Jornal i de hoje, pág. 24. Clicar para ler.
No jornal
i de hoje, quatro constitucionalistas emitem a sua opinião acerca do sindicalismo na magistratura. A ideia geral, pelo título da notícia, é que os sindicatos de juizes deviam ser proibidos. E os do Ministério Público também.
Razões? Uma e pouco mais: os juizes são titulares de órgãos de soberania. Logo, não podem compatibilizar esse exercício com outros interesses que os demais funcionários públicos podem defender em sindicato. O MP não é, mas não faz mal porque fica assim na mesma.
E não saem disto. Porém, já sairam disso, há uns anos atrás. Quem são os constitucionalistas que assim se pronunciam quase em uníssono?
Pedro Bacelar de Vasconcelos é um professor da Universidade do Minho, de direito e de uma esquerda assimilada ao PS. Foi governador civil de Braga e em 1997, teve que lidar constitucionalmente com os ciganos de Oleiros. É contra o sindicato dos juízes por essa razão de fundo: não é compatível com o exercício da soberania.
Jorge Miranda é professor na faculdade de Direito de Lisboa. É familiar directo de uma pessoa que é membro do actual CSM, ligada ao PS. Foi indicado pelo PS para provedor de Justiça e não reuniu consenso por alguma razão. Também é do contra porque aparentemente tem saudados do tempo do "senhor doutor juiz" de antanho, como escreveu ontem no DN.
Vital Moreira é actual deputado no PE, pelo PS, depois de ter sido do PCP e nessa altura ter co-escrito anotações na Constituição a defender o contrário do que agora defende.
Gomes Canotilho é o outro co-autor dessas anotações, professor de Direito em Coimbra, também ligado ao PS, e de modo não vinculativo mas inequívoco, antes ao PCP de modo mais vincado e que agora apresenta dúvidas sobre o que dantes escreveu, admitindo razões justificativas para as posições antagónicas.
E que escreveu, ele e o seu camarada Vital, em 1993, na tal Constituição ( artº 218º actual 216 e que conserva a mesma redacção) e que agora renegam?
Isto:
"
Enquanto titulares de cargos públicos e elementos pessoais de órgãos de soberania independentes, não subordinados a ordens ou instruções, os juízes não se enquadram integralmente nos conceitos constitucionais de trabalhador nem de funcionário público, para efeito de gozarem directamente dos respectivos direitos constitucionais específicos . Todavia, tendo em conta o carácter profissional e permanente do cargo de juiz, tudo aponta para que lhes sejam reconhecidos aqueles direitos, incluindo o direito à associação sindical."Como é sabido, um dos direitos fundamentais dos trabalhadores - os tais “constitucionais específicos” previstos no Capítulo III da CRP - que o co-anotador Vital Moreira expressamente escreveu em 1992 que deveriam ser reconhecidos aos juízes, é precisamente o direito à greve, previsto no artº 57 da CRP !
Pode por isso perguntar-se aos quatro magníficos professores de direito Constitucional, todos ligados directa ou indirectamente ao partido do actual governo, que mudança entendem que se terá verificado na sociedade portuguesa, nos últimos 20 anos que justifique uma alteração radical na sua concepção da magistratura, mormente dos juizes e particularmente quanto ao direito de associação sindical?
O que terá sucedido de tão extraordinário na vida intelectual daqueles quatro, para entenderem agora o contrário do que achavam antes, com a excepção de Jorge Miranda que sempre defendeu o paradigma do "
senhor doutor juiz"?
Não se sabe, não se entende e nem se explica se não forem os próprios a apresentarem, como devem, a respectiva declaração de interesses pessoais e profissionais.
O que devem ao poder político que está e esteve? O que fizeram, enquanto activistas políticos, para defender o que defendem que os afasta inequivocamente de uma certa ideia de esquerda que defende o sindicalismo, por se considerar o mesmo um legítimo modo de defesa dos interesses de uma classe profissional que depende de outra classe também de profissão certa como é a de político em geral que ocupa órgãos de soberania legislativa e executiva?
Até se saberem todas essas declarações de interesses, são legítimas todas as suspeições sobre a boa-fé do debate que este jornal e outros pretendem lançar aqui e agora. E são suspeições que se adensam e tornam este debate necessário.
Depois disso, já que são especialistas de direito constitucional, no mínimo espera-se que expliquem aos leitores deste tipo de artigos, o que pensam dos velhos problemas da repartição do poder político. Não basta que digam do alto da cátedra que o sindicato dos juízes, "jamais"! É preciso mais do que isso.
Por exemplo, como compreendem que o sindicalismo na magistratura francesa, tenha surgido nos final dos anos sessenta, no dealbar do pós Maio de 1968 e ainda se mantenha vivo e menos contestado do que por cá?
As razões desse sindicalismo judiciário são tão mais fáceis de explicar como os motivos para o contestar, se tornam difíceis de dizer e causam perplexidade em gente que se afirma de esquerda.
Em primeiro lugar, tal como aconteceu em França nessa altura, operou-se em Portugal, nos últimos anos, uma crescente responsabilização do judiciário e dos diversos tribunais, pela proliferação legislativa que transfere para os tribunais tarefas cada vez mais responsabilizadoras no campo penal, cível e administrativo, ao mesmo tempo que se deslocam para o âmbito da administração outras competências de âmbito substancialmente compensador de de grande valor económico, sempre da ordem dos milhões.
É a Administração central do Estado e o governo em particular que gerem os milhões do orçamento e as entidades fiscalizadores cada vez mais são apenas um verbo de encher, incluindo nesta tarefa ingrata, o tribunal de Contas.
Depois, o crescente poder do Executivo que absorve e canibaliza o legislativo através dos partidos, do jogo político-partidário ( de que os constitucionalistas são o exemplo concreto) e do mecanismo das unidades de missão governamentais, das comissões especiais constituidas por advogados liberais, pareceres encomendados a grandes escritórios de advogados para legislarem de modo autêntico, subtraindo ao poder genuíno a competência para tal e deixando-lhe o resíduo da aprovação por voto electrónico e disciplina partidária.
Por outro lado e muito importante é a relevância crescente do papel da magistratura na sociedade, em diversos domínios como o dos direitos de menores, laborais e administrativos. O juiz actual não se limita a dizer a lei, mas intervêm na modelação de soluções para conflitos, naquele âmbito e de modo crescente, muitas vezes sem as condições subjectivas e objectivas para tal, por carências que o poder executivo não supre como lhe competiria.
Ainda conta e muito, para o caso, a mudança e transformação social que se operou nas magistraturas. Actualmente, o recrutamento já contempla mais de metade de mulheres o que era impensável no modelo do "senhor doutor juiz". A justiça no feminino ainda não faz parte do imaginário do professor Jorge Miranda, aparentemente.
Por outro lado e neste aspecto, a classe dos magistrados provém , em geral, da classe média mas a classe média em Portugal é semelhante à classe média que engrossa as fileiras dos deputados. É uma classe média que o próprio primeiro ministro considera como sendo " os ricos", para efeitos fiscais. Dependem do vencimento para ganharem a vida , procurando a magistratura, actualmente, tal como muitos procuram um lugar de deputado. Dependem efectivamente de um outro poder para serem poder autónomo e independente.
Por último numa sociedade cujos media se disputam actualmente numa constante deslegitimação do poder judicial, através de notícias manipuladas, erradas, erróneas e por vezes completamente à margem da realidade que se vive nos tribunais, o que deve fazer o poder judicial?
Calar-se como o todo que simbolicamente é e deixar o discurso, todo o discurso social sobre a Justiça, ao cuidado dos amadores dos media, dos comentadores de ocasião e dos adversários declarados da magistratura enquanto entidade independente e autónoma? Deve o discurso judiciário ficar a cargo de que nem sequer o compreende por não a viver no lado de dentro?
Se tal suceder, como pretendem estes quatro constitucionalistas, fica na liça mediática todo o poder político, acolitado pelos mensageiros do costume e de que Vital Moreira é bem o exemplo concreto. Sozinho, o poder político poderá mais facilmente, governar, legislar, administrar o que é público e de todos. Fica por outro lado estabelecido legalmente que os magistrados têm efectivamente um diminuição na cidadania, uma capitis diminutio na relevância social, justificada pela perversão do seu contrário, afirmada por que assim o pretende.
Os juizes não poderão manifestar-se em prol dos seus interesses de classe profissional que depende do Executivo e legislativo e por isso terão que acatar, sem discussão pública ou privada, o que estes poderes lhe destinam, seja no campo socio-profissional, seja no aspecto mais geral da cidadania.
O argumento usado pelo ex-vice governador civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos retoma a ideia de Jorge Miranda: o presidente da República também depende dos outros poderes e não é um funcionário público qualquer. E tem razão, porque dificilmente o PR se organizaria como sindicato...mas os deputados e membros do governo também não precisam de tal, por um simples motivo, prosaico, real e que dispensa grandes considerações legalistas: quem parte e reparte e não fica com a melhor parte...são os governos que temos. Não é assim?
Há uns meses atrás, num tribunald e Santa Maria da Feira, os juizes foram agredidos em plena sala de audiências, por falta de condições de segurança adequadas.
Os membros do governo têm todos protecção policial à porta de casa. O PR idem. Será preciso explicar a diferença?
Os vencimentos dos titulares dos cargos políticos não têm aumentado. Mas aumentam exponencial e habilidosamente os subterfúgíos de diversas ajudas e compensações. Será preciso dizer mais a favor de um poder sindical de quem exercendo funções igualmente soberanas nem sequer tem o poder que uma autonomia universitária confere e que permite a alguns felizardos contratar empresas para patrocínios de associações que funcionam nas universidades em regime de direito privado?
Finalmente, em democracia qual será preferível: um poder judicial calado e quieto, tributando ao velho respeitinho de antanho a característica de uma proibição que lá fora, noutros países semelhantes ao nosso não existe; ou será preferível um poder judicial com sindicatos que nem sequer podem confundir-se com o poder soberano dos tribunais, mas compostos pelos juizes que o mesmo exercem?
Esta pergunta simples e concreta ninguém faz aos aludidos constitucionalistas. Mas a resposta é urgente.