Os jornais de hoje escrevem sobre a notícia de ontem: Dominique Strauss-Khan foi liberto das acusacões de cariz sexual que impendiam sobre ele e que estavam em sede de inquérito para averiguação da solidez probatória com vista a um eventual julgamento pelos factos muito graves que poderiam ter ocorrido.
A acusação, representada pelo procurador Cyrus Vance Jr, retirou as acusaões e o juiz formalizou esse acto processual.
Perante as contradições no depoimento da vítima e tendo em conta as particularidades do sistema de justiça americano que impõe a opção pela absolvição sempre que se mostra a existência de uma dúvida razoável, os factos e a pessoa de D.S-K deixam de ser julgados em processo crime.
Pedro Lomba no Público de hoje ensaia uma pequena explicação sobre o conceito de "dúvida razoável", para dizer que sempre que nas instâncias judiciárias e judiciais americanas não podem "estar seguros daquilo que aconteceu", também não se torna razoável pedir a um júri que julgue os factos e acredite na vítima depois das suas contradições sobre os mesmos.
E acrescenta que esta noção de justiça assenta numa ética cristã- a de que quem condena um inocente comete um pecado mortal e com referência ao velho aforismo bíblico, do Novo Testamento de "não julgueis para não serdes julgados".
Em consequência " a justiça deve ceder ante a dúvida e possibilidade de erro".
Esta noção de ética cristã aplicada ao julgamento penal de factos criminosos tem muito que se lhe diga, mas o sistema americano também. Desde logo, perante esta limitação ética, impõe uma série de regras de obtenção de prova que implicam com princípios de presunção de inocência. Logo que alguém é detido, é-lhe comunicado que pode estar calado mas se falar sobre os factos tais declarações podem ser usadas. Por cá, em Portugal não é assim porque o suspeito e arguido, mesmo em julgamento tem o direito pleno de mentir, sem qualquer consequência, a não ser a de não contribuir para a descoberta da verdade com significado mixuruco na medida da pena.
Depois, mesmo uma testemunha pode mentir sem grandes consequências práticas. Mesmo apanhada a mentir em julgamento, em flagrante, pouco ou nada lhe acontece porque a moldura penal para a falsidade de depoimento é irrisória e geralmente as penas são de multa, quando o são. Seria interessante termos uma estatística do número de pessoas que foram condenadas, em qualquer pena, por tal crime em Portugal nos últimos anos. Aposto que não chega a uma dúzia...
Nos EUA um depoimento falso é punido com prisão efectiva e por vários anos, nalguns casos. Que o diga o chefe de gabinete de Bush, Lewis "Scooter" Libby que por mentir foi condenado em 30 meses de prisão efectiva, numa multa de 250 mil dólares, em trabalho comunitário e regime de prova depois de cumprimento da pena de prisão que imediatamente foi cumprida. Só se safou de cumprir toda a pena porque o patrão, antes de sair da presidência lhe comutou a pena.
Portanto, o sistema americano da "dúvida razoável" tem as suas virtualidades e assenta em pressupostos que em Portugal não se verificam. Mas é interessante e preferível, a meu ver, porque permite e impõe investigações céleres e eficazes e igualmente "à charge e à décharge" ou seja mesmo a favor do suspeito, como foi o caso D.S-K.
Pode dizer-se que D.S-K se safou neste caso porque foi no sistema americano. Se fosse em Portugal safar-se-ia na mesma? Ah! Isso depende...depende de quem investigaria no início, de quem telefonaria para a PJ, ou mesmo o PGR ( como efectivamente António Costa o fez no caso Casa Pia) e de como se desenrolaria a investigação de um caso quase em flagrante delito.
Podemos por isso reflectir sobre o sistema americano e português apontando como referência os casos mediáticos dos últimos anos. Nesta perspectiva, nem o Freeport teria hipóteses, como aliás não teve, de chegar a lado algum que se visse; nem o Casa Pia teria hipóteses de vir a ser julgado. A "dúvida razoável" relativamente aos abusos sexuais efectivamente sofridos pelas vítimas seria pura e simplesmente esmagadora no sistema americano.
Não porque não houvesse investigadores que acreditassem nas vítimas, mas porque segundo os critérios que presidiram a este caso D.S-K, os depoimentos das vítimas, com alguns anos de permeio entre os factos, seriam simplesmente arrasados pelos advogados que buscariam a mínima contradição, a mínima suspeita de dúvida para colocar a um júri que fatalmente absolveria os eventuais acusados ou nem sequer chegaria a julgamento de um grande júri.
Será preferível um sistema destes, como o americano, ao nosso que não protege assim tanto as dúvidas razoáveis e se fia mais no senso comum e na capacidade de destrinça dos julgadores entre a verdade e a mentira?
Não sei. Confesso que não sei e perante o significado ético e cristão de "dúvida razoável", propendo para aceitar melhor esse sistema do que o nosso, feito de dúvidas por vezes muito pouco razoáveis.
O problema reside no sistema em si mesmo, porque o americano não vive apenas de dúvidas razoáveis, mas de certezas plausíveis. E uma delas é a de que a coerência de um sistema não pode fazer-se à custa da verdade material. Como muito bem pode ter acontecido.
Fica por isso a dúvida metódica sobre o assunto.
PS. Sobre o mesmo assunto, o irritante editorial do Público não achou nada melhor para se escrever do que salientar a celeridade do processo, considerando "extraordinário " que em três meses se deslindasse o assunto.
Ainda para carregar na irritação de se escrever sem pensar duas vezes, acha que foram os "dois advogados, excelentes e famosos" que "trababalharam os seus casos e a justiça fez, e fez-se depressa."
Para topo de cereja em cima deste bolo, diz ainda que "nunca saberemos o que aconteceu naquele quarto de hotel".
Em primeiro lugar não é nada extraordinário que se tenha feito a tal "justiça", até porque não se fez. Nem a vítima foi ressarcida nem o suspeito foi acusado e julgado. Logo, ficou-se num interim que não é justiça não é nada- é apenas um non sequitur, um non liquet.
Mais: um caso como o de D.S-K em Portugal poderia igualmente ser investigado no mesmo espaço temporal, se se repetissem as circunstâncias, ou seja, detenção quase em flagrante, exames médicos e legais, recolha de depoimentos. O caso não é complexo, não é susceptível de ser complementado por depoimenos numerosos e reduz-se a duas ou três coisas muito simples: saber se houve acto sexual e se este foi ou não consentido. Que houve, parece não haver dúvidas razoáveis, até porque o suspeito o admite. Se foi ou não consentido depende do depoimento de cada um dos intervenientes e da actuação dos mesmos antes, durante e após os factos e tal não implica investigações morosas ou complexas. Apenas perspicazes.
A outra abeculada no editorial prende-se com o facto de se atribuir aos dois "excelentes advogados" o mérito da tal justiça que se (não) fez. Afinal quem averiguou os factos relativos ao depoimento pouco credível da vítima foi a própria procuradoria de Nova Iorque, não foram os advogados de defesa que nem disso tiveram necessidade nem chegaram à fase de espectáculo em sala de audiências.
A final adianta-se a certeza de que "nunca saberemos o que aconteceu". É uma certeza idêntica à que atingiu O.J. Simpson: foi absolvido do crime por causa da tal "dúvida razoável" ( bastou uma luva não lhe assentar na mão...) mas foi condenado no cível porque se provou que foi o autor do homicídio.
No caso D.S-K pode muito bem suceder o mesmo...e portanto há possibilidade de vir a saber o que se passou, de facto.
Assim, porque é que quem escreve editoriais destes não tem essas dúvidas razoáveis ?
5 comentários:
Pois é. Isto tem mais de Torah que de cristianismo. O problema é mentir-se perante a lei, não é caridade com ninguém.
E, a questão da mentira é que é estranha. Porque não se prende com os factos mas com outros aspectos anteriores da sua vida.
Por isso eu apenas entendi que a rapariga predeu credibilidade legal para poder ser vítima, mesmo que o tenha sido.
O acusado passou a inocente à custa de falsas declarações e fuga ao fisco da imigrante.
Muito bem explicado.
Quem vos manda a "vós" (outros) sapateiros tocar rabecão.
Escrevem, escrevem ...idiotices.
a magistratura nunca pode tratar os pobres do mesmo modo que encara os advogados dos poderosos.
dizia Millôr
«se merda valesse direiro,
pobre nascia sem cu»
na tropa o que é subjectivo
recaia na rubrica
'falta de aprumo militar'
O caso prossegue no foro civil; a ver com que consequências....
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