Uma das questões mais interessantes que surgiu após o final da II Guerra Mundial foi a do conhecimento rigoroso e preciso acerca do que se passou nos campos de concentração alemães, espalhados pela Europa Central durante a II Guerra e o papel dos alemães nesse assunto.
Uma primeira questão é a de saber se esses campos se destinaram primordialmente a arrebanhar judeus e outras raças malditas a fim de os acondicionar num processo sistemático de extermínio, por este método ou aquele.
A resposta a esta questão está dada em centenas ou milhares de livros e artigos dispersos. A quase unanimidade da opinião agora publicada sustenta que sim, que foi para tal desiderato. Porém, uma primeira dúvida é saber desde quando tal aconteceu.
É costume dizer-se agora que para os alemães a decisão final para solucionar o problema dos judeus, e que consistia em livrarem-se deles no solo da região que queriam como pátria alargada, a futura Germânia, começou numa reunião na pacata villa, na rua Grosser 56/58, junto ao lago de Wannsee nos arredores de Berlim, em 20 de Janeiro de 1941. Nesse local agora transformado num museu que se pode visitar, explica-se que altos dignitários do regime nazi, sob a égide de Reynhard Heydrich ( assassinado pela resistência checa em Maio de 1942) e na presença de Adolf Eichmann decidiram o método de extermínio julgado mais eficaz. Até se mostram documentos, actas, em que tal se resolve. A eliminação física de judeus já tinha começado no Leste há muito tempo e antes de Wannsee os planos eram no sentido de deportar os judeus par ao Leste.
Portanto a questão fundamental é esta: os alemães, mormente os nazis, queriam eliminar fisicamente todos os judeus que apanhassem e que segundo as contas que apresentaram em Wannsee seriam à roda de 11 milhões, como "solução final", expressão que lhes é atribuída e consta das minutas apócrifas mostradas em Wannsee?
Quem responde a esta questão com credibilidade suficiente para não deixar qualquer dúvida razoável? Não sei, até hoje.
Este artigo de Irene Flunser Pimentel, no Público do passado dia 14 de Janeiro, suscita mais dúvidas do que respostas, mesmo para quem como a autora, não duvide um segundo sequer, do propósito maléfico dos nazis.
Aproximamo-nos de 27 de Janeiro, Dia Internacional da Memória do
Holocausto ou da Shoah. Foi escolhido, em 2014, por ter sido nesse dia,
em 1945, que o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau (Polónia) foi
libertado pelo Exército Vermelho soviético. Como se sabe, a
historiografia sobre a Shoah tem sido muito abundante, sendo abordadas,
para explicar esse terrível acontecimento, questões como a do
anti-semitismo e da eugenia, das etapas que levaram ao Holocausto, da
resistência — ou falta dela — ao nacional-socialismo, bem como da
singularidade desse terrível evento relativamente a outras atrocidades
ou o facto de ser comparável com estas.
Aproveito a proximidade da data para referir uma abordagem que tem
sido central ultimamente quando se trata do tema e que pode servir de
exemplo à análise sobre qualquer ditadura, incluindo a portuguesa.
Trata-se dos estudos sobre os carrascos e os seus motivos, que
constituem já um subtema de estudo com o nome em alemão de Täterforschung
(investigação sobre os perpetradores), não só na historiografia, mas
também na antropologia, psicologia, ciências políticas, direito e até na
ficção. É que torturadores e criminosos de massa não nasceram assim,
tornaram-se perpetradores, como diz Françoise Sironi, repegando uma
expressão de Simone de Beauvoir sobre as mulheres. O criminoso Reinhard
Heydrich, braço direito SS de Heinrich Himmler, aderiu tarde ao partido
nacional-socialista, e para arranjar um emprego, pois não foi aceite na
Marinha de Guerra.
De um modo geral, os estudos sobre o Holocausto
e os perpetradores caracterizaram-se, entre os anos 1940 a 60, pela
demonização e psicopatologização dos envolvidos. Os julgamentos do
pós-II Guerra, a partir do de Nuremberga, nomeadamente o dos Einsatzgruppen,
em 1958, e sobretudo o de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961, bem
como, depois, o de Auschwitz, em Frankfurt, deram a conhecer os
principais criminosos, proporcionando a publicação de sólidas análises
sobre os motivos, estruturas e métodos dos líderes do regime
nacional-socialista. A sua forma comum de defesa assumida foi em geral a
de que “apenas” eram executantes que teriam obedecido a ordens
superiores.
A partir de 1961, na senda de Hannah Arendt (1906-1975) e Raul
Hilberg (1926-2007), estabeleceu-se uma segunda fase na investigação,
que interpretou o grupo de perpetradores enquanto burocratas e
assassinos de secretária. Para Hannah Arendt, “o mal radical” (depois
qualificado de “banal”) é “obra da liberdade dos homens vulgares”,
assinalando a filósofa que “os autores do mal não têm uma alteridade
absolutamente diferente” da generalidade dos seres humanos. Arendt foi
muito criticada, e também por Hilberg. Em The Destruction of the European Jews
(1961), interpretou a Shoah como um processo que funcionou em etapas
sucessivas, levadas a cabo por uma multitude de decisores no seio de uma
vasta aparelhagem burocrática, através de um processo desumanizante que
não foi travado por qualquer ética, moral ou religião.
O historiador Raul Hilberg tinha sido influenciado, por seu turno, por Franz Neumann (1900-1954) que, em Behemoth,
de 1942, atribuiu ao regime nazi a dupla característica de surgir como
um poder monolítico submetido a um chefe absoluto, mas que, nos
bastidores, resultava da lei da selva partilhada por quatro poderes
rivais e universos semiautónomos: a burocracia estatal; o Exército; a
grande indústria; o partido nazi. O poder de Hitler residia na sanção
que dava aos compromissos passados entre as forças que se digladiavam
entre si, fora do círculo dos projectores.
Na abordagem historiográfica da Shoah, uma
preocupação central passou a ser a de descobrir os motivos dos
carrascos, desenvolvendo-se, até aos anos 90 do século XX, três
principais teorias que contribuem para a explicação do comportamento dos
perpetradores: as narrativas intencionalistas, as estruturalistas e as
situacionistas. Os chamados “intencionalistas” viram no extermínio a
aplicação de um programa predeterminado e metodicamente planeado imposto
de cima para baixo, derivando da vontade anti-semita de Hitler e da sua
iniciativa individual, mas, muitos historiadores, apresentaram opiniões
mais matizadas. Já os “funcionalistas”, retomando a tese de Neumann,
nos anos 70, tenderam a analisar o Holocausto enquanto crime em massa
“mecanizado” por um “aparelho industrializado de genocídio”.
Para
Martin Broszat (1926-1989), o Estado nazi foi uma “policracia”
pluridimensional, na qual a autoridade de Hitler constituía a garantia
suprema da coesão do sistema. Por seu turno, Hans Mommsen (1930-2015),
autor do conceito de “radicalização cumulativa” para descrever os
diversos estádios que levaram ao Holocausto, reconheceu sobretudo o
papel crucial de cumplicidade das elites alemãs com o regime. Ambos
puseram em causa a ideia de que a evolução do Terceiro Reich resultaria
da aplicação de um plano pré-estabelecido, há muito anunciado no Mein Kampf, dando centralidade à análise do sistema caótico nazi.
Prendendo-se com uma crítica do historicismo, desencadeou-se, nos anos 1980, no meio intelectual da RFA, a chamada historikerstreit (“querela
dos historiadores”). Originada por uma ideia controversa do historiador
alemão Ernst Nolte (1923-2016), segundo o qual o extermínio dos judeus
deveria ser visto como uma forma de reacção aos crimes estalinistas, a
contestação surgiu através o filósofo Jürgen Habermas, que, num artigo
do jornal Zeit (11 de Julho, 1986), discutiu o estatuto do
nazismo na memória colectiva alemã e a centralidade e singularidade do
genocídio dos judeus, transformando a reavaliação do nazismo numa
questão política e nacional. Os “funcionalistas” foram também criticados
de historicismo e de relativizarem o quadro político, ideológico e
moral específico, bem como substituírem a condenação moral do nazismo
pela empatia com o objecto de estudo (Saul Friedländer).
As
abordagens intencionalistas e funcionalistas foram depois matizadas
através de sínteses com os aspectos positivos de ambos os lados. O
historiador alemão Norbert Frei assinalou a importância do Führer
como suporte carismático do poder e de arbitragem de conflitos, assente
numa multiplicidade de centros de decisão e de conflitos. A coerência
do “estado do Führer” (Der Führerstaat. Nationalsozialistische Herrschaft 1933-1945,
editado em 1987) residiria na preeminência de um chefe supremo, que, ao
mesmo tempo, soube responder à necessidade de integração social dos
alemães, cconseguindo obter a colaboração de pessoas vulgares que
cooperaram no reforço do anti-semitismo e das medidas raciais.
Ian
Kershaw, autor na segunda metade dos anos 1980 de obras sobre a opinião
pública no III Reich e sobre Hitler, escreveria uma biografia
monumental deste último em dois tomos: Hitler, 1889-1936: Hubris, publicado em 1998; e Hitler, 1936-1945: Nemesis,
publicado em 2000. Ao apresentar o paradoxo de este não estar na origem
de tudo mas ter sido indispensável, explicou o poder de Hitler pelo seu
carisma político, concluindo que este resultou na colaboração de todos
aqueles que, na Alemanha, ocuparam uma posição de influência, cujo
objectivo foi servir o Führer, esforçando-se por adivinhar e pôr em prática os seus desejos.
É certo que, entre os sobreviventes do Holocausto, Primo Levi
(1919-1987) — que só conseguiu publicar o seu primeiro livro em 1958,
depois de ter visto recusada a edição em 1947, e só mais tarde
descoberto, com Se Isto é Um Homem, A Trégua, Os Que Sucumbem e os Que se Salvam
—, caracterizou Auschwitz como uma fábrica invertida da morte, onde não
cabiam unicamente as vítimas (“zona branca”) e os carrascos (“zona
negra”), mas uma enorme “zona cinzenta” composta por uma “classe híbrida
de prisioneiros-funcionários”. Um terceiro estádio da análise
historiográfica, na senda de Christopher Browning, influenciado pelo
conceito de “zona cinzenta” de Levi, passou a originar novas
representações dos perpetradores, vistos como “homens vulgares”.
No seu livro de 1992, Ordinary Men, Reserve police battalion 101 and the final solution in Poland,
Browning revelou criminosos nazis, feitos do mesmo tecido (humano) dos
outros, cujos actos resultaram, em parte, de circunstâncias em que se
operou uma passagem do normal para o patológico no seio de um sistema em
que os fins justificam os meios. Browning mostrou que a maioria dos
elementos do Batalhão 101, que mataram judeus na Polónia, eram técnicos
amorais, cujas iniciativas “de baixo” tornaram desnecessárias a
explicitação precisa das ordens “de cima”. O autor concluiu que, no seio
de qualquer colectivo social, o grupo dominante exerce uma tremenda
pressão e impõe as normas morais.
Por outro lado, as noções de lealdade, dever e disciplina baniram
quaisquer considerações humanas e morais do seio dos “perpetradores”.
Certo
é que a investigação sobre os perpetradores passou a examinar as
“circunstâncias” situacionais, paralelamente às motivações ideológicas,
abordagem a partir da qual se baliza o início dos estudos sobre
perpetradores numa perspectiva “situacionista”.
Contrariamente à abordagem multicausal de Browning, ao estudar o mesmo grupo (Hitler’s Willing Executioners,
de 1996), Daniel Goldhagem afirmou através de uma postura essencialista
que a história cultural da Alemanha foi marcada por um anti-semitismo “eliminacionista”, principal
motivo de os alemães levarem a cabo a Shoah. Na controvérsia à volta do
livro de Goldhagen, com base nas mesmas fontes de Browning, este
concluiu que uma combinação de factores situacionais e ideológicos
concorreram para desumanizar as vítimas, transformando-os de “homens
vulgares” em “executantes voluntários”.
A chamada “Täterforschung” desenvolveu-se de forma
exponencial, a partir dos anos 90, entrando numa nova fase. Da análise
da máquina do extermínio, levada a cabo sobretudo pelos
“funcionalistas”, houve um regresso ao estudo dos “actores”, através de
perspectivas diversificadoras, segundo as quais “os criminosos entre nós
não são só assassinos, mas parecem-se connosco”, o que aliás “lhes
permite viver em anonimato”. Seguindo alguns dos seus antecessores, os
estudos actuais não colocam a agência do Holocausto nos comandos
centrais da estrutura (Hitler e Himmler), mas entre os perpetradores
directos da periferia. Não os visiona, porém, como marionetas ou robôs,
encarando-os, ao invés, enquanto agentes históricos que levaram a cabo o
seu “trabalho letal” de forma “voluntária, espontânea e entusiástica”.
No final do século XX e no início do XXI, a historiografia alemã
dedicou-se abundamentemente ao estudo dos perpetradores, mas de novo
centrado sobre a ideologia racial anti-semita. Um dos críticos dos
“funcionalistas”, Saul Friedländer, em The Years of Extermination
(2007), daria especial relevo ao “anti-semitismo redentor” que desde o
início teria contido as sementes do genocídio. Por seu lado, Gerhard
Paul mostrou que o paradigma do crime “mecanizado” cometido por
burocratas banais, enquanto explicação da Shoah, teria descambado num
“automatismo sem pessoas”. Este historiador alemão, que colaborou
frequentemente com Klaus-Michael Mallmann em estudos sobre a Gestapo,
dirigiu uma obra antológica acerca dos perpetradores, Die Täter der Shoah. Fanatische Nationalsozialisten oder ganz normale Deutsche?
(“Os perpetradores da Shoah. Nazis fanáticos ou alemães completamente
normais?”), de 2002, onde é assinalado o regresso da ideologia, na forma
de sistema de valores nazis, crenças e de mentalidade, com um papel
central na preparação de indivíduos para o massacre de inocentes, com
pouca angústia mental.
Muito devido à abertura dos arquivos na
Europa de Leste e da Rússia, além da ideologia, regressou também a
questão da relação entre o centro e a periferia, a relação entre as
ordens de cima e as iniciativas de baixo, bem como o papel das
instituições regionais da administração de ocupação, com um enfoque
sobre os actores e actrizes. Foram colocadas em causa ideias feitas, por
exemplo sobre a “obediência a ordens”, a brutalização provocada pela
guerra e o impacto da propaganda nos elementos que se dispuseram a
fuzilar civis. Muitos historiadores abandonaram as tentativas para
encontrar generalizações sobre tipos de perpetradores, em favor de
abordagens acerca vários grupos com papéis diversos. Foram também
levados a cabo estudos prosopográficos das principais instituições
nazis, entre as quais se contaram o Ministério dos Negócios Estrangeiros
nazi, o SD — Sicherheitsdienst (serviço de segurança nazi de espionagem
e contra-espionagem no estrangeiro) ou a RSHA —
Reichssicherheitshauptamt (Gabinete Central de Segurança do Reich, órgão
que centralizava e controlava as polícias de segurança nazis
Gestapo-SD, Kriminal Polizei e Ordnund Polizei).
O conceito de
“geração” tem sido muito proveitoso, na análise da emergência, na
hierarquia nazi, de uma “elite ideológica”, formada na universidade,
incluindo defensores de um “racismo científico”, que estiveram no centro
do aparelho policial SS de Himmler e Heydrich. Götz Aly e Susanne Heim
caracterizaram esses “planificadores étnicos” como especialistas e
profissionais defensores de uma “economia política da Solução Final”. Da
mesma forma, continuaram os estudos sobre os níveis médio e baixo,
incluindo os “atiradores” dos Einsatzkommandos, das Waffen-SS e também da Wehrmacht.
Uma
questão também levantada pelos estudos locais é a dos actores não
alemães do Holocausto: estónios, romenos, ucranianos, letões, lituanos
ou croatas. Os estudos regionais ilustram o que Kershaw quis dizer com “working towards the Führer” (“trabalhando para o Führer”),
através da criação pelos nazis de uma “comunidade de violência” nas
quais os perpetradores de todas as origens e posições ideológicas
cometeram terríveis crimes. Wendy Lower (Nazi Empire Building and the Holocaust in Ukraine,
2005) criou o conceito de “obediência por antecipação” para mostrar de
que forma os líderes nazis modelaram os acontecimentos a nível local.
Tanto ela, como Jürgen Matthäus (Naziverbrechen. Täter, Taten, Bewältigungsversuche,
2013), com o conceito de “escalada controlada”, concluem que oficiais
subordinados se revelaram desejosos em quererem mostrar a adopção de
medidas cada vez mais radicais.
Sabe-se hoje que centenas de
milhares de alemães e austríacos planearam, organizaram, levaram a cabo e
ajudaram às perseguições e assassinatos de judeus. Colaboraram com eles
milhares de alemães étnicos (Volksdeutsche) e centenas de
milhares de auxiliares estrangeiros. No grupo central de homens que
organizaram o genocídio estiveram ideólogos comprometidos e voluntários,
embora não seja possível estabelecer uma relação causal entre o
fanatismo anti-semita e o assassinato de judeus. E mesmo os ideólogos
racistas necessitaram de um processo de “radicalização cumulativa”
(expressão de Mommsen) para passarem das ideias extremas aos actos mais
criminosos, como o foi a Shoah.
Não proporcionar situações e
circunstâncias idênticas como aconteceu, por exemplo, com a guerra total
à URSS em Junho de 1941 é uma das tarefas dos actuais cidadãos globais.
Mas para isso é necessário conhecer o passado e os motivos dos
assassinos e torturadores das várias ditaduras, incluindo da portuguesa.
O facto de os historiadores do século XX, do pós-guerra terem apresentado a resposta àquela questão de vários modos e nem todos esclarecedores, permite a dúvida que não se confunde com negação sistemática. Esta aliás, confunde-se é com a afirmação sistemática do "dogma", como por exemplo o artigo de Francisco Teixeira da Mota no Público e hoje. É mais um dos que não tem dúvidas e parece que também achará que raramente se enganou...
O título então, é um paradigma de uma estultícia que ronda a mais rematada palermice: somos todos assassinos?, ou seja, seremos todos capazes de matar como os alemães fizeram? Enfim...