sexta-feira, janeiro 10, 2014

Crime de violação de segredo de justiça: a grande hipocrisia


"É um ponto de partida para futuras correções", disse Joana Marques Vidal, durante uma sessão pública no palácio da Procuradoria-Geral da República (PGR), em Lisboa, referindo-se às conclusões e a algumas propostas para reduzir o fenómeno, constantes num relatório de 106 páginas distribuído à imprensa.

Uma das sugestões feitas é a possibilidade de poder fazer escutas a jornalistas e realizar buscas nas redações, de forma a apreender computadores e blocos de notas. A PGR quer também que seja introduzido um sistema de multas pesadas para jornalistas e órgãos de comunicação social, que permita ainda decretar a suspensão da atividade profissional para quem nas redações violar o segredo de justiça. 


Ainda não li o relatório de cem páginas sobre a matéria em apreço. Porém, devo dizer que tem toda a lógica a proposta efectuada pelo inspector-relator, de permitir que o crime de violação de segredo de justiça possa ser investigado com recurso a escutas telefónicas. Para tal bastaria que a moldura penal abstracta o permitisse. Actualmente, a pena para a violação desse segredo é de prisão até dois anos ou multa até 240 dias. É uma peneca, como se costuma dizer e nunca alguém irá preso por isso. Por outro lado, não é possível ouvir telefones e verificar telefonemas para se investigar tal crime porque a lei processual não o permite. Como se escreve neste acórdão do STJ, de 2009 e de fixação de jurisprudência:

 Artigo 187.º
Admissibilidade
1 – A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes:
a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;(...)


Porém, apesar da definição do que é e significa o segredo de justiça, atentas as dificuldades em circunscrever o ilícito em toda a sua dimensão e compreensão das restrições, particularmente depois da reforma processual de 2007, abrangendo jornalistas e notícias, é necessário algum cuidado, como refere a PGR. Como se escreveu aqui, em 2008, neste acórdão da Relação de Coimbra:

"Em suma, do art. 371, nº 1, do Código Penal resulta um dever penal autónomo de não praticar uma conduta (dar ilegitimamente a conhecer) em função dum certo objecto (teor de acto processual sujeito a segredo de justiça ou outro regime de reserva), e não um dever condicionado vinculação processual decorrente do art. pela 86, nº 4, do Código de Processo Penal"[5].
O âmbito material do art. 371 abrange a revelação do teor do acto processual mas não divulgação do facto histórico da a mera ocorrência do acto em si mesmo.

Sendo assim, das duas uma: ou se altera a medida abstracta da pena para permitir tais escutas e consultas de telefones, ou se permite expressamente, incluindo tal crime no catálogo dos que são possíveis de investigar com escuta, incluindo por isso as redacções e os jornalistas. Será que o crime em causa vale o esforço? Por mim, acho que não e passo a explicar.
 Porque é que se torna importante fazer tais escutas nestes casos? Parece-me óbvio uma vez que actualmente tudo se faz ao telefone, principalmente o trabalho jornalístico.

Por outro lado tudo isto releva de uma grande hipocrisia dos preocupados de sempre com as escutas . Os casos mais falados relativamente a violações de segredo de justiça são os mediáticos, com personagens políticas ou sociais. São esses e apenas esses. Ora em alguns desses casos é perfeitamente estulto pensar que se deverá manter o segredo de justiça ad aeternam, porque a voracidade mediática não o permitiria nunca. 
E daí a hipocrisia: quem se queixa das violações de segredo de justiça muitas vezes fá-lo perante os mesmos órgãos de informação que cometeram a violação e se deixam ficar mudos e quietos comos e nada fosse com eles...
Uma coisa é certa: o famigerado "interesse público" na maior parte dos casos é interesse jornalístico em vender papel ou captar audiências e mais nada. Uma boa parte das violações recentes do segredo de justiça era perfeitamente escusada em nome do interesse público inexistente objectivamente.

Mas dizer isto a um jornalista é pior que cuspir-lhe na sopa...

Volto a citar um caso gravíssimo de violação de segredo de justiça, recente e que ficou impune: o da comunicação aos suspeitos do Face Oculta do facto de estarem a ser escutados, por altura do S. João de 2009. O inquérito correu termos no DIAP mas as conclusões ficaram...em segredo de justiça porque os jornalistas perderam o interesse que era um interesse público da mais alta relevância.
É ou não uma hipocrisia aquilo a que assistimos neste aspecto?


Questuber! Mais um escândalo!