sábado, novembro 23, 2019

A música panfletária de José Mário Branco, antes de 1974


Observador, crónica de Alberto Gonçalves, sobre JMB:

(...)
Mantenho que JMB era melhor músico do que os seus pares do “canto de intervenção”. Não é grande proeza: quase todos os pares eram de uma indigência medonha. Por muito que tentem, os militares de Guantánamo não arranjam forma de tortura comparável à “Pedra Filosofal” de Manuel Freire. E quem diz o sr. Freire diz as dezenas de “baladeiros” que, de tanto educarem as massas, não aprenderam quatro ou cinco acordes. A verdade é que em Novembro de 2019 as canções de JMB soaram-me insípidas, derivações suburbanas das “recolhas” de Giacometti com uns pozinhos ocasionais de “chanson”. As letras, para lá do programa ideológico, são sentimentalismo adolescente. Os arranjos, às vezes curiosos, são puro 1970 e puro Terceiro Mundo. A voz é fracota e zangada. O GAC é repugnante. “Inquietação”, não fosse cantada naquele tom de fiscal antipático e não tivesse subtraído a imagem central a Pessoa, não é má. Em suma, é possível que JMB seja um dos nomes maiores da música popular portuguesa, o que é igual a falar nos vultos imortais da ópera do Sudão. Para efeitos práticos, tirando Amália e talvez Carlos Paredes, a relevância da música popular portuguesa a leste de Badajoz é comparável à da Web Summit.
(...)

Croniqueta de VPV no Público de hoje sobre o mesmo artista:


Quinta coluna do artista José Jorge Letria, um dos companheiros do E tudo era possível, no CM de hoje e que aparece em destaque nas imagens da Flama que abaixo aparecem nos outros postais sobre o assunto: 

Obituário no SOL sobre José Mário Branco: 


Com esta salsaparrilha de escritos o que fazer? Ouvir os discos de JMB e voltar ao tema...

Em primeiro lugar é necessário mostrar um contexto histórico e artístico relativamente à figura de JMB, o que Alberto Gonçalves de algum modo faz, embora não concorde com a apreciação crítica de algumas obras da mpb, mormente o Pedra Filosofal de Manuel Freire, a cantar o poema de António Gedeão que é um achado de trocadilhos e muito bem feito como resenha histórica de feitos antepassados.

O contexto é o ambiente anterior a 1974, com a oposição comunista e de extrema-esquerda acantonada em alguns órgãos de comunicação e alguns destes artistas, todos no meio dos "cantautores" como dizem os espanhóis e por cá cantores de intervenção, se moviam.
É desse movimento artístico e político de que se trata e não é possível separar tais coisas porque estão interligadas. É por isso sumamente manhoso o artiguinho do José Jorge Letria, um jornalista comunista que se reconverteu às delícias do socialismo democrático e que agora faz como os crocodilos que voam: muito baixinho...
Nem se trata aqui de mencionar a música posterior a 1974, com a "cantiga era uma arma" que este Letria afeiçoava, tal como muitos.
Aqui é apenas a música da primeira metade dos anos setenta, no tempo de Marcello Caetano. Nem sequer o tempo de Salazar, mas para esta gente era tudo fassismo...

O primeiro disco grande que JMB publicou, intitulado Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, no Natal de 1971, foi gravado em França e fabricado aí, embora editado pela Guilda da Música. Começa com sons ambientes na gare de Austerlitz e basta ouvir dois minutos desse primeiro tema Cantiga a pedir dois tostões para concluir que o disco é uma pequena ( sim, não exageremos...) obra-prima musical. Até está bem gravado, para o meu gosto. Melhor que o segundo LP. 
Claro que a apreciação é subjectiva, mas sujeita a experiências de muitos sons ao longo de décadas e portanto com alguma fundamentação prática.

Essa primeira letra é de Sérgio Godinho e fala de coisas assim: "inauguras monumentos ao passado que está morto e enterrado" e nem é preciso dizer mais. É uma cantiga antifassista contra o regime de então, com Marcello Caetano no poder. 
Quem ouvia tal música e foram muitos os que tal fizeram em sessão pública num cinema de Lisboa em Novembro de 1971, ficava logo a saber que o assunto era protesto contra o regime.

A canção seguinte, "Cantiga do fogo e da guerra" é ainda mais interessante melodicamente e só um ouvido duro não conseguirá achar  graça à melopeia critpo-medieval. A letra também é do mesmo Sérgio Godinho que escreve assim a dado passo: " ao circo da guerra chegam piromagos".( sic e não se pergunte se é neologismo)..e toda a gente percebia a que guerra se referia, a tal de "colonial" que para os que ficaram por cá e foram mesmo defender a pátria, era do Ultramar. A diferença é de vulto...

Na cantiga seguinte, um dos temas clássicos de JMB e também cantada pelo autor da letra ( no seu disco Os Sobreviventes) , o mesmíssimo Sérgio Godinho, fala-se de algo sobre o Charlatão. É um hit, um tema digno dos top ten musicais. Tão boa ou melhor que qualquer uma de Bob Dylan.  Quem duvidar que aponte uma...mesmo do Blonde on Blonde. É quase um solidó mas as de Neil Young também são...

E depois aparece o tal da Queixa das almas censuradas que o palerma do João Miguel Tavares que evidentemente nunca a ouviu como deve ser, usa como exemplo para mostrar aos filhos para lhes ensinar  o que era a "ditadura". Enfim.  Musicalmente, porém, deveria servir para mostrar como se compunha uma balada, do mesmo estilo da Pedra Filosofal e agora não se vê ninguém por aí a fazer igual. Será caso para dizer bendito fassismo...

O autor JMB tem depois duas canções com letras suas: Nevoeiro e Mariazinha. São duas composições em que avulta o pífaro na primeira, com ademanes de instrumentação avulsa, em toada cripto-medievalizada mas com naipes de órgão ( Hammond? Farfisa?) . Mariazinha é uma belíssima cantiguinha com o som do baixo a contrapontuar de modo jazzístico e um pequeno solo de guitarra eléctrica etérea e segura. Belíssima canção e que nada tem de politicamente comprometido. 

Casa comigo Marta, com letra daquele Sérgio Godinho é uma brincadeira em ritmo marcado a um género de clavicórdio ( cravo-farfisa) usado pelos Beatles no Martha my Dear ( et pour cause?)

O tema seguinte antes do último é de um poema de Alexandre O´Neill, o poeta iconocolasta que um dia saiu de casa, para sempre, ou seja, durante 16 anos, porque o pai insistia com ele para levar o guarda-chuva, contra vontade. Diz tudo sobre quem era o O´Neill. Perfilados de Medo é um poema críptico que serve para tudo e para nada porque é um jogo de palavras. A música é uma marcha marcial com pouco interesse mas execução ritmada  como um cante alentejano. É o tema mais comprido e menos conseguido do disco. 

O último é o Mudam-se os tempos, do poema de Camões. Em tom de marcha em ritmo quaternário ou mais, é um fim de disco com pífaro e bombo que soaria bem numa filarmónica de aldeia em volta ao coreto no fim da festa. 

E é isto o primeiro disco. Obra-prima? Para mim, sim.

E o segundo? É o Margem de Certa Maneira, fabricado em Portugal e editado pela Sassetti, Guilda da Música, de 1972. 
O primeiro tema retoma o tema da imigração "Por terras de França" e diz que "não foi por vontade nem por gosto que deixei a minha terra...". Então porque foi? Para fugir à "guerra colonial"? Enfim, tretas de fujões e cobardes ou indiferentes. 

Há uma pequena canção de 1970, de outro destes imigrados, no caso Luís Rego que chegou a trabalhar com os Les Charlots nessa altura e que editou um single fabuloso, porventura o melhor da MPB, chamado Amor Novo que tem uns versos assim: "Viver é saber da vida o mesmo que sabe o mar; vai-se uma onda perdida; outra onda a enrolar...".

Quase todos os temas deste Lp são da autoria de JMB. O segundo chama-se Engrenagem e é uma melopeia com rima suavemente subversiva- "pra ter um companheiro nesta viagem, vou meter um pauzinho na engrenagem". 

O terceiro tema, Aqui dentro de casa é uma pequena maravilha de composição e outra pequena obra prima musical do autor , mesmo com referências explícitas a luta de classes, ao "patrão que te paga um salário de fome e que te rouba o que come", obviamente motivo de Censura na época. Que queria JMB e os esquerdistas? Propaganda do comunismo assim tão explícita?  O primeiro disco não tinha nada disto e é um disco melhor. Bob Dylan soube afastar-se desta armadilha e não escrevia letras panfletárias acerca da luta de classes, mas sim It ain´t me babe! Ou "Like a rolling Stone". 

O tema seguinte sobre a Margem de Certa Maneira ainda era ideologicamente pior no capítulo panfletário e musicalmente é mais pobre apesar de mais elaborada e com insistências em demasiados recortes pianísticos. 

O segundo lado abre com outra obra-prima, a principal de JMB: Cantiga da Velha mãe, com letra de Sérgio Godinho ( que também a cantou no seu disco Os Sobreviventes). Em tom de balada de viola acústica ritmada a preceito. A letra falava dos irmãos que partiram e "voltaremos trazendo connosco a vitória" E para não deixar qualquer sentido implícito respondia sobre o que era tal vitória: " de lutar para ter a justiça como lei" e para "ver o mundo girar de um modo diferente" . E para tal ainda "sei gritar e arreganhar o dente". E ainda mais: " mas se é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos, faz o que tens a fazer"...num prenúncio de apoio aos gacs e outros FP25 de anos vindouros. 

Enfim, com estas letrinhas assim tão explícitas que esperava JMB e os cantautores? Complacência de Marcello Caetano no regime que existia e que mantinha a Censura por causa da guerra no Ultramar e por mero atavismo cultural? Até houve. O disco andou por aí e foi ouvido, mas quanto a propaganda das ideias que a revista Mundo da Canção queria fazer isso é que já não foi possível. Censura portanto. 

Logo a seguir uma cantiguinha infantil do género das que eram apreciadas por outro comunista da época, José Barata Moura ( o da Joana come a papa...), com o tema Sant´Antoninho com letra inócua ou quase. 
A penúltima é A morte nunca existiu, com letra de António Joaquim Lança. Musicalmente é tema do género afeiçoado por JMB, aparentemente simples mas com subtilezas melódicas e instrumentais interessantes, embora com muito poucos acordes.  Com uma letra que incluía " pra matar milhares ao mesmo tempo uns no estrangeiro outros cá", a referência era muito explícita e portanto...censura. 

Finalmente a outra pequena obra-prima de JMB, com letra de Sérgio Godinho,   Eh Companheiro é uma composição que qualquer grande artista reconhece como tal. 
Mas a letra não engana ninguém: " Só tem medo desses muros quem tem muros no pensar todos sabemos do pássaro cá dentro a querer voar..."

Pois foi: "cortaram as asas ao rouxinol", como cantava o padre Fanhais um Eh Companheiro ainda mais radical que estes...

Este Eh Companheiro é tema de comício do Bloco de Esquerda ( tal como o Barnabé de Sérgio Godinho e outras, do Fausto) ,tal como outros de alguns dos companheiros de JMB...e por isso esta gente não deve enganar ninguém nem a gente que os acolita deve tentar fazer o mesmo e mencionar a liberdade que eles apregoavam. 

Liberdade para esta gente é construir outro muro para não deixar sair ninguém de dentro da fortaleza que construíram para si mesmos: a do totalitarismo comunista. E isso não foi suficientemente denunciado naqueles obituários...

Porque afinal o que dizia JMB ainda há muito pouco tempo? Isto:

"Eu continuo a achar que o motor que comanda isto tudo é a luta de classes, a exploração do homem pelo homem." (...)
A humanidade tem de pensar como é que se resolve este problema de vez. Não é cá com outra cantiguinha qualquer. É o sonho do Antero de Quental: "Não disputéis, curvado o corpo todo, as migalhas do banquete. Erguei-vos e tomai lugar à mesa". O Antero disse isto nos anos 70 do século XIX. Na altura era o sonho socialista.
(...)
continua a haver a exploração do homem pelo homem. Tendencialmente a esquerda é a favor do progresso e a favor de quem trabalha, dos mais pobres, é contra as injustiças sociais, como a acumulação de riqueza por poucos.





Nota: escrevi isto enquanto ouvia em gira-discos os Lp´s originais de José Mário Branco e confirmar a ideia que tinha: são dois dos melhores discos da música popular portuguesa. Mas há outros, do mesmo género. 
Quando tiver tempo...vou recensear. 

Sem comentários:

A obscenidade do jornalismo televisivo