segunda-feira, outubro 26, 2009

Os senhores doutores não têm sindicato


O senhor professor Jorge Miranda, da faculdade de Direito de Lisboa, especialista em direito Constitucional e co-autor de uma Constituição anotada, acha em escrito de jornal, no DN de hoje, citado aqui, que os juizes ( e magistrados do MP, por arrasto), não deviam ter sindicatos profissionais.
A opinião não é nova, não é de agora e valha a verdade tem sido a posição imutável de Jorge Miranda ao longo dos anos.

Portanto, quais as razões para esta irredutível opinião contra o sindicalismo nas magistraturas? Poucas.

A primeira apontada é a de que não faz sentido "Cindir a função e a vida dos juízes numa dupla vertente, a judiciária e a laboral."
E porque não fará sentido? J.M. aponta o exemplo do seu tio-avô, juiz recém nomeado para o Alentejo profundo e que no primeiro domingo após a chegada, foi à missa onde quase ninguém ia. Pois por isso mesmo, passaram a ir. Por causa do "Senhor Doutor Juiz".
Esta petite histoire diz mais da idiossincrasia negacionista de Jorge Miranda do que o discurso teórico legalista que segue.

J.M. acha que tal não sucederia nos dias de hoje e quase lamenta o facto de hoje não haver assim "senhores doutores juizes", como dantes havia.
E no entanto, não sabemos o essencial: como era aquele "senhor doutor juiz" e como vivia realmente a sua vida judiciária numa vilória do interior profundo.
Como se levantava e animava o seu pequeno-almoço; como se dirigia para o tribunal; como se entendia com os demais profissionais do foro e como estudava, julgava e decidia os seus processos. Como alimentava o seu dia-a-dia e da sua família; como ganhava ao fim do mês; como se comparava com os demais profissionais que também eram "senhores doutores".
Apenas ficamos a saber que a população local sabia quem era " o senhor doutor juiz" e isso bastava para o definir na sua plenitude funcional. E quase bastava.
No tempo de Salazar e Caetano, os juizes não tinham estatuto divergente do Estatuto Judiciário que englobava os demais profissionais, incluindo, o ministério público e, veja-se bem!, os advogados.
Quem definia o corpus de direitos socio-profissionais dos juizes, era o poder político. Tal como hoje.
O sistema político não admitia as corporações sindicalizadas como hoje, como não admitia a plena liberdade de constituição de associações. Foi um sistema que acabou e com ele, fatalmente, a figura do "senhor doutor juiz" que vai à missa e arrasta os locais por respeito, deferência e imitação de virtudes.
O juiz actual não é um "senhor doutor juiz" como era nesse antanho, porque o tempo muda, tomando sempre novas qualidades. Mas há qualidades que não sabemos nem conhecemos ao "senhor doutor juiz" modelo de J.M. , mas percebemos que devem ser de ontem, hoje e amanhã. São as qualidades essenciais de um juiz, um qualquer juiz, modesto, trabalhador ou protagonista de emissões de tv ou dado a entrevistas: suficientemente conhecedor das realidades da vida e capaz de dar a cada um aquilo que lhe pertence, aplicando a lei e o Direito e fazendo por isso, Justiça.

Um juiz actual não precisa mais de ser " o senhor doutor juiz" porque a sociedade actual não precisa de castas sociais cujo prestígio se atinge apenas pela categoria profissional cingida ao nome declinado em triplicado: o medieval, o escolástico e o atávico.
Um senhor pode ser qualquer pessoa que tal estatuto mereça, pela sua personalidade e comportamento. Um doutor é aquele que se pode distinguir academicamente, pelo valor intrínseco e um juiz é aquela pessoa que exerce a profissão de julgar e que até pode ser um qualquer popular de um júri.
Portanto, Jorge Miranda, avança outro argumento para negar o estatuto sindical aos magistrados: "o entrosamento com a autoridade do Estado, a sua adscrição à soberania e que tem a ver com a vinculação umbilical ao funcionamento do Estado".

Ora isto que confere a essência à função do juiz, enquanto exercício de soberania, separa-se e Jorge Miranda também separa, do estatuto de trabalhador subordinado e que está sujeito à determinação da condição socio-profissional por outros poderes, mormente o legislativo e executivo.
Por isso, a soberania dos juizes esgota-se totalmente no acto de julgar. Tanto que o próprio órgão de gestão dos juízes, o CSM, não é um órgão de soberania nem sequer os representa. É um órgão de Estado, administrativo, cujas decisões são sindicadas por esse órgão de soberania que são os tribunais ( no caso, o STJ e o TC).

Jorge Miranda entende que tal não é óbice à proibição que defende, porque "não são apenas os juizes a não poderem determinar as condições materiais do exercício da sua actividade. "Também o Presidente da República, os deputados e os ministros. E "em qualquer caso, é a lei dimanada do Parlamento, assembleia representativa de todos os portugueses (art. 147.º da Constituição) e baseada no sufrágio universal (arts. 10.º, n.º 1, e 113.º, n.º 1), que prescreve as regras remuneratórias relativas a uns e outros."

É verdade o que J.M. escreve, mas escreve de menos: quem estabelece as regras dos deputados, ministros e o próprio PR, são...eles mesmos, através dos seus grupos parlamentares, das suas comissões, das suas unidades de missão. Com um poder soberano que não necessita de sindicato algum, a não ser o das sociedades secretas e lobbies do mais variado tipo.

Mas não assim, quanto aos magistrados, mormente os juizes, titulares enquanto julgadores, do poder de soberania dos tribunais.
Portanto, essa é toda a diferença e todo um mundo de mudança, nestes tempos de democracia moderna em que o verdadeiro controlador do poder executivo e legislativo ( através da sindicância da constitucionalidade das leis, por exemplo) é o poder judicial. Os juizes, com o seu poder judicial, são o último reduto de garantias dos cidadãos. Não deles mesmos, mas dos cidadãos.
Negar o direito dos juizes e magistrados a associarem-se por causa dessa diminuição objectiva do poder autónomo em relação à definição da sua própria carreira, é restringir direitos básicos que a outros trabalhadores são inquestionavelmente reconhecidos.

E com um argumento fundamental e básico que Jorge Miranda esquece: o exercício da função judicial não pode confundir-se com o estatuto socio-profissional, como dantes, no tempo do "senhor doutor juiz" acontecia, sem desequilíbrio social, porque derivado de um "respeitinho" que era norma.
Tal não sucedia noutras latitudes e sociedades, porque a desmistificação das profissões e a correcta interpretação do papel social de cada um, estava já bem definido.
Por cá, ainda não acontecia tal e Jorge Miranda sabe muito bem que assim era- e não devia ser.
Por isto não se percebe muito bem o atavismo do senhor professor Jorge Miranda, na negação reiterada e constante de um direito fundamental de qualquer cidadão: associar-se para representar ao poder que o determina profissionalmente, o que esse poder deve ouvir em função dos interesses pessoais e profissionais desses associados.
Não é essa uma melhor definição de democracia?

Aditamento, em 27.10.09, às 21h:

Na revista In Verbis, no postal em causa, o comentador...pois, escreveu assim:

No tempo do meu tio-avô (1889-1975), um Senhor Professor Doutor, catedrático de Lisboa ou Coimbra, que:

1.º - se tivesse candidatado ao lugar de Provedor de Justiça por indicação do grupo parlamentar do PS;
2.º - tivesse por nora a mestra Alexandra Leitão (casada com o mestre João Miranda, que é vogal da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos), a qual é uma das vogais do CSM que, tendo sido eleita para esse cargo pela maioria parlamentar do PS, foi co-autora da iniciativa e decisão de suspender o processo de classificação do Dr. Rui Teixeira;

dar-se-ia ao respeito e, por pudor, decoro e recato, nunca viria assumir a posição de cronista independente para, hic et nunc, comentar a reacção da ASJP à decisão do CSM de suspender a classificação do Dr. Rui Teixeira, daí extrapolando para vaticinar a inconstitucionalidade do associativismo judicial e o descrédito relativamente à judicatura que o mesmo difundirá pela sociedade.

O único comentário é mesmo esse: pois. E mais um outro. Na mesma faculdade de Direito, uma outra catedrática, Fernanda Palma, mulher de Rui Pereira, não deixa passar uma única oportunidade para defesa de medidas governamentais nas leis penais, mormente as adoptadas pela Unidade de Missão, presidida pelo marido e incidentalmente ( como no caso da ordem para matar, ao sniper do BES) de apoio e justificação pontual.
O pudor, o decoro e o recato já viram melhores dias, na faculdade de Direito de Lisboa.


3 comentários:

Wegie disse...

Ele está na onda! Pôr os juizes e MP's a recibos-verdes tal como cerca de 900 mil portugueses, até que tem piada!

JB disse...

Excelente post.

MIP disse...

Iniciei a minha vida de juiz num pequeno "povoado", como são (ou eram) em regra as comarcas de primeiro acesso. Não há muito tempo. Mas quando saía de casa (a de função) os senhores tiravam o chapéu e as senhoras baixavam os olhos (tal como faziam todos os comerciantes e empregados das lojas em que entrava). Devo dizer que percebia tais atitudes dado o isolamento do local, mas ficava extremamente incomodada. Não era esse o tipo de respeito que esperava do povo em nome do qual estava a exercer a minha função.
Findo o ano judicial e estando eu de partida, senti então o respeito que pretendia: a população em geral, a polícia, os funcionários do tribunal, e o "meu" magistrado do Ministério Público fizeram-me sentir de várias formas que do ponto de vista deles havia desempenahdo bem a minha função: com isenção, em consciência e muita dedicação ao trabalho. Isso marcou o meu desempenho futuro.
E nunca precisei que a Igreja (que eu frequentava) estivesse cheia por minha causa. Peço desculpa pela extensão do comentário, mas senti necessidade de deixar aqui o ponto de vista de um juiz actual (tenho 39 anos), que em nada coincide com aquilo que o Sr. Prof. Jorge Miranda propaga.