Observador, artigo de José Ribeiro e Castro:
A notícia de a Ordem dos Médicos ter aberto processo a António Gentil Martins
obrigou-me a ler toda a entrevista ao “Expresso” que desatou reacções
furiosas. Só tinha seguido títulos e um ou outro ataque da reacção ou
respostas. Sem terceiros, quis fazer o meu juízo.
Confirmei a opinião que tenho, há muitos anos, sobre António Gentil
Martins, um dos médicos mais notáveis da vida portuguesa, grande
cidadão, homem bom. Se há justiça em Portugal e a queixa disciplinar
versa sobre a matéria dessa entrevista – aquilo que se chama uma
entrevista de vida –, o caso só pode resultar em público louvor e
testemunho de gratidão a tão brilhante veterano da nossa saúde.
O que aprendemos (ou recordamos) com a entrevista de Gentil Martins?
Isto! Criou a primeira unidade multidisciplinar de oncologia
pediátrica no mundo – não é coisa pouca. É um reputado cirurgião
pediátrico e plástico. Tem 87 anos de idade e continua a trabalhar,
depois de reformado por lei há 17 anos no Hospital de D. Estefânia,
quando atingiu os 70. Permanece activo como cirurgião, no privado, a
tratar e a salvar, e como consultor no “seu” IPO, a consolidar e
transmitir experiência. Tem 63 anos de carreira hospitalar, sobretudo na
Estefânia e IPO. Realizou mais de 12.000 cirurgias, destacando-se a
separação de gémeos siameses. Quantos lhe devem cura, alívio, a vida?
Quantos lhe devem felicidade e melhor qualidade de vida? Recebeu vários
prémios – só neste ano, o Prémio Manuel Sobrinho Simões, da Liga
Portuguesa contra o Cancro, e o Prémio Nacional da Saúde. É continuador
de longa linhagem familiar na medicina portuguesa, desde meados do
século XIX. Cresceu sem pai, morto precocemente num acidente de tiro,
tendo sido criado apenas pela mãe. Quando se formou, em 1953, trabalhou
dois anos sem receber, até obter reconhecimento bastante. Fez uma
especialização de 3 anos em Inglaterra, em regime intensivo. Dedicou-se a
cirurgias pediátricas, porque gosta muito de crianças e para tratar e
corrigir malformações congénitas. Chegava a ir ao hospital com o pijama
debaixo da roupa. Nunca discriminou um doente e trata todos por igual,
nomeadamente heterossexuais ou homossexuais. O único lamento que carrega
é o de ter prejudicado a vida familiar pela extrema dedicação à
medicina, aos hospitais e aos doentes. Ousou inovações de tratamento
oncológico contra protocolos internacionais estabelecidos, provando o
seu sucesso e ajudando a estabelecê-las, mundialmente, como novas
práticas médicas. Condena bruxos e charlatães. Denuncia a vigarice
organizada em torno das células dendítricas e da exploração da ansiedade
de doentes e seus pais.
Em matéria da competência disciplinar da Ordem dos Médicos não se
tira desta entrevista – mais, não se tira desta vida! – nada que seja
reprovável, antes quadro de honra e de exemplo. Em Portugal, Estado de
direito democrático, creio que, se a Ordem dos Médicos ainda é Ordem e
ainda é dos Médicos, o Conselho Disciplinar não poderá deixar de
concluir por uma de duas: ou afirmação de incompetência estatutária para
apreciar a queixa apresentada; ou mais um louvor ao exemplo de vida do
seu antigo, insigne e bondoso bastonário.
Houve um trecho que desatou esta fúria. Não se
tratou daqueles em que Gentil Martins confirma ser católico praticante e
se assume democrata-cristão, “mais à direita do que à esquerda”. Também
não foi o trecho em que verbera Cristiano Ronaldo por ter recorrido a
barrigas de aluguer e em que se alastrou no seu, como diria Mário
Soares, “direito à indignação”. Foi a parte em que afirmou que a
homossexualidade «é uma anomalia, é um desvio de personalidade». Não
discrimina, mas não aceita promovê-la – diz.
Ainda o “Expresso” estava quentinho e a manhã de sábado não chegara
ao fim e já a deputada Isabel Moreira expedia o comando, por telegrama
em caixa alta no Facebook: «URGENTE UMA DENÚNCIA À ORDEM DOS MÉDICOS».
Emitia também a sentença: «Estas declarações violam a deontologia
médica». O caso disciplinar da Ordem arranca daqui.
Também no Facebook, critiquei esta posição, o que Isabel Moreira
(infelizmente, como é seu hábito) distorceu, a fim de desfocar o que eu
disse e tentar vitimizar-se – quando se diverge, convém manter alguma
honestidade, para a discussão poder seguir e não descair em zaragata. Em
momento algum, acusei Isabel Moreira de ser da Gestapo ou da Stasi.
Escrevi que «segue a escola de direitos humanos da Stasi e da Gestapo», o
que é diferente e é rigorosamente verdade. Porquê? Porque Isabel
Moreira tem-se especializado em perseguir e ordenar perseguições a
cidadãos e a profissionais com base nas suas convicções, opiniões e
afirmações, o que era uma das tarefas da Gestapo e da Stasi. De outras
polícias políticas também. É um triste ofício e, não raramente,
tenebroso.
Podemos constatar que esta obsessão com ordens profissionais e sua
subjugação ideológica tornou-se não só uma mania da deputada e dos que a
acompanham, mas um verdadeiro programa político. O propósito é claro:
usar os poderes de autoridade pública das Ordens para perseguir, difamar
e confinar os profissionais desafectos, impondo a agenda ideológica
isabélica e condicionando a própria liberdade técnica, científica e
profissional. Em qualquer Ordem, este programa é um abuso. Nas Ordens
relacionadas com a saúde, o programa é um perigo – um perigo para a
saúde pública.
Já há algum tempo que Isabel Moreira emerge a capitanear
profissionais e dirigentes alinhados, como o guru destes movimentos
disciplinares – melhor, direi a gurua, para não ferir
hipersensibilidades de género e acreditando que a palavra se diz tal
como perú e perua.
Por exemplo, no fim do ano passado, Isabel Moreira ingeriu
grosseiramente no período eleitoral na Ordem dos Psicólogos. Por essa
época, escreveu no “Expresso” um artigo elucidativo, cujo título diz
tudo do descoco extremista em que anda: «Pode um psicólogo violar a
Constituição?» Na altura pareceu ter dirigentes da Ordem dos Psicólogos
por conta. Agora, também em médicas, surgiram esbirros servis à
instrução Facebook – todas as classes podem albergar bufaria, delação,
velhacaria traiçoeira, gestos pidescos. É da natureza humana, capaz do
melhor e do pior também.
Se eu fosse a um psicólogo ou a um médico e este me mandasse esperar
porque tinha de ir ver a Constituição, ou tal cena se passasse com
alguém da minha família, aí, sim, é que eu faria queixa à Ordem, por
estar diante de alguém manifestamente inapto para atender doentes. Os
profissionais de saúde devem agir unicamente de acordo com as regras da
sua arte e ciência, dando o melhor das suas capacidades técnicas. Algum
que tenha a Constituição como fonte é porque não bate bem – e precisa de
ir descansar. Seria de fugir a sete pés desse consultório.
Porém, a pergunta já tem inteiro cabimento aplicado à própria: «Pode uma deputada violar a Constituição?» Pelos vistos, pode. Não deve, mas, se for Isabel Moreira, acha que pode.
A Constituição garante: «todos têm o direito de exprimir e divulgar
livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer
outro meio» – excepto, diz Moreira, se for Gentil. A Constituição
assegura: «o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado
por qualquer tipo ou forma de censura» – mas a deputada anda a montar
uma maquinaria que, por vagas consecutivas de intimidação, construa
apertada teia de censura e auto-censura. A Constituição estipula:
«ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de
qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência,
sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas
ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou
orientação sexual» – mas Isabel Moreira e companhia pretendem ver
prejudicados e privados de direitos os que têm convicções políticas e
ideológicas que lhes desagradam e privilegiados e beneficiados os
prosélitos. A Constituição determina: «os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas» – mas Isabel
Moreira entende que só se aplicam como, quando e onde quer; e ataca como
se não se aplicasse na Ordem dos Médicos quanto a Gentil Martins. Este,
por autoritário ditame isabélico, deixaria de ser um par para passar a
ser um pária.
A constância e a força com que a deputada se aplica a este sórdido
exercício recorrente fez-me pensar que a maquinaria que pôs de pé é
servida por um poderoso tractor, importado da Coreia do Norte, para onde
fora pela cooperação da defunta RDA: um clássico Kirovets de 1975, o
tractor soviético K-701, máquina impressiva de 13 toneladas de
envergadura e 300 cavalos de potência. Um mimo! Desgastado já para usos
agrícolas, ainda dá bem para triturador de opinião, e os norte-coreanos
apreciam ajudar nestes usos.
O quadro em que vivemos é tanto mais deplorável quanto a generalidade
dos partidos consentem, quando não estimulam, estes desenvolvimentos
persecutórios, em flagrante abuso das leis e do seu espírito, dos
regulamentos e da autoridade pública. O problema não é só Isabel Moreira
cultivar a manipulação do Direito como amarra carcerária, em vez de
ferramenta e alavanca de liberdade. O problema é tudo isto rolar sem que
ninguém com peso, com voz e obrigação de voz, reaja e ponha as coisas
na ordem da liberdade.
Os partidos foram capturados antes das ordens profissionais, ou bem
por esta agenda, ou apenas pelo politicamente correcto – e são, assim,
pilotados pela tibieza, pela cobardia e pelo silêncio, quando não pela
conivência e cumplicidade. Por isso, nesta hora, os protestos estão
devolvidos unicamente à pura coragem individual e espontânea que se
solte da cidadania e se levante da sociedade civil – isto é, a liberdade
foi confinada ao território por excelência da liberdade, porque o
Estado já não a garante, antes consente ser instrumentalizado para
perseguir. É aqui que estamos.
Evelyn Beatrice Hall, biógrafa de Voltaire, escreveu uma frase célebre,
que ficaria colada ao filósofo francês: «Discordo do que você diz, mas
defenderei até à morte o seu direito de o dizer.» É uma bela frase
clássica da liberdade de expressão, normalmente atribuída ao próprio
Voltaire. Isabel Moreira e as duas médicas mancomunadas não conhecem a
frase, nem a ideia; ou, se a conhecem, violam-na, tal qual a
Constituição.
Percorrendo a literatura produzida por Isabel Moreira nestes
exercícios persecutórios, constata-se a sua absoluta frieza policial e a
implacável determinação do ódio que vocifera e com que pontapeia os
seus alvos. Percebe-se que não vacila, nem recua diante do olhar de um
homem ou de uma mulher, não hesita defronte da humanidade, não se
impressiona com a condição humana, não se comoveria diante do choro de
uma criança. Este caso de Gentil Martins mostra à sociedade e à
saciedade que não respeita uma carreira, que não venera a idade, que não
presta honra a um exemplo profissional, que não pára diante de cabelos
brancos.
Podia dizer o que entendesse. Podia irritar-se e mandá-lo bugiar.
Tinha o direito – e o dever – de discordar e contrapor assertivamente as
suas convicções. Mas não pode perseguir. E, muito menos, pode montar a
partir da Assembleia da República uma máquina de perseguição pública,
orientada contra indivíduos e visando a subjugação ideológica de
profissões.
Tem obrigação de ter respeito pela casa onde se senta e que aprecia
ser conhecida como a Casa das Liberdades. A canção dizia: «Não há
machado que corte a raiz ao pensamento.» Sim, não há Machado. Mas,
perigosamente, há Isabel. E lá foi o poeta pelo cano.
No seu post enfurecido que tudo começou, Isabel Moreira escrevia
«Chega!» É verdade. Basta! Páre com isto em nome da liberdade! Discuta.
Responda. Contradiga. Mas não persiga. Conheça a fronteira da liberdade e
não passe para o lado de lá.
Comentário:
Isabel Moreira é uma inquisidora. Se tivesse vivido no séc. XVI seria responsável por muitos mortos na fogueira. Se tivesse sido educada nos anos trinta, na Alemanha, seria uma eficiente agente da Gestapo. Se tivesse sido educada nos anos 50 na Alemanha de Leste, seria provavelmente uma das colaboradoras mais activas da STASI.
Quanto à PIDE, o seu pai dava-se bem com ela.
Porquê? Pela simples razão que esta Moreira por uma causa é capaz de tudo, mesmo denunciar ao poder do Estado quem pretende amarfanhar em virtude das suas ideias.
Conclusão: parece-me doida varrida.