João Ramos tem 58 anos, é solteiro e bom rapaz e é procurador do MºPº. Nas horas vagas organiza marchas populares ( a de Alfama) e preside a uma corporação de bombeiros, onde os fogos são frequentes ( Pampilhosa da Serra).
Em entrevista ao i que o procurou por essas facetas extra-profissionais diz duas ou três coisas que merecem destaque.
A primeira é sobre o juiz Carlos Alexandre que o procurador conhece, pessoal e
profissionalmente, dando um testemunho importante para quem exerce o
cargo numa solidão espiolhada. E é bem verdade o que afirma na capa sobre o juiz.
A segunda é sobre uma ideia de Justiça e Tribunais, muito relativa mas pertinente: hoje é assim, amanhã não sabemos. " Nunca tive encanto pela Justiça. A justiça é sempre o resultado daquilo que acontece em determinado contexto e daquilo que se demonstra em determinado contexto"; " [a justiça] é uma aplicação do direito e o direito de hoje é um direito distinto do de amanhã", assim define o problema e a equação.
Ora a Justiça não será apenas isso. A Justiça não é apenas um resultado do que acontece num contexto, mas um sistema de valores juridicamente adoptados pela sociedade que existe e para cuja concretização e aplicação tem uma estrutura, geralmente organizada pelo Estado, ou pelo Poder. Se o sistema de valores se altera, gradual ou inopinadamente, a justiça acaba por reflectir tal mudança. Mas se isto é assim, a relativização e o desencanto pela Justiça será sempre perene, uma vez que tal sistema de valores tende a alterar com o tempo, começando por ser contestado por minorias ou grupos.
Portanto se alguém contesta o actual sistema de valores que enforma uma certa ideia de justiça e relativiza o resultado da sua aplicação, transforma-se num cínico cujos limites se tornam indefiníveis. Em termos filosóficos é coisa de somenos. Em termos práticos é de somar a outros exemplos, como o dos padres que perdem a fé ou os profissionais que não acreditam naquilo que fazem e se desgostam por isso.
Em terceiro lugar e derivado eventualmente desse relativismo, avulta o julgamento opinativo sobre o ocorrido nos incêndios dos dias de Junho deste ano.
Em resumo, o culpado das mortes foi o tempo, a dimensão dos sinistros e a falta de comando coerente e eficaz. Os bombeiros não poderiam fazer mais e os comandantes não comandaram num incêndio de tamanha dimensão, devido ao sistema existente.
Este juízo opinativo olvida a necessidade de buscar, "procurar", um elo de ligação de um efeito- a morte de dezenas de pessoas- a uma causa concreta, a acção ou omissão determinante e exclusivamente relevante para tal.
É precisamente o sistema de justiça penal que temos o que deve conduzir tal indagação, perante a escala de valores em causa: a vida humana, o comportamento negligente de quem devendo actuar o não terá feito nas condições concretas exigíveis, a responsabilidade concreta por omissões concretas ou acções negligentes e principalmente a convicção da essencialidade de uma investigação imparcial com vista a um apuramento isento dessas responsabilidades.
O discurso deletério sobre responsabilidades reflecte um desencanto sobre a ideia de justiça. Partir de uma ideia de inevitabilidade de um efeito apenas com base em opinião plausível e nem sequer confirmada nos factos pode conduzir ao erro e à injustiça.
Sobre este assunto dos incêndios foi dito agora isto, por alguém que deve perceber um pouco mais:
O coordenador do Observatório do Risco da Universidade de Coimbra
afirmou hoje que o pior cenário "nunca foi equacionado" no combate às
chamas em Pedrógão Grande e criticou a demora na activação dos planos
municipal e distrital de emergência. O investigador defende ainda a
criação de uma associação de vítimas da zona afectada pelo incêndio.
"Há um protocolo de actuação da protecção civil, que está bem definido e
que é bom. Numa situação daquelas, o protocolo obrigaria ao
posicionamento de meios e preparação para uma situação de pior cenário.
Isso nunca foi equacionado", notou à agência Lusa o investigador José
Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra.
Com um terreno com declives
acentuados, onde reina a monocultura de espécies como o eucalipto ou o
pinheiro bravo e com uma projecção meteorológica que apontava para risco
máximo de incêndio, "a protecção civil devia ter posicionado os meios e
estar mais preparada para um acontecimento extremo", disse à agência
Lusa o investigador.
Quando se perde o controlo do combate ao
incêndio, dever-se-ia ter mobilizado e antecipado "grupos de reforço",
notou, considerando que, quando as chamas atingem uma determinada
dimensão, não foi logo "feita a divisão de sectores de combate".
"O protocolo não foi aplicado e as directivas não foram seguidas", constatou.
Em
declarações à Lusa, José Manuel Mendes sublinha ainda que "a hierarquia
de comando foi tomada muito tarde" e o "plano distrital e o plano
municipal são activados tardíssimo".
O especialista realça que o
secretário de Estado da Administração Interna, que chegou ao terreno na
noite do incêndio, "deveria ter activado o plano nacional de emergência" e
convocado de imediato "a Comissão Nacional de Protecção Civil", que
apenas se reuniu "na segunda-feira".
O investigador aponta também
para a forma como são escolhidos os comandantes da protecção civil,
considerando que não deveriam "ser nomeados politicamente".
"Devia
ser por concurso público", atendendo ao conhecimento, experiência e
capacidade de liderança, defendeu, recordando que numa situação extrema é
muito importante a "resiliência institucional"- a necessidade de haver
"um comandante respeitado e com capacidade de liderança" a liderar as
operações no terreno.
José Manuel Mendes frisou ainda que, com o
incêndio de Pedrógão Grande, que causou a morte de 64 pessoas, a
confiança na protecção civil "é zero" e poderá levar a comportamentos
mais defensivos por parte das populações em cenários de catástrofe.
É exactamente isto que tem que ser dito. E a investigação criminal e não só deve ter isto sempre em mente. Antes que se consolide a "narrativa" que já está em marcha de que o que sucedeu foi obra do destino e pouco mais.
Um downburst informativo para lavar consciências não serve as 64 vítimas que morreram e as demais que sofreram algo insuportável. A Justiça é outra coisa para além daquilo que acima ficou dito: dar a cada um o que lhe é devido.