domingo, março 15, 2015
O Portugal de Salazar numa aldeia do Norte em 1965
Esta foto de 1965 mostra uma "obra pública" em execução no tempo de Salazar, no Portugal de 1965 e na minha aldeia, pelo que conheco as figuras representadas e a história que conta a imagem.
A interpretação dos seus elementos ajudará a uma compreensão desse tempo e época.
A obra pública em causa era a abertura de um caminho público que ligasse uma capela situada no horizonte próximo da imagem, a cerca de 200 metros e a igreja paroquial, para trás da imagem observada, a outro tanto de distância.
A obra pública era da responsabilidade camarária e por isso lá estava o engenheiro responsável, de gabardina e mãos nos bolsos. A meio da foto está o presidente da Junta da freguesia, por acaso o meu pai, e a fumar, observadndo a máquina caterpiller a desenvolver a remoção de terra. Um pouco atrás, o padre da freguesia, de óculos, também a observar. Em primeiro plano, dois putos de escola, colegas meus, um deles já falecido ( o que está em primeiro plano). Putos pobres, filhos de pobres. O segundo, mais pequeno, emigrou para França nos anos setenta e por lá ficou umas décadas, conseguindo chegar ao posto de encarregado de uma empresa de construção civil de grande dimensão. Prosperou porque trabalhou e fez pela vida, como se costuma dizer. O outro, nunca passou de operário sem especialização, apesar de esperto e trabalhador qb. O primeiro estudou o ensino básico obrigatório e era bom aluno, continuando depois os estudos por iniciativa própria. O segundo, o ensino mais básico e era aluno mediano, para o fraco. Morreu de doença, há uns anos, depois de muitos anos sem trabalhar por eventualmente ter perdido a vontade. Alcoolismo eventual, crónico e doença regular.
Em 1965 estes putos, tal como eu, nem tinham dez anos e a vida numa aldeia assim, pequena e onde todos se conheciam, suscitava estas imagens colectivas.
Ao longe vê-se um magote de gente que é da população local e que compareceu porque o padre, na missa, as convocou por indicação da "junta", para ajudar nos trabalhos de abertura do caminho, chamado "estrada da igreja". Compareceram dezenas, pro bono, com enxadas, pás, picaretas e instrumentos próprios para as tarefas. Homens e mulheres que queriam colectivamente aquela estraba aberta por ali, por entre propriedades particulares que foi preciso expropriar. Um dos expropriados, residente imediatamente atrás do que a foto mostra, nesse dia em que se iria proceder ao derrube do muro da sua propriedade, depois de ter ameaçado os "poderes públicos" ( no caso o meu pai, autor da ideia), saiu de casa com a família, bem cedo e de fato novo, para não presenciar o corte da sua propriedade expropriada por razões de interesse público. Nunca cumpriu as ameaças e com o passar dos anos esqueceu a ofensa e acomodou-se à situação de ver passar à sua porta as pessoas que iam à missa. Os herdeiros já se habituaram à situação e não quereriam uma eventual reversão. Na época, apesar das ameaças de morte não foi preciso chamar a "guarda" ou a pide ou fosse o que fosse de poder público, como hoje seria necessário. Quem ameaçou sabia o risco que corria e preferiu afastar-se, seguindo o bom senso. Hoje seria a mesma coisa?
Antes dessa obra a passagem fazia-se por um caminho estreito, com um curso de água no inverno que obrigava as pessoas a passarem por cima de pedras e um pequeno passeio mais subido, sendo igualmente por aí que passavam os funerais. Assim foi durante décadas e décadas até 1965.
A obra fez-se por insistência da "junta" e com promessas e garantias de a "Câmara" fornecer apenas as máquinas e eventualmente a pavimentação posterior a "macadame", pois a mão de obra ficaria por conta da população local. E assim se fez a obra.
O que nos pode dizer isto sobre o Portugal de Salazar e o ânimo que então haveria? Em primeiro lugar a ausência de burocracia desnecessária com regras que ultrapassassem a mera execução técnica de uma obra simples. A expropriação por utilidade pública não se arrastava durante anos nos tribunais administrativos.
Por outro lado, a convivência institucional e quase orgânica dos vários poderes públicos, com apoio da Igreja que estava efectivamente presente e junto das populações locais, intervindo e participando sempre na resolução dos seus problemas imediatos. A foto foi tirada por um então seminarista que actualmente é padre de uma freguesia da cidade concelho.
Depois, o apoio "democrático" no sentido mais puro da palavra, das populações que sentiam a obra como sua e para seu bem e por isso participavam na respectiva execução, sem relamarem.
Dificilmente se veria hoje em dia uma conjugação de tais factores o que atesta uma mudança na sociedade, mas não de ânimo.
As razões são outras.
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