Neste caso das escutas no caso da sucata, há quem diga abertamente e com toda a ponderação que o segredo de justiça é um valor em si mesmo, e a sua violação um crime mais grave do que aqueles que se podem conhecer através da sua violação. A razão é sempre a mesma, mas revestida de uma hipocrisia indisfarçável, porque aqueles que assim o dizem não aplicam o raciocínio sempre e em todos os casos, mas apenas naqueles que lhes dizem respeito. Logo, são razões que a razão desconhece.
Ora o segredo de justiça processual destina-se sobretudo, a proteger a eficácia da investigação e só em último caso, a eventual honra dos visados, quando efectivamente a têm.
Terão, neste caso, alguma honra a preservar pelo segredo de justiça, os visados que se conhecem? O PM terá alguma honra a preservar neste caso, quando se sabe que as suas conversetas são o exemplo mais flagrante pelo desprezo da consideração que certos assuntos políticos deveriam merecer a um chefe de governo?
E se tiver, não haverá um conflito de valores entre essa honra residual a preservar e o interesse nacional em denunciar um político moralmente delapidado, como o é aquele que mente despudoradamente a quem não devia mentir, ou seja, ao povo, em matérias sérias e graves?
Vejamos o que escreve Mário Crespo no JN de hoje( que a continuar assim, verá o "amigo Joaquim" a cortar-lhe a colecta não demora nada...):
Mark Felt foi um daqueles príncipes que o sólido ensino superior norte-americano produz com saudável regularidade. Tinha uma licenciatura em Direito de Georgetown e chegou a ser uma alta patente da marinha dos Estados Unidos. Com este formidável equipamento académico desempenhou missões complexas no Pentágono e na CIA.
Durante a guerra do Vietname serviu no Conselho Nacional de Segurança de Henry Kissinger. Acabou como Director Adjunto do equivalente americano à nossa Polícia Judiciária. Durante vários anos foi Director Geral interino do FBI.
Foi nesse período que Mark Felt se tornou no Garganta Funda. Muito se tem escrito sobre as motivações de um alto funcionário do aparelho judiciário americano na quebra do segredo de justiça no Watergate. Todo o curriculum de Felt impunha-lhe, instintivamente, a orientação clássica de manter reserva total sobre assuntos do Estado.
Hoje é consensual que Mark Felt só pode ter denunciado a traição presidencial de Nixon por uma razão. Para ele, militar e jurista, acabar com o saque da democracia americana era uma questão de honra.
Pôr fim a uma presidência corrupta e totalitária era um imperativo constitucional. Felt começou a orientar em segredo os repórteres do Washington Post quando constatou que todo o aparelho de estado americano tinha sido capturado na teia tecida pela Casa Branca de Nixon e que, com as provas a serem destruídas, os assaltos ao multipartidarismo ficariam impunes. A única saída era delegar poder na opinião pública para forçar os vários ramos executivos a cumprir as suas obrigações constitucionais.
Estamos a viver em Portugal momentos equiparáveis. Em tudo. Se os mecanismos judiciais ficarem entregues a si próprios, entre pulsões absurdamente garantisticas, infinitas possibilidades dilatórias que se acomodam nos seus meandros e as patéticas lutas de galos, os elementos de prova desaparecem ou são esquecidos.
Os delitos ficam impunes e uma classe de prevaricadores calculistas perpetua-se no poder. Face a isto, há quem no sistema judicial esteja consciente destas falhas do Estado e, por uma questão de honra e dever, esteja a fazer chegar à opinião pública elementos concretos e sólidos sobre aquilo que, até aqui, só se sussurrava em surdinas cúmplices.
E assim sabe-se o que dizem as escutas e o que dizem as gravações feitas com câmaras ocultas que registam pedidos de subornos colossais. Ficámos a conhecer as estratégias para amordaçar liberdades de informação com dinheiro do Estado. E sabemos tudo isto porque, felizmente, há gente de honra que o dá a conhecer.
Por isso, eu confio no Procurador que mandou investigar as conversas de Vara com quem quer que fosse. Fê-lo porque achou que nelas haveria matéria de importância nacional. E há. Confio no Juiz que autorizou as escutas quando detectou indícios de que entre os contactos de Vara havia faces até aqui ocultas com comportamentos intoleráveis.
E, infelizmente o digo, confio, sobretudo, em quem com toda a dignidade democrática e grande risco pessoal, tem tomado a difícil decisão de trazer ao conhecimento público indícios de infâmias que, de outro modo, ficariam impunes.
A luta que empreenderam, pela rectificação de um sistema que a corrupção e o medo incapacitaram, é muito perigosa. Desejo-lhes boa sorte. Nesta fase, travam a batalha fundamental para a sobrevivência da democracia em Portugal. Têm que continuar a lutar. Até que a oposição cumpra o seu dever e faça cair este governo.
5 comentários:
Deixo aqui os parabéns ao Mário Crespo, principalmente pelo último parágrafo. Talvez ele nem tenha a noção exacta da oportunidade do exemplo do seu escrito quando cita o caso daquele militar. O país está a passar por uma fase muito feia.
Está complicado... A oposição faça cair... Cair, só se for o regime, de maduro.
A oposição pouco tem feito uso do cv do senhor Sócrates. Não sei porquê. A minha tese é que a maior parte revê-se naquilo. Principalmente muito PSD. E mais vale não fazer muitas ondas.
Além disso, fazer cair para quê? Para votos? Este indivíduo, com jeitinho ganha outra vez e depois como é? Ele ainda agora foi eleito e o cv já era de respeito. -- JRF
Caro amigo
Aonde se pode ler (se existe) a fundamentação do STJ sobre a matéria?
Sobre quê? O segredo de justiça?
Desculpe, estávamos a referir à justificação do STJ para arquivar as escutas
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