Um dos fenómenos inquietantes do ano que passou foi a completa ostracização a que foi votada em Portugal a lembrança da Reforma Protestante expressa nas 95 teses publicadas há 500 anos por Lutero, em Wittenburgo, na Alemanha.
Em França, não passou despercebida. E muito menos na Alemanha...
Qual a razão de se dar tão pouco relevo em Portugal a um acontecimento de tamanha importância?
Não sei. O Protestantismo, em Portugal nunca foi popular e a Igreja Católica, durante muitos e muitos anos hostilizou em sermões essa deriva religiosa do cristianismo. Influenciado por isso, quando tinha 13 anos risquei de uma lista do almanaque do Século duas publicações protestantes. Heréticas, certamente...
Não me lembro de nenhum artigo de jornal ou revista que fossem publicados sobre o assunto durante estes anos todos em que me conheço leitor de imprensa e que fosse digno de relevo. Verdade seja dita que o mesmo se pode dizer de outras religiões e credos. Dá a impressão que não precisamos de mais informação sobre tais assuntos.
Sobre a Alemanha, país de origem da Reforma, também não sabemos muito mais. A História contemporânea que aparece em artigos de divulgação mediática é ainda mais pobre relativamente a esse tema do que ao de Salazar e ao fassismo tratados à maneira de Rosas&Flunser mais os vários pachecos pereiras avulsos.
Nem sempre foi assim. Em 26.4.1968 a revista Vida Mundial publicou este número exemplar a vários títulos.
O tema da capa era Wernher von Braun, o cientista físico alemão que nasceu na Silésia e casou na Baviera e desenvolveu experiências com foguetões, temática estudada por outro físico alemão, Hermann Oberth, romeno de nascimento. Foram eles quem desenvolveu o projecto V-2 que poderia ter alterado o curso da II Guerra Mundial, caso o tivessem realizado a tempo, porque trabalharam ambos para os nazis de Hitler. Em 1943, data da apresentação do projecto, era demasiado tarde.
Von Braun entregou-se aos americanos em 1945, juntamente com os seus colaboradores e foram logo aproveitados por estes para integrarem o projecto Saturno que viria a culminar com a alunagem em Junho de 1969.
Na época da publicação desta revista tal ainda era uma esperança. Porém, a leitura do artigo mostra como a Alemanha estava na vanguarda do progresso científico para fins militares, nos anos 40 do século passado:
No mesmo número da revista dá-se conta ainda de outro fenómeno, na Alemanha: a ascensão do radicalismo da extrema-esquerda que desembocou nos atentados terroristas do Baader-Meinhof.
No artigo conta-se a pequena história de Rudi Dutschke, "antigo membro de um grupo evangélico" ( et pour cause...) que descobriu Herbert Marcuse como o ideólogo das soluções que propunha para a sociedade alemã...
Como a notícia dá conta, Rudi foi atacado por outro extremista, neste caso da extrema oposta, nazi confesso e tal suscitou uma onda de protestos estudantis, ( antes de Maio de 1968 em França) que pretendiam uma coisa simples: que o "magnate da imprensa Axel Springer" largasse mão do seu império mediático e o entregasse ao Estado local, ao burgomestre de Berlim. Portanto, a ideia seria nacionalizar a imprensa de Springer, uma espécie de Paulo Fernandes da Cofina.
Resultado? Confrontos de jovens com a polícia. Ingredientes? Estão lá todos: evangélicos pacifistas que pretendem impor as ideias de Marcuse, Che , Mao e tutti quanti, contra a burguesia. O que queriam os "estudantes" francesa de Maio de 1968? A mesmíssima coisa com os mesmíssimos ideólogos.
E por cá? Bem, por cá demorou um pouco mais, mas também chegou a onda que se desenrolou até Abril de 1974 e muito tempo depois, até agora, ao actual Bloco de Esquerda.
Há 50 anos, como andam por aí a propalar os arautos do antifassismo primitivo, os estudantes portugueses de Lisboa descobriram a miséria do país, após as cheias nessa região. Porém, a rebeldia protestante já vinha de trás, de 1962 e das greves estudantis. Nessa altura o Marcuse não contava, mas Marx, sim. E o comunismo soviético também. Depois, a rebeldia mudou de agulha, talvez por causa dos acontecimentos de Praga, que perfazem 50 anos o ano que vem, mas aposto que poucos irão falar nisso.
Em Abril de 1969 houve uma manifestação mais séria, em Coimbra, dos novos rebeldes do socialismo democrático.
Em 22 de Janeiro de 1971 a revista Vida Mundial dava ao leitor português a ideia das ideias de Marcuse: libertarianismo com um copo de whisky à mistura em capas de revistas...
Marcuse foi aluno de Heidegger e nasceu em Berlim, na Alemanha onde estudou e se formou. Durante a
guerra foi para os EUA e naturalizou-se americano. Tal como Von Braun,
com a diferença de que este foi apenas no fim da guerra.
Quem era Marcuse? A revista o diz: "leitor de Hegel, com a sua dialética, de Nietzsche, com o seu biologismo, de Marx, com o seu pensamento revolucionário, de Freud, com a importância dada ao sexo, e também de Jean-Jacques Rousseau, com o seu optimismo pelo "homo naturalis"...
Juntem-lhe Rosa Luxemburgo ou Trotski e poucos mais e têm aqui as ideias do Bloco de Esquerda, em 1968 e 1971, propagandeadas pela revista Vida Mundial que era uma revista...de esquerda, naturalmente. Quem assina o artigo? A. Ferreira Marques.
E também é certo que a revista foi "visada pela Comissão de Censura"...e o que seria se não fosse?
Conclusão? A Alemanha deveria ser melhor estudada. Por isso é que ando a ler este magnífico livrinho ( 237 pgs) publicado em França, sobre Josef Mengele. Um romance realista, "verídico" cuja existência me foi dada a conhecer num artigo do Público de 1 de Dezembro passado. O autor já ganhou um prémio literário e merece-o porque o livro está muito bem escrito. E é sobre a Alemanha.
Para quem não souber, Josef Mengele foi um médico que como militar foi destacado para Auschwitz e lá fez experiências biológicas com seres humanos, judeus na maior parte. Era encarregado de separar à entrada do campo, os indivíduos que lhe interessavam para tais experiências e responsável por isso, das barbaridades aí cometidas.
No fim da guerra logrou escapar para a Argentina, passando ao Paraguai e chegando ao Brasil onde viveu até 1979, altura em que se afogou, eventualmente devido a ataque cardíaco.
O tema do livro é a história dessa fuga sem regresso.
Comparando com Von Braun, este (e muitos outros cientistas), potencialmente ( e realmente porque ajudou a conceber as V-2 que fizeram muitos estragos em Londres) tinha maior poder de extermínio que o médico de Auschwitz, mas foi poupado, recuperado e reciclado pelos americanos. Von Braun foi um colaborador directo de Hitler, cujas experiências e inventos poderiam ter conduzido à bomba definitiva para acabar com a guerra. Mengele foi perseguido pelos israelitas, mas ao contrário de Eichmann nunca chegou a ser encontrado, na América do Sul onde se refugiou. Não tinha valor de uso nem de troca...
Para melhor compreensão do conteúdo do livro e até agradecimento pela oportunidade de tomar conhecimento do mesmo ( a primeira edição é de Agosto de 2017 e esta já é a segunda, de Novembro) aqui fica o artigo do Público ( Ipsilon) de 1 de Dezembro de 2017: