom Afonso ou Dom João?

Para o caso tanto faz.

josé disse...

"Surrobeco".

É assim que se escreve e é uma espécie de pele de ovino, curtida.

Este poema é cantado no disco de 1972 Fala de um homem nascido, com poemas de António Gedeão ( como este) e música de José Niza.

Esta canção, como outras é cantada por Samuel que anda por aí, nos blogs.


Este disco é um dos percursores do 25 de Abril e um dos mais importantes sinais da mudança operada no início dos 70.

Ainda bem que lembra...

A obscenidade do jornalismo televisivo