Diário de Notícias, ontem, uma entrevista ao advogado José Miguel Júdice que se apresenta assim:
"Se em 1980 PS fosse como hoje, Sá Carneiro era PS"
"José Miguel Júdice desfiliou-se do PSD em 2006, mas garante que não se desencantou da vida política. "Acho que nunca fui um encantado da política. Fui, sim, um apaixonado pela vida política e sempre tive a cautela de não cometer o erro de transformar a paixão numa actividade profissional", diz o advogado que admite, isso sim, que se desencantou do sistema partidário.
"Entrei para o PSD por causa de Sá Carneiro, mas nunca quis ter carreira política ou cargos políticos. E os partidos não têm lugar para os cidadãos, para aqueles que apenas querem entregar em vez de receber em troca. Os partidos não têm lugar para as cabeças muito independentes", defende, convicto de que "o PSD se transformou numa espécie de albergue espanhol, como todos os partidos. Não têm ideologia ou linha estratégica- são máquinas de gestão do Estado. (…) Os partidos fecharam-se, são grupos organizados que tentam manter o poder e não querem que ninguém penetre porque os lugares são muito escassos. E como os partidos não atraem qualidade, cada vez mais os governos fazem questão de nomear pessoas de fora. “
O jornal pergunta-lhe: E Sá carneiro tem alguma coisa a ver com essa ideologia de agora?
"Tem e não tem. Todos eles são filhos e netos de Sá Carneiro. Como nas famílias - nem sempre os filhos correspondem ao que os pais gostavam -, há evoluções naturais, e mesmo Sá Carneiro não seria igual ao que era há 30 anos. Há uns anos, fiz uma provocação: se o PS em 80 fosse o que é hoje, muito provavelmente Sá Carneiro era PS e não haveria PSD. Hoje em dia, o PSD e o PS não se distinguem a não ser em nuances. Eu vi o PSD atacar pela esquerda José Sócrates. Que ideologia é esta? Não me parece que haja ideologia, a não ser no PCP e no CDS", responde.”
Estamos portanto no campo aberto das ideologias e Júdice entende que o PS de hoje é um partido ideologicamente aberto que acolheria mais facilmente no seu seio um Sá Carneiro que o próprio partido que o mesmo fundou. Notável!
O PS actual que se esforça com denodo sectário por se identificar com uma esquerda mítica que defende os pobres desgraçados e desvalidos de um capitalismo ultra-liberal seria o paradeiro natural de um Sá Carneiro cujo pensamento político, pelos vistos até já foi analisado pelo advogado Júdice, num livro intitulado “O meu Sá Carneiro”. Júdice “continua a acreditar naquilo” ou seja, no putativo pensamento político de Sá Carneiro e afirma que “não mudou ideologicamente”, apesar de uns parágrafos depois, na entrevista dizer que “há evoluções naturais, e mesmo Sá Carneiro não seria igual ao que era há 30 anos.”
Vejamos. Em que é que Sá Carneiro acreditava ideologicamente? Na social-democracia, evidentemente. E em que é que o PS e o PSD actualmente acreditam? Na social-democracia também. E então mudaram alguma coisa, ideologicamente? Nem tanto. O que mudaram foram as circunstâncias políticas e ideológicas no mundo em que vivemos e a prática induzida pelos dirigentes profissionalizados desses partidos de poder.
Basta ler a entrevista de Mário Soares à revista Grande Reportagem, em 1985, já aqui citada para se entender esse pragmatismo ideológico. Então, Mário Soares tinha responsabilidades governativas e defendia que as empresas deviam falir, se não fossem rentáveis. E até que tinha sido um erro, até então não as deixarem falir porque tal se impunha como medida de saneamento económico. Isto é o mais puro liberalismo, mesmo o ultra-liberalismo e foi Mário Soares quem o afirmou, em 1985. E ainda disse mais: perante a pobreza extrema de algumas famílias atingidas pela crise na margem Sul do país, com as tais falências e o espectro da fome denunciado então pelo bispo de Setúbal, que dizia Mário Soares? Que fome e dificuldades sempre houve, não era de agora ( então). Liberalismo maior que isto não pode haver e foi afirmado publicamente por um governante socialista de então que se afirma agora como sendo de “esquerda”. Aliás, o PS de agora afirma-se e é entendido pelos seus próceres mais proeminentes como um partido de esquerda que se contrapõe a uma direita mistificada encabeçada pelo CDS e pelo PSD.
Obviamente que a confusão que isto engendra é grande e paradoxal.
Sá Carneiro, cuja ideologia de 1980, Júdice afirma ainda hoje seguir( é o que ele diz na entrevista), era então entendido pela verdadeira esquerda ( a do PCP) e pela esquerda dos interesses, o PS de então, como sendo o arauto da direita e toda a luta política contra Sá Carneiro, até à sua morte se vincou nessa distinção marcadamente ideológica.O PCP nunca fez uma campanha tão aguerrida e tão rasteira como nas eleições desse tempo, e que deram a maioria absoluta à AD. O PS acenava então com o espectro da "direita" e coisas assim.
Passados trinta anos, Júdice entende que afinal, Sá Carneiro estaria mais confortável neste PS, aggiornato mas que se continua a considerar como esquerda e adversário político da tal direita que o PSD encarna.
E afinal que PS é este que Júdice agora defende como o seio natural de Sá Carneiro, se fosse vivo?
É um PS eminentemente jacobino, como sempre foi e continua a ser, a par de uma reviravolta pragmática nas ideias económicas trazidas pela chamada terceira via de Blair, introduzidas por Guterres. Explico: um partido apostado em fazer do Estado a capa protectora de tudo e de todos, com a marginalização da chamada sociedade civil para as fímbrias da iniciativa que o keynesianismo, filho adoptivo do socialismo democrático, permitir. É ainda um partido que se esforça pela diferenciação com a chamada “direita” no campo dos costumes e tradições e que ataca a Igreja Católica sempre que tal se afigura politicamente rentável, fazendo o mesmo no campo do ensino, da cultura e da organização social em geral, sempre que o Estado possa intervir em nome de valores "fracturantes". É um partido que acredita na ética como sendo equivalente à lei, obrigando-se a legislar por tudo quanto é sítio para tudo quanto é lugar e por tudo quanto é passível de definir e determinar legalmente, porque é um partido que não sabe viver sem lei positivada, mas cujas leis se afastam da vida real, gerando entropias que minam a sociedade.
Evidentemente, segundo aquilo que penso Sá Carneiro foi, será a coisa mais afastada do seu pensamento político que pode existir. Sá Carneiro não era jacobino, era herdeiro de uma ala liberal que teve José Pedro Pinto Leite, falecido antes de 25 de Abril de 74 na Guiné, num desastre de helicóptero, como seu principal pensador.
Sá Carneiro poderia ser o verdadeiro liberal, na acepção pragmática da ala liberal, com base na social-democracia e que teve alguns laivos de expressão na organização económica imediatamente anterior a 25 de Abril de 1974, em que o Estado interventor dava muito maior margem de manobra à sociedade civil do que o PS alguma vez deu ou quer dar.
Júdice, a meu ver, está gravemente confuso ideologicamente. Ou não percebeu a essência do PS, deste PS de sempre ou mudou radicalmente para uma mentalidade completamente afastada do pensamento de Sá Carneiro.
Por outro lado, num Portugal paroquial em que toda a gente se conhece, no âmbito dos corredores do poder, Júdice esteve sempre em bicos de pés, nesses corredores.
Júdice é advogado. Ajudou a erguer economicamente uma firma- a PLMJ- que é uma das beneficiárias directas e indirectas do regime que temos de há uns anos para cá e mesmo com o tal PS que Sá Carneiro afeiçoaria. Júdice, quando remodelou uma decrépita Quinta das Lágrimas, jóia de família, anunciou publicamente que tinha lá gasto tudo o que tinha. É ver quanto tem hoje...
Se os partidos, segundo Júdice, se tornaram máquinas de poder que não permitem a entrada de intrusos, a firma de advogados de Júdice ligou-se simbioticamente a essas máquinas.Sem estes partidos e este regime, as firmas como a de Júdice ver-se-iam obrigadas a singrar no mercado como as dos pequenos advogados que por aí há aos montes e montes.
Duvido muito que a firma de Júdice que foi antes a de António Maria Pereira, um advogado à antiga e com outros horizontes sociais, fosse o que hoje é se o regime fosse o que Sá Carneiro queria.
A firma de Júdice é beneficiária há largos anos, mas nem tantos assim, de contratos negociais com o Estado, este Estado que o PS e o PSD moldaram, enquanto máquinas de poder. Será que Sá Carneiro, se fosse vivo admitiria uma coisa assim que se estendeu por outras firmas, algumas com nomes que eram então, no tempo de Sá Carneiro, o de aparatchicks do seu partido, como é o caso de Sérvulo Correia que foi secretário- geral do PPD? Duvido muito.
Sá Carneiro era também advogado. Porventura continuaria a sê-lo se a política o obrigasse a tal e segundo Júdice tal aconteceria fatalmente porque “ com o seu temperamento e maneira de ser- frontalidade e falta de paciência para a estupidez- não teria grande sucesso na política”. O que aliás, vale igualmente para este tipo de advocacia de firmas como a de Júdice, obrigadas a viver à sombra de um Estado protector, directa ou indirectamente com os vários project-finance disponíveis logo que começaram a chover os euros da CEE. Teria Sá Carneiro sobrevivido neste mundo peculiar de advocacia de negócios, tendo aquele carácter frontal e de temperamento sem paciência para a estupidez? Teria Sá Carneiro soçobrado nos princípios em que acreditava e que vinham do tempo da Ala Liberal e que não admitiam, a meu ver, um tipo de promiscuidades tão flagrantes entre o que é público e o que é privado? Duvido muito porque as pessoas são como são e o carácter não muda com o tempo...embora este o revele de modo indelével.
A questão que me coloco é então deste tipo: se Sá Carneiro saísse da política e enveredasse por uma carreira profissional do tipo de Sérvulo Correia ( professor de Direito brilhante também) faria o que estes fazem? Ou seja, aproveitariam o espaço de manobra que o Estado lhes concedeu, por maquinações engendradas pela lógica de poder, para enriquecerem à sombra desse mesmo Estado, usando em seu proveito as fragilidades organizativas desse mesmo Estado e tudo na mais perfeita legalidade ( aí está o segredo do jacobinismo)?
Mais concretamente: Júdice é um indivíduo igual a tantos outros e como advogado igualíssimo a tantos demais. Então, se Sá Carneiro fosse vivo e tivesse moldado um regime político de acordo com a sua “ideologia”, Júdice teria o privilégio de ver a sua firma beneficiada com um contrato de avença ( não tem outro nome) como o que sucedeu com a Parpública aquando da eventual privatização de parte da GALP, como sucedeu no tempo em que Nuno Morais Sarmento ( que fazia e faz parte da PLMJ) esteve no governo e que foi denunciado pelo Público e no parlamento como um escândalo, aliás nunca devidamente esclarecido?
Ainda concretamente: se Sá Carneiro fosse vivo e tivesse moldado um regime em conformidade com a sua ideologia, a firma de advocacia de Sérvulo Correia teria tido a margem de manobra democrática para se tornar em poucos anos a maior do regime, com contratos de parceria parecerística com o Estado da ordem dos milhões e transformada até em autêntico legislador que ninguém sufragou democraticamente ( é dela a autoria, entre outros, do Código da Contratação Pública)?
A resposta a estas duas perguntas singelas é susceptível de nos esclarecer sobre a ideologia actual de José Miguel Júdice e sobre o pensamento de Sá Carneiro. Se a resposta for positiva a essas duas simples questões então devemos concluir que Sá Carneiro poderia mesmo estar no PS, à semelhança do que Júdice afirma. Ou no PSD porque seriam uma e a mesma coisa, com a distinção apontada: o flagrante jacobinismo do primeiro em detrimento do pragmatismo do segundo.
6 comentários:
Este "post", dá que pensar. Partilho muito desta opinião do José. Não percebo no entanto, e dado concluir que o José vê virtualidades e qualidades para um novo regime possível no pós-Abril, eliminando as práticas oportunistas dos seus protagonistas políticos,defenda, em determinadas alturas, uma via possível de transformação do país na chamada "primavera marcelista". Continuo a pensar, que a transformação ocorrida em Abril, foi positiva e absolutamente necessária. Quanto ao rumo que se seguiu e que nos fez aqui chegar, estamos de acordo: foi desvirtuado o espírito e usurpadas as ideologias em proveito de uma cáfila de oportunistas, a começar por um tal Soares.
Um dia, desenvolverei melhor este tema sobre: O regime impossível antes de Abril e a frustração por um regime desejável no pós-Abril.
Carlos: a minha ideia não está feita. É por isso que escrevo estas coisas depois de pensar nelas.
A ideia que o marcelismo poderia ser um regime com virtualidades ainda não a abandonei mas também considerei o evento do 25 de Abril como uma grande oportunidade de mudança do que estava mal: a censura, a polícia política e a guerra.
Quanto ao resto, estávamos no caminho certo mesmo com a Educação já com os tiques o igualitarismo jacobino.
José: à parte o resto em que até parece estarmos de acordo.
Não tenho a mesma opinião sobre o seu último parágrafo "Educação já com os tiques o igualitarismo jacobino". Naquele tempo (s/ heresia) apostou-se muito em cursos intermédios (SPI)ou, via Institutos, como plataforma de acesso às Universidades. E nesse aspecto, julgo que estava mais correcto. Não vejo nisso qualquer tentativa de facilitar, pela bandalheira, a obtenção de qualquer canudo exibicionista como actualmente. Curiosamente, neste aspecto, o do ensino, julgo que estava muito melhor estruturado no período marcelista.
Assim é que é falar claro.
para os contibuintes sobraram
a 5ª das lágrimas
o 5º dos infernos
Judice escreve sobre Sá Carneiro mas afinal não o entendeu.
A minha duvida é: Quem é este Júdice?
Já foi nacional-revolucionário e escreveu sobre José Antóno Primo de Rivera e a organização que este fundou (a falange espanhola); foi social-democrata e contou ainda com o apoio destes para ser bastonário; agora está (ou esteve) mais perto dos socialistas porque eram estes que estavam no poder; mas também quis manter-se colado à direita e foi da comissão de honra do PR, aquando da sua re-candidatura.
Afinal o que parece ser é um oportunista que quer é juntar milhões.
... E como também ele já defendeu: o que parece é...
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