sábado, setembro 26, 2015

Os juízes e o sal da terra

Nota prévia: não conheço o teor do acórdão relatado pelo desembargado Rui Rangel, o mediático ex-candidato à presidência do Benfica uma vez que tal não é facilmente obtido por quem quer que seja, estando ainda no âmbito do segredo de justiça que ainda vigora nos autos do processo do Marquês.
Evidentemente que os media já tiveram acesso ao mesmo e só pode concluir-se que essa violação de segredo se deve a quem interessa, ou seja à defesa do detido no 33.  Adiante que passo a apostilar o dito sobre o Pe António Vieira -"quem levanta muita caça e não consegue nenhuma não é muito que recolha com as mãos vazias", dito que se lhes aplica também, a esses mediáticos conferencistas-advogados que apostaram em ganhar uma causa perdida fora do processo devido e com desigualdade de armas manifesta e perigosa que deveria ser denunciada pela Ordem dos ditos. Afinal , o Estado de Direito também contende com tal assunto, mas a referida Ordem, neste caso,  parece unida no propósito daqueles e daí a impunidade.

Lendo o jornal i de hoje, com página e meia sobre o assunto e citações avulsas do referido acórdão, nada de especial consigo entender sobre a essência da decisão concreta, a não ser algumas considerações espúrias sobre a investigação criminal do MºPº que aparentemente excedem o objecto do recurso e portanto serão inadmissíveis, nesse caso.
A citação do Pe António Vieira  concita novas citações do referido padre da Igreja, escritor maior entre os nossos maiores que não são muitos.
Sobre o sal que conserva e tempera,  refere o padre-pregador que é o "antídoto da corrupção e a lisonja do gosto; é o preservativo dos preservativos e o sabor dos sabores"-"Sal incorruptionem corporibus, quibus fuerit asperus, imperit et ad omem sensum condit saporis aptissimus est" ( citação tirada da obra Textos Literários Séculos XVII e XVIII, de M. Ema Tarracha Ferreira, editorial Aster , 1966, usado nos então liceus).

Um juiz devia ser o sal da terra, tal como os pregadores o deveriam ser no tempo do Pe Vieira, conforme escreveu. No sermão de Santo António acrescenta: " o efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que tem ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção", pergunta em retórica de sermão, o referido padre-escritor. "Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar" E depois explica as variantes hipotéticas da inconsequência.
 Logo a seguir no mesmo sermão aparece a célebre passagem da pregação aos peixes...e insiste nas propriedades do sal: "haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que não se corrompa".

O desembargador ex-candidato à presidência do Benfica e comentador desportivo e de assuntos diversos nas tv´s e medias dispersos, deveria ter lido isto antes de escrever aquilo. E deveria sobretudo ter-se abstido de relatar o acórdão pelos motivos expostos. Mas não o fez e é agora novamente a estrela mediática do assunto em causa, perante a passividade de quem de direito.

O Correio da Manhã de hoje, jornal que nestes assuntos tem sido uma espécie de sal refinado, apesar de quem o não queira ver,  pega no assunto de ontem e comenta assim:


 E para aplicar o brocardo ridendo castigat mores, assim:





E sem muito riso, assim:




Por outro lado, para quem quiser entender algo sobre a substância do assunto em jogo, deixo aqui, ipsis verbis et coloris, uma passagem de um acórdão do trib. da Relação do Porto, de 10.2.2010:



 Antes da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que procedeu à 15.ª alteração do Código de Processo Penal, o processo penal encontrava-se em segredo de justiça durante a fase de inquérito, pois de acordo com o disposto no art.86.º, n.º1 do C.P.P. (na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) passava a ser público a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tivesse lugar, até ao momento em que já não pudesse ser requerida. O processo era público a partir do requerimento de instrução, se a instrução fosse requerida apenas pelo arguido e este, no requerimento, não declarasse que se opunha à publicidade.
Nenhum despacho tinha assim de ser proferido para o inquérito ficar sujeito ao segredo de justiça.
A filosofia subjacente à publicidade do processo e segredo de justiça mudou radicalmente de paradigma com as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
O artigo 86.º do Código de Processo Penal, passou a dispor, designadamente, o seguinte:
« 1- O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei.
2- O juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais.
3- Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase do inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
(…) ».
Deste modo a regra é, agora, a de que o processo penal é público e o segredo de justiça é a excepção, o qual vigora apenas durante a fase de inquérito.
O segredo de justiça, que além do mais serve para proteger a investigação e alguns interesses pessoais dignos de tutela, designadamente dos suspeitos e dos arguidos, atenta a presunção de inocência, e ainda das vítimas e de testemunhas, tem acutalmente lugar:
- quando o arguido, o assistente ou o ofendido requererem ao Juiz de Instrução a sujeição do inquérito ao segredo de justiça, por entenderem que a publicidade prejudica os seus direitos, ( n.º2 do art.86.º ) e o Juiz de Instrução, ouvido o Ministério Público, assim o decidir, por despacho irrecorrível; ou
- quando o Ministério Público, entendendo que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, determina a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, e o Juiz de Instrução , no prazo máximo de 72 horas, valida a decisão do Ministério Público (n.º3 do art.86).
Da letra do art.86.º, n.º3 do C.P.P. resulta que o Ministério Público determina a aplicação ao processo do segredo de justiça “durante a fase de inquérito”.
O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação ( art.262.º, n.º1 do C.P.P.).
Como regra, a abertura do inquérito ocorre com a notícia do crime ( art.262.º, n.º2 do C.P.P.) e e seu encerramento pelo Ministério Público deve ocorrer nos prazos máximos indicados no art.276.º do C.P.P. que estatui, designadamente, o seguinte:
« 1. O Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, nos prazos máximos de seis meses, se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de oito meses, se os não houver.
(...)
3. Para efeito do disposto nos números anteriores, o prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido.
(...) ».
Enquanto no regime processual anterior o prazo de encerramento do inquérito se contava a partir do auto de notícia do crime e da abertura do processo, hoje o prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido.
Por fim , o art.89.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, estatui o seguinte:
« Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de Justiça, salvo se o Juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.»
Procedendo a uma análise do art.89.º, n.º6 da Código de Processo Penal, o Prof. Frederico de Lacerda da Costa Pinto ( Publicidade e Segredo na Última Revisão do Código de Processo Penal , Revista do CEJ , 1.º Semestre 2008, Número 9, páginas 7 a 44 ) começa por realçar que a “ a solução do artigo 89.º, n.º 6, foi construída [ no Anteprojecto e na Proposta de Lei] num contexto em que o Ministério Público decidia unilateralmente e sem controlo judicial do acesso ao processo, que ficaria em segredo de justiça enquanto o titular do inquérito não encerrasse esta fase processual. Portanto, o regime foi pensado para evitar um prolongamento excesssivo do segredo de justiça dependente em todos os aspectos de uma única entidade – o que significava para o arguido a manutenção desse estatuto e para a assistente a ignorância do que estaria a ser feito, por força do regime de acesso aos autos. Ora, o regime mudou radicalmente com as alterações do Parlamento, pelo que a sua função estabilizadora dos diversos interesses em potencial conflito se encontra agora perdida e em risco de ser adulterada. No contexto da nova regulação do segredo de justiça e do acesso aos autos, matéria sujeita a um intenso controlo judicial, o regime do art.89.º, n.º6, do C.P.P. é razoavelmente desnecessário e gera mais problemas do que aqueles que resolve, podendo facilmente ser convertido num instrumento de boicote à investigação criminal.”.
Como modo de ultrapassar os inconvenientes deste regime – para o que propõe, designadamente, a criação no art.276.º do C.P.P. de um regime de suspensão de contagem do prazo do inquérito quando estiverem em causa diligências a executar por terceiros, que não o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal, ou declaração de inaplicabilidade do regime à criminalidade organizada, em especial aos crimes económico-financeiros, à corrupção e à criminalidade transnacional – o Prof. Frederico de Lacerda da Costa Pinto defende, num esforço de interpretação conforme ao art.20.º, n.º3 da Constituição, que “ ...numa leitura articulada materialmente com o interesse público inerente à investigação criminal, o art.89.º, n.º 6, do CPP não pode permitir o acesso automático aos autos sempre que tal possa pôr gravemente em causa a investigação, se a sua revelação criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.”.
Para este efeito invoca a aplicação analógica do limite do art.194.º, n.º 4, al, b), do C.P.P., que estabelece que a fundamentação do despacho que aplicar medidas de coacção só deve enunciar os indícios probatórios, dando-os a conhecer ao arguido, se não puser gravemente em causa a investigação, se não impossibilitar a descoberta da verdade ou a sua revelação não criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.
Adoptando a interpretação preconizada pelo Prof. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 428/2008, de 12 de Agosto de 2008, decidiu julgar inconstitucional, por violação do art.20.º, n.º3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do art.89.º, n.º6, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, segundo a qual é permitida e não pode ser recusada ao arguido, antes do encerramento do inquérito a que foi aplicado o segredo de justiça, a consulta irrestrita de todos os elementos do processo, neles incluindo dados relativos à reserva de vida privada de outras pessoas, abrangendo elementos bancários e fiscais sujeitos a segredo profissional, sem que tenha sido concluida a sua análise em termos de poder ser apreciado o seu relevo e utilização como prova, ou, pelo contrário, a sua destruição ou devolução, nos termos do n.º7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal.
Em face do exposto, considerando o regime legal resultante da Lei n.º 48/2007, o Tribunal da Relação entende que, sendo a regra actualmente a publicidade do inquérito, o segredo de justiça apenas pode vigorar, com a concordância do Juiz, durante os prazos estabelecidos na lei para a realização do inquérito; fora desses prazos o segredo de justiça pode manter-se, a requerimento do Ministério Público, por um período máximo de 3 meses, que pode ser prorrogado por uma só vez e, mesmo depois desta prorrogação - numa exigência de interpretação conforme ao art.20.º, n.º 3, da C.R.P. - quando o acesso aos autos puser em causa gravemente a investigação, se a sua revelação criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime.
Assim, tal como se defende nos acórdãos da Relação do Porto, citados no despacho recorrido, entendemos que a determinação de aplicação do segredo de justiça pelo Ministério Público, nos termos do art.86.º, n.º 3 do C.P.P., deverá ocorrer dentro dos prazos de duração máxima do inquérito assinalados no art.276.º do Código de Processo Penal.
Também o pedido do Ministério Público, de prorrogação do segredo de justiça, deve ser feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no art.276.º do C.P.P – cfr. neste sentido, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Univ. Católica Ed., 2007, pág. 258.
Pese embora a direcção do inquérito caiba ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal ( art.263.º, n.º1, do C.P.P.) e seja ele quem procede à determinação de aplicação do segredo de justiça (art.86.º, n.º3 do C.P.P.), incumbe ao Juiz de Instrução a validação dessa determinação de aplicação do segredo de Justiça.
Sendo a validação, ou não, um acto decisório do Juiz de Instrução, para este ponderar os interesses que subjazem ao afastamento da regra da publicidade, terá o Ministério Público de indicar minimamente as razões pelas quais no caso concreto se deverá afastar a regra e optar-se pela excepção da sujeição do inquérito ao segredo de justiça.


6 comentários:

zazie disse...

Grande postal, José. E deliciosas parábolas que se lembrou pegando-lhes na citação do Padre António Vieira.

Não se lê disto nos jornais.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Será isto?
https://drive.google.com/file/d/0Byq2i93xmND7a3k0WWdUZXlvVGxFdUxid3hwUlNPemJBZ1hN/view?pli=1

Manuel disse...

Não percebo muito de justiça, mas esta frase cheira-me a esturro. O candidato derrotado ao lugar do Luís Filipe Vieira tentou encalacrar o processo ou é apenas impressão minha?
"assim se declarando o fim do segredo de justiça interno desde a data de 15 de Abril de 2015".
Será que também deve muito ao 44? Ou aspira a voos mais altos?
Lembrei-me logo de outro dito do Pe.Ant.Vieira:
"Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?"
Padre António Vieira

Manuel disse...

Em qualquer caso, 0 44 já tem o que queria, saber precisamente até quanto descobriram dos seus vícios privados para começar agora a rebater as acusações uma por uma até tornar a pesada pena a que tinha direito numas férias em Évora.

josé disse...

"assim se declarando o fim do segredo de justiça interno desde a data de 15 de Abril de 2015".

Não me parece que seja isso...

Floribundus disse...

o sal da terra também pode ser o sal gema cuja cristalização é mais antiga

no meu longinquo tempo de jovem
o porco (COM LICENÇA DA CONVERSA) ia parcialmente para a salgadeira antes de ser fumado

recuso tentar perceber a lógica do direito
por este não decorre de leis naturais,
as suas são fabricadas pelos politiqueiros de acordo com o seu desejo

muito disto funciona off shore

'e mais não digo, por não saber ...'

O Público activista e relapso