O Correio da Manhã tem feito um belíssimo trabalho jornalístico na efectiva e real luta contra a corrupção em Portugal, principalmente a de alto coturno e que tem ficado quase sempre acantonada nas declarações piedosas de alguns políticos e governantes. Tais declarações circunspectas não passam disso mesmo na generalidade dos casos.
Lembremo-nos do que o engenhoso Cravinho tem andado a dizer e a fazer durante os últimos vinte anos, para termos um paradigma disso mesmo.
A entidade que em Portugal tem o monopólio da investigação criminal, o Ministério Público, apesar de melhorias pontuais evidentes, ainda não atingiu a maturidade de uma instituição acima de qualquer influência e à margem de qualquer rato infiltrado que aí faça ninho.
A prova de que certos poderes políticos tentam a todo o custo controlar directa ou indirectamente tal poder do Estado, advém desde logo da circunstância de ser exactamente o poder político executivo ( Governo principalmente e presidente da República, com poderes próprios) a nomear o chefe dessa instituição. Os exemplos dos últimos 30 anos estão aí e podem escrutinar-se, porque afinal, nesse período que é quase uma vida, passaram na instituição apenas quatro pessoas.
Não obstante et pour cause a mesma instituição ainda não alcançou a carta de alforria de independência reconhecida pela voz do povo no sentido de dar um cumprimento efectivo ao comando constitucional que é também civilizacional acerca da igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Não vivemos em regime monárquico, no qual algumas figuras tenham privilégios especiais de imunidade e não vivemos em regime em que essa imunidade deva ser protegida por mor das conveniências de Estado.
Nos últimos meses fizeram-se progressos assinaláveis no caminho da dignificação dessa instituição mas ainda não é suficiente e notam-se algumas falhas importantes e mortais para tal desiderato se tornar efectivo.
O grupo do Correio da Manhã tem contribuído para tal tarefa quase em exclusivo porque os demais "jornais de referência" apenas lhe seguem a peugada, quando seguem e o patrão semi-oculto os deixa. Os demais media, com destaque para as tv´s, são uma lástima completa, neste domínio.
Só por isso o jornal merece uma condecoração honrosa e de grande mérito pelo contributo em tornar Portugal um país mais civilizado e frequentável.
Curiosamente tal grupo não tem actuado com espírito de missão cavaleira e justiceira, ou sequer politiqueira, mesmo que alguns o afirmem e tentem calar judicialmente. O grupo tem actuado, segundo se mostra, apenas por interesse comezinho de gerar lucros e ainda juntando a essa utilidade a agradabilidade de contribuir para um bem-estar comum mais consentâneo com a vivência numa comunidade civilizada, para não ir mais longe.
Julgo que o naipe de jornalistas que aí trabalham não será muito melhor que outros que trabalham noutros media. São apenas um grupo que tomou consciência da realidade circundante, ambiente do nosso Portugal contemporâneo e que durante muito tempo andou escondido da ribalta.
Esse grupo que se reúne à volta de um director sem peneiras e com verdadeiro espírito jornalístico, tem a liberdade de escrever sobre tal ambiente que denota uma corrupção política evidente e de grande coturno. Isto parece-me indesmentível e de grande importância.
Não obstante, com as limitações inerentes à incapacidade de investigação própria e independente, torna-se também claro que o grupo se serve em boa parte dos casos de investigações judiciárias que resultam em processos criminais.
A saga das violações de segredo de justiça tem aí a sua aparente justificação mas não se esgota nesse patamar, uma vez que tais violações são consequência natural e inevitável das contradições legais existentes. Sendo verdade que sem violação de segredos de justiça algumas notícias não poderiam ser apresentadas ao público também é verdade que o público tinha e tem o direito pleno de as conhecer porque lidam com matérias políticas de grande relevância civilizacional.
A corrupção de políticos não pode ser oculta em segredos de justiça, à espera de um godot que aprecie judicialmente algo que poderia e deveria ser conhecido se existisse investigação jornalística a sério, em Portugal.
O Correio da Manhã tem feito em muitos casos o contrário do que o antigo Independente ( que proximamente será objecto de análise por causa do magnífico livro que anda aí, sobre o jornal) fazia: em vez de propiciar investigações judiciais a partir de denúncias jornalísticas de factos, aproveita já as investigações para dar as notícias...
Assim, vamos ao que interessa:
A edição de hoje traz uma crónica de Eduardo Cintra Torres que lembra um assunto que a semana noticiosa trouxe à ribalta: o dos serviços secretos que temos.Na crónica está a notícia: o ex-espião Silva Carvalho que responde em tribunal por crimes que o MºPº investigou denunciou agora crimes que o MºPº não se sabe se vai investigar. E deveria saber-se.
Silva Carvalho disse em Julgamento, como arguido que as secretas trabalham ilegalmente na maior parte da sua actividade ( 90%, referiu...) "usam meios claramente ilegais como vigiar pessoas no espaço público, fotografá-las, filmá-las" e que tal é do conhecimento e autorização das chefias.
Implicou directamente o chefe principal, o magistrado do MºPº em comissão de serviço há muito, muito tempo, Júlio Pereira.
ECT refere acertadamente que este Júlio Pereira sobreviveu sempre a governos diversos nessa chefia e "o governo de Passos deixou as mesmas chefias que encontrou", sendo certo que depende dele, pessoalmente, a confiança naqueles. Ou seja, Passos Coelho tem confiança em Júlio Pereira e Silva Carvalho disse agora que este mesmo Júlio Pereira pode ser autor ou cúmplice de crimes continuados que são pelo menos os mesmos de que ele é acusado e por que está a ser julgado.
A questão que se coloca agora é mais importante: o Ministério Público que acusou Silva Carvalho sabia destes indícios antes? Investigou devidamente?
Retome-se uma notícia do mesmo Correio da Manhã, de Sexta-Feira, 20 de Novembro:
Deixemos de lado o caso particular do desembargador Rangel, lamentável a vários títulos e concentremo-nos no pormenor da notícia que dá conta, citando escutas telefónicas que não se sabe se estão em segredo de justiça, de que Antero Luís, juiz desembargador e ex-director do SIS falou com um amigo, presidente do IRN que agora está preso por práticas de corrupção nos "vistos gold". A conversa terá versado negócios que se forem verdadeiros porão em causa a dignidade inerente ao exercício de funções judiciais.
Este mesmo Antero Luís é agora desembargador depois de ter servido em comissão de serviço no SIS. Em 2005, data do consulado de José Sócrates com a memória do tempo que agora temos, Antero Luís
foi escolhido como adequado à função. Em 2011, foi escolhido por José Sócrates,
como director do SSI...
no tempo em que Noronha Nascimento era presidente do STJ. E esteve
quase, quase a substituir o mencionado Júlio Pereira...no posto máximo das secretas portuguesas.
Antero Luís já fora notícia, também no
C.M. em 14 de Novembro de 2014, fez agora um ano.
Antero Luís foi escutado num telefonema com António Figueiredo, o
presidente do Instituto de Registo e Notariado que foi um dos 11 detidos
na operação da Unidade nacional de Combate à Corrupção da PJ.
O
juiz ter-lhe-á ligado a perguntar se encontraria compradores para um
apartamento que um irmão dele detinha na zona de Leiria. O imóvel foi
visitado pelos potenciais clientes, mas o negócio não foi fechado.
O
preço pedido, mais de três milhões de euros, seria muito acima do valor
de mercado. A PJ escutou tudo e fotografou a visita ao imóvel.
Contactado
pelo Observador, o Conselho Superior de Magistratura diz que não foi
informado e que esse é o procedimento normal em caso de investigação.
Esta situação particular do referido desembargador não é singular mas pluraliza-se em
jantares avulsos na companhia do referido ex-presidente do IRN que não podem ser considerados anódinos.
Isto é o que se sabe publicamente, para além de outras notícias que
mostram o que não devia ser permitido, desde muito cedo.
E sabe-se também que o processo que foi instaurado nos serviços do MºPº no STJ a fim de investigar a actuação daqueles magistrados judiciais ( Júlio Pereira e Antero Luís) além de outros ( Vaz das Neves por outro assunto e Horácio Pinto pela ajuda ao "varrimento electrónico")
foi arquivado, já no corrente ano, certamente por ausência de provas suficientes da prática de crimes e eventualmente de ilícitos disciplinares.
Para o cidadão comum que acompanha estas coisas torna-se algo incompreensível que tudo isto fique em águas de bacalhau e que o Ministério Público tenha assumido uma posição institucional que pode não contribuir para a melhor imagem que se exige à instituição na concepção acima apontada.
Lembra-se a este propósito que mediante denúncias anónimas, simplesmente, dirigidas ad personam ao juiz de instrução criminal Carlos Alexandre aqui há uns meses,
o mesmo Ministério Público foi pressurosamente instaurar inquéritos que contenderam com dignidade pessoal do mesmo magistrado, obrigando-o naturalmente e para evitar suspeitas, a fazer prova de factos negativos e a demonstrar, por vontade própria, todo o seu património com explicações detalhadas do modo como o obteve.
Tais inquéritos chegaram ao conhecimento dos media através de notícias que denotam o interesse particular de quem denunciou anonimamente e por outro lado, as próprias denúncias anónimas pela profusão de pormenores particulares, noticiados na altura, fazem suspeitar de algo pouco natural a estas denúncias. Fazem suspeitar precisamente do que não se deveria suspeitar e de que alguém andou a vigiar os movimentos desse magistrado e doutros, conhecendo-lhes os passos e ensinando modos de reconhecimento. Quem teria interesse nisso? Vários suspeitos se alevantam, claro está, mas o teor das denúncias suscita a redução dos mesmos.
Será que o MºPº procurou inteirar-se do modo como lhe chegaram as notícias, através de denúncias directas à PGD de Lisboa e duplicadas a outras entidades?
A investigação deste tipo de processos, incluindo agora aqueles em que foram visados os referidos magistrados em comissões de serviço nas "secretas", deviam ser particularmente rigorosas, com absoluto segredo de justiça, com meios particularmente poderosos e terem o mesmíssimo âmbito que os inquéritos ao juiz Carlos Alexandre teve: atingir onde pode doer mais, porque não deve subsistir a mínima suspeita do que foi denunciado. E ver o resultado...
Será que sucedeu o mesmo com o inquérito aos tais magistrados em comissão de serviço terminada entretanto e com as vicissitudes que se conhecem?
Se tal não sucedeu e foram inquéritos pro forma é preciso saber porquê e só os jornais o podem fazer. Melhor, só um jornal o poderá fazer: precisamente o Correio da Manhã. Sendo tais inquéritos com acesso legalmente público seria interessante ver o efeito. A dúvida sobre isso é que não deve subsistir e compete ao Mº Pº afastar tais dúvidas em nome daquele princípio sagrado da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Se um qualquer magistrado que venda bilhetes anunciados na internet a preço acima do tabelado nos mesmos é punido pelo CSMP e pelos tribunais administrativos e penais, com um ano de suspensão de actividade com perda de vencimento, tendo até sido proposta a demissão, o que dizer disto?
O que dizer do que se passou em 2009 aquando da passagem de Pinto Monteiro pela PGR? O que dizer da inacção do CSMP nessa altura?
Estes assuntos têm que ser devidamente equacionados por quem de direito e pelos media, sob pena de o MºPº português pouco se distinguir de outros países onde a independência do MºPº face ao poder político é zero.
Torna-se necessário perceber o modo de funcionamento democrático dos
conselhos superiores das magistraturas que são a chave para se
entenderem estes assuntos. Perceber a sua vertente de composição
política, o seu modus operandi concreto, a idiossincrasia dos elementos que os compõem e no fim de contas a sua
verdadeira democraticidade, porque dela depende a legitimidade e a actuação nos níveis mais superiores que se referem a estas investigações.
Não pode haver níveis de impunidade em Portugal que passem por sectores protegidos, seja pelos pares, seja pela rotina, seja pela existência de consciências adormecidas ou normas entendidas como tal.
Quando tal mudança se operar e seja publicamente reconhecida, Portugal será finalmente um país moderno e respeitável. Até lá, essencialmente, não nos distinguimos de qualquer Angola, mesmo com as devidas distâncias.