quinta-feira, julho 06, 2017

O procurador na pele de bombeiro

João Ramos tem 58 anos, é solteiro e bom rapaz e é procurador do MºPº. Nas horas vagas organiza marchas populares ( a de Alfama) e preside a uma corporação de bombeiros, onde os fogos são frequentes ( Pampilhosa da Serra).
Em entrevista ao i que o procurou por essas facetas extra-profissionais diz duas ou três coisas que merecem destaque.




A primeira é sobre o juiz Carlos Alexandre que o procurador conhece, pessoal e profissionalmente, dando um testemunho importante para quem exerce o cargo numa solidão espiolhada. E é bem verdade o que afirma na capa sobre o juiz. 




A segunda é sobre uma ideia de Justiça e Tribunais, muito relativa mas pertinente: hoje é assim, amanhã não sabemos. " Nunca tive encanto pela Justiça. A justiça é sempre o resultado daquilo que acontece em determinado contexto e daquilo que se demonstra em determinado contexto"; " [a justiça] é uma aplicação do direito e o direito de hoje é um direito distinto do de amanhã", assim define o problema e a equação.



Ora a Justiça não será apenas isso. A Justiça não é apenas um resultado do que acontece num contexto, mas um sistema de valores juridicamente adoptados pela sociedade que existe e para cuja concretização e aplicação tem uma estrutura, geralmente organizada pelo Estado, ou pelo Poder. Se o sistema de valores se altera, gradual ou inopinadamente,  a justiça acaba por reflectir tal mudança. Mas se isto é assim, a relativização e o desencanto pela Justiça será sempre perene, uma vez que tal sistema de valores tende a alterar com o tempo,  começando por  ser contestado por minorias ou grupos.
Portanto se alguém contesta o actual sistema de valores que enforma uma certa ideia de justiça e  relativiza o resultado da sua aplicação, transforma-se num cínico cujos limites se tornam indefiníveis. Em termos filosóficos é coisa de somenos. Em termos práticos é de somar a outros exemplos, como o dos padres que perdem a fé ou os profissionais que não acreditam naquilo que fazem e se desgostam por isso.

Em terceiro lugar e derivado eventualmente desse relativismo, avulta o julgamento opinativo sobre o ocorrido nos incêndios dos dias de Junho deste ano.

 Em resumo,  o culpado das mortes foi o tempo, a dimensão dos sinistros e a falta de comando coerente e eficaz. Os bombeiros não poderiam fazer mais e os comandantes não comandaram num incêndio de tamanha dimensão, devido ao sistema existente.

Este juízo opinativo olvida a necessidade de buscar, "procurar", um elo de ligação de um efeito- a morte de dezenas de pessoas-  a uma causa concreta, a acção ou omissão determinante e exclusivamente relevante para tal.
É precisamente o sistema de justiça penal que temos o que deve conduzir tal indagação, perante a escala de valores em causa: a vida humana, o comportamento negligente de quem devendo actuar o não terá feito nas condições concretas exigíveis, a responsabilidade concreta por omissões concretas ou acções negligentes e principalmente a convicção da essencialidade de uma investigação imparcial com vista a um apuramento isento dessas responsabilidades.

O discurso deletério sobre responsabilidades reflecte um desencanto sobre a ideia de justiça. Partir de uma ideia de inevitabilidade de um efeito apenas com base em opinião plausível e nem sequer confirmada nos factos pode conduzir ao erro e à injustiça.

Sobre este assunto dos incêndios foi dito agora isto, por alguém que deve perceber um pouco mais:

 O coordenador do Observatório do Risco da Universidade de Coimbra afirmou hoje que o pior cenário "nunca foi equacionado" no combate às chamas em Pedrógão Grande e criticou a demora na activação dos planos municipal e distrital de emergência. O investigador defende ainda a criação de uma associação de vítimas da zona afectada pelo incêndio. 

"Há um protocolo de actuação da protecção civil, que está bem definido e que é bom. Numa situação daquelas, o protocolo obrigaria ao posicionamento de meios e preparação para uma situação de pior cenário. Isso nunca foi equacionado", notou à agência Lusa o investigador José Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Com um terreno com declives acentuados, onde reina a monocultura de espécies como o eucalipto ou o pinheiro bravo e com uma projecção meteorológica que apontava para risco máximo de incêndio, "a protecção civil devia ter posicionado os meios e estar mais preparada para um acontecimento extremo", disse à agência Lusa o investigador.
Quando se perde o controlo do combate ao incêndio, dever-se-ia ter mobilizado e antecipado "grupos de reforço", notou, considerando que, quando as chamas atingem uma determinada dimensão, não foi logo "feita a divisão de sectores de combate".
"O protocolo não foi aplicado e as directivas não foram seguidas", constatou.
Em declarações à Lusa, José Manuel Mendes sublinha ainda que "a hierarquia de comando foi tomada muito tarde" e o "plano distrital e o plano municipal são activados tardíssimo".
O especialista realça que o secretário de Estado da Administração Interna, que chegou ao terreno na noite do incêndio, "deveria ter activado o plano nacional de emergência" e convocado de imediato "a Comissão Nacional de Protecção Civil", que apenas se reuniu "na segunda-feira".
O investigador aponta também para a forma como são escolhidos os comandantes da protecção civil, considerando que não deveriam "ser nomeados politicamente".
"Devia ser por concurso público", atendendo ao conhecimento, experiência e capacidade de liderança, defendeu, recordando que numa situação extrema é muito importante a "resiliência institucional"- a necessidade de haver "um comandante respeitado e com capacidade de liderança" a liderar as operações no terreno.
José Manuel Mendes frisou ainda que, com o incêndio de Pedrógão Grande, que causou a morte de 64 pessoas, a confiança na protecção civil "é zero" e poderá levar a comportamentos mais defensivos por parte das populações em cenários de catástrofe.

É exactamente isto que tem que ser dito. E a investigação criminal e não só deve ter isto sempre em mente. Antes que se consolide a "narrativa" que já está em marcha de que o que sucedeu foi obra do destino e pouco mais.

Um downburst informativo para lavar consciências não serve as 64 vítimas que morreram e as demais que sofreram algo insuportável. A Justiça é outra coisa para além daquilo que acima ficou dito: dar a cada um o que lhe é devido.

Questuber! Mais um escândalo!