sábado, março 01, 2014

A cantiga era uma arma...e eu não sabia- memórias da música popular portuguesa I





Cinéfilo de 15 de Junho de 1974 em que se faz uma prognose póstuma do panorama musical nacional da época. Tipicamente esquerdista.
O indivíduo que assina o texto, Mário Contumélias é o mesmo que no ano seguinte foi corrido do Diário de Notícias dirigido de facto pelo futuro Nóbél Saramago. Contumélias tinha sido eleito presidente do Sindicato dos Jornalistas e nem isso o safou. Antes pelo contrário...
O mesmo Contumélias, esquerdista atingido pela fatal doença infantil que os comunistas do PCP estavam dispostos a tratar com remédios experimentados por Estaline, menciona a expressão "nacional-cançonetismo". Esta expressão terá sido inventada por João Paulo Guerra e José Cardoso Pires, no suplemento A Mosca do Diário de Lisboa...para designar o que mais tarde, nos anos oitenta, veio a ser conhecido como música pimba, mas não só. Era uma designação operativa para distinguir os bons dos maus...segundo os altos critérios daqueles.Tipicamente esquerdista.

Há quarenta anos que músicas se ouviam em Portugal, no espaço público dos rádios e no privado dos discos e discotecas que vendiam o suporte principal que era o disco single de 45 rpm e o LP de 33 1/3?
Não é fácil saber com precisão e para além da memória mais ou menos vaga de um ou outro tema que marcou esse tempo.Para mim, o que marca a mpp de 1973 é o tema O Café, de Fernando Tordo e Ary dos Santos.

Uma coisa parece certa, porém: a música que se produzia no estrangeiro e era sucesso também por cá aparecia com mais ou menos intervalo de meses.
Assim, sabendo o que se publicava no mercado anglo-saxónico mas também brasileiro, espanhol ou francês, pode ter-se uma ideia emparelhada com as músicas que por cá se produziam e vendiam em disco.

Em finais de 1973 e início de 1974 também não havia em Portugal  suficiente informação escrita sobre a música popular ou outra. 

Musicalíssimo de 9 de Novembro de 1973 onde se malha em Letria...


Musicalíssimo 9 de Novembro de 1973.

Ao Mundo da Canção, com saída mensal, juntava-se um jornal- Musicalíssimo- e uma revista quinzenal- Cinéfilo-também virada para as artes da música e outros espectáculos. A par de uma revista semanal de televisão, antecessora das TVMais e outras que tais- a R&T.  E era tudo ou quase. Muito pouco, uma vez que apenas a Mundo da Canção  mostrava algum eclectismo no tratamento de temas, ocupando a maior parte das páginas com as letras das canções, de todas as nacionalidades, incluindo a nossa, com os então chamados cantores de intervenção.
Neste tipo de música produzida e editada em disco por etiquetas como a Guilda da Música, Zip Zip-Movieplay, Orfeu, Arnaldo Trindade do Porto, Valentim de Carvalho, de Lisboa ou mesmo a Philips, ou até a Ofir, Rapsódia e Alvorada,  destacam-se dois ou três cantautores nacionais que passavam no rádio sem problemas de maior com a Censura, exceptuando alguns temas mais explícitos na oposição ao regime.
O primeiro é Sérgio Godinho, com dois discos longos lançados em 1971 e 1972 cujos temas, todos excelentes, passavam amiúde em certos programas de rádio. Nem todos os temas, mas o destaque ia todo para O Charlatão ou Romance de um dia na estrada, do primeiro Lp, Sobreviventes, aparecido no Outono de  1971 ( Guilda da Música-Sassetti & Co Lda) ou A noite passada e O Homem dos sete instrumentos, do segundo LP,  Prè-Histórias,  gravado em meados  de 1972, em Hérouville, França  e ouvido em 1973 ( Guilda da Música). 


Esses temas eram passados sem problemas censórios, nos programas de rádio de então que eram estes essencialmente: PBX, ( começado em 1968 e animado pelos mesmos do Zip Zip e passado no Rádio Clube Português, à noite e de manhã, em onda média e FM. Na Rádio Renascença poderia ouvir-se a Página Um, animado por José Manuel Nunes e Adelino Gomes, às 7 e meia da tarde, depois do Terço e até às nove.  

Duas páginas da revista R&T de 5 de Janeiro 1974, com a programação  dos rádios..

Quem queria ouvir a boa música portuguesa e estrangeira, bastava sintonizar tais programas. Porém, durante o dia também havia programas que passavam estas músicas.  
José Afonso era outro nome que contava para este panorama. Em 1973, no Natal, é lançado o grande disco Venham mais cinco. No ano anterior tinha saído o LP Eu vou ser como a toupeira, com temas esconsos como A morte saiu à rua, cuja autorização censória terá sido negociada com Feytor Pinto, porque o tema era demasiado idiossincrático ( tratava da morte de um comunista...às mãos da polícia de então). 
Venham mais cinco tem dois temas que eram passagem obrigatória no rádio da época e não só naqueles programas mais virados de avesso ao regime: o título tema e A formiga no carreiro, principalmente.
Não obstante a grande qualidade sonora, musical  e temática, a imprensa da época não parecia muito entusiasmada, como se pode ler nesta recensão em modo de balanço do ano, na R&T de 5 de Janeiro de 1974.

José Afonso, a par de Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira e José Mário Branco era um dos monstros sagrados da canção de protesto,  os nossos Pete Segers e Phil Ochs, ou, noutra dimensão que dali a meses se tornaria realidade, os Victor Jara nacionais.
A oposição ao regime de Marcello Caetano, mesmo com a liberalização relativa da Primavera Marcelista, a partir de 1968, dava-lhes todo o espaço  e importância.
Estes quatro cantautores tinham publicado em 1971, cada um deles, álbuns de referência na música popular portuguesa. Sérgio Godinho, Os Sobreviventes; José Afonso, Cantigas do Maio ( o que tem Grândola, Vila morena e que foi a música que sinalizou o começo do golpe militar em 25 de Abril de 1974, disco entregue por José Jorge Letria a Carlos Albino Guerreiro, para passagem no programa Limite, como aconteceu- episódio narrado por JJL no seu livro de memórias em que "e tudo era possível"); Adriano Correia de Oliveira, Gente Daqui e de Agora e José Mário Branco, com Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.  


Esses quatro discos são as obras-charneira da mpp revolucionária ou em vias disso, do “canto de intervenção” e todos eles, pelo menos em alguns temas,  passavam no rádio, apesar da Censura.
Esta espécie de renovação da mpp, foi obra destes esquerdistas comunistas e começara alguns anos antes, com o advento da tal Primavera Marcelista em 1968, depois da queda de Salazar.
Em 1969 um programa de tv juntava-se a esta “primavera”, o Zip-Zip, por onde passaram alguns intérpretes  de música ligeira que se afeiçoavam a esta mudança.
Um deles é a pedra de toque desta renovação por via de uma balada: Manuel Freire, com Pedra Filosofal, um clássico da nossa cultura popular e musical, com letra de António Gedeão.
O Zip Zip apoiara ainda um outro baladeiro, José Barata-Moura, comunista empedernido e intelectual  universitário , ainda hoje. Em 1973 lançou um disco que continha uma  cantiga  que fazia sucesso no rádio: "Vamos brincar à caridadezinha".
Em 1972 aparecia no mercado e passava no rádio outro excelente trabalho musical, da autoria de José Niza , um esquerdista que integrou depois o PS,  com letras de todas as canções de António Gedeão e vários intérpretes que se destacaram posteriormente na “canção de intervenção”  e até na canção que era uma arma:  o disco Fala de um Homem Nascido  tinha vozes de Duarte Mendes, Carlos Mendes, Samuel e Tonicha e era muito ouvido nessa altura do ano de 72-73. 


 

Ao mesmo tempo que na música popular ocorriam estas mudanças, na imprensa surgia em 1969 um suplemento no Diário de Lisboa, chamado A Mosca que integrava redactores como José Cardoso Pires, João Paulo Guerra ( que já tinha sido responsável pela Memória do Elefante) Luís Sttau Monteiro, Pedro Alvim, Joaquim Letria e Fernando Assis Pacheco.


Quem falta neste grupo? Alguns, como José Jorge Letria que em 1973 lançara o primeiro disco ao vivo, De viva voz; Francisco Fanhais, o padre revolucionário que cantara no Zip Zip e que foi capa do primeiro número da revista Mundo da Canção em Dezembro de 1969. Luís Cília que não se ouvia por cá, uma vez que estava em França, fugido à tropa e editara Contra a ideia de violência a violência da ideia, na Chant du Monde. Fausto que nessa altura, em 1970,  já tinha um LP esquecido e um single fabuloso: Ó pastor que choras ( na imagem abaixo).
Faltam ainda os que não eram revolucionários ( mas se tornaram logo a seguir ao 25 de Abril de 74): Paulo de Carvalho, Fernando Tordo e mais um punhado deles, poucos.
E faltam alguns não alinhados, como José Almada, cujo primeiro Lp de 1970 é uma beleza natural; Luís Rego, emigrado em França, também fugido á tropa, com um single também fantástico, Amor Novo, talvez a melhor cantiga dessa época, de uma beleza temática e melódica, rara.

E em nota apócrifa ( de 6 de Março) acrescenta-se ainda este ep de Manuel Freire, lançado em 1968 e passado insistentemente pelo programa de rádio PBX ( os mesmos do Zip Zip que surgiria depois e ainda João Paulo Guerra, uma figura fulcral como divulgador destas figuras e géneros musicais percursores do 25 de Abril que trabalhou como jornalista na Mosca do Diário de Lisboa e que agora se ocupa na Antena Um a fazer recensões de notícias de jornal, todos os dias da semana, logo pela manhãzinha e com as escolas "certas" e subtilmente ideologizadas) . O tema "Livre" cuja letra toda a gente com mais de 50 anos conhece ( "Não há machado que corte, a raiz ao pensamento...) era um êxito e um clássico destas cantigas de protesto a fazer de conta que eram...isso mesmo. Esta é de facto, das primeiras e dos primeiros sinais acerca da mudança esquerdista que se preparava e anunciava o advento do 25 de Abril de 1974, a meia dúzia de anos de distância.




E as músicas "lá de fora"? Ficam para amanhã... 

O título do postal parece que se assemelhará a um título que Joaquim Veira prepara para lançar sobre as cantigas que eram uma arma. Ouvi no outro dia na tv, mas já tinha esta filada há muito. Por isso não é plágio: é coincidência.

Estas cantigas que eram armas foram mais importantes do que parece, para o que viria a seguir, logo nos primeiros meses de 1974 e contribuiram muito para o predomínio da esquerda intelectual e comunista no panorama cultural português. 
Se somos como somos, também o somos por causa destas cantiguinhas. Veremos a seguir como foi.

5 comentários:

Floribundus disse...

gostava da música de José Afonso e Sérgio Godinho.

os outros eram insuportáveis

dos compositores gostava do eng de máquinas Nuno Nazaré Fernandes com quem nos anos 90 jantavam quinzenalmente com mais 2 amigos enquanto vivi no estoril.
pessoa encantadora

aguerreiro disse...

Tenho saudades de ouvir a canção "bacalhau tenrinho bacalhau tenreiro". Durou pouco tempo esta melodia e embora a procure por todo o lado nunca a encontrei mas alguém a terá. Era bom que se permitisse a sua audição.

aguerreiro disse...

Tenho saudades de ouvir a canção "bacalhau tenrinho bacalhau tenreiro". Durou pouco tempo esta melodia e embora a procure por todo o lado nunca a encontrei mas alguém a terá. Era bom que se permitisse a sua audição.

Floribundus disse...

o Prof Gedeão tinha um livro de exercícios de quimica que se usava no meu tempo do liceu.

uma filha casou com um Irmão e um grupo passou a tarde na casa de fins de semana em 'reunião' de 'família'

o pc e a esquerda festiva que destroem o rectângulo prepararam muito bem, com pempo e colaboração de pides a sua entrada em cena

a pide sempre neutralizou as forças sociais-democrátas

tantas vezes foram estes os únicos 'arrecadados'

um Irmão tinha sempre a mala aviada atrás da porta

quando presos os Irmãos coronel Repas, fundador do MIRN, dava ginática ao pessoal e Dr António Abrantes Mendes, pai do Sérgio, que fora jogador e treinador do Sporting ponha todos a jogar com bola feita de meias.

no aspecto de visão ploitica futura o EN era uma MERDA

Floribundus disse...

estado sentido

Parece pairar em Portugal uma certa noção de que os criadores artísticos devem ser poupadas porque é tudo tão subjectivo, é tudo tão volátil e relativo - é arte. Como se fossem intocáveis. Passemos então de Tordos a Represas, de Instituto Camões a Planos Nacionais de Leitura, de fundações disto e aquilo, de grémios a teatros, de criadores a marionetas, e, em nome da transparência, que afinal uma Democracia exige, façamos as contas dos dinheiros gastos e tiremos as devidas ilações. Não vejo razão para que o sector das artes e letras beneficie de um estatuto de imunidade ou impunidade. Já se sente no ar algum desconforto dos principais agentes culturais deste país. Começam a ripostar, a se tornar hostis à luz de um conceito de averiguação que lentamente começa a emergir e a implicá-los.

O Público activista e relapso