O seu despacho foi dado em sede de quê? Inquérito-crime? É expediente administrativo? Estes esclarecimentos são essenciais para que se perceba que a solução aplicada ao primeiro-ministro não é de mera secretaria, o que, como se sabe, comporta um elevado ónus em processo penal. É que se o expediente é administrativo o despacho corre o risco de ser inexistente. Não tem força legal. Aplica-se a quem? Vincula quem? Quais são os efeitos?
Se é um mero documento administrativo qualquer cidadão pode reclamar uma cópia. Se foi dado em inquérito-crime, que é a sede natural, então qualquer pessoa que se constitua assistente no processo tem condições de reagir a este despacho, recorrendo para as secções criminais do Supremo. Por fim: o procurador-geral está solidário com magistrados e polícias de Aveiro, mas pede ao STJ para averiguar a legalidade das escutas. Para quê? Será para abrir a porta a processos disciplinares?
Ao contrário do que o bastonário Marinho e Pinto dizia aqui há dias, o PGR não tem pouco poder. Tem, de facto, até muito. Basta ver o que aconteceu com a certidão que lhe foi remetida pelos escalões mais abaixo da hierarquia do MP, para entender que o PGR Pinto Monteiro, não atendeu às razões de facto e de direito enunciadas nos despachos dos magistrados que as subscreveram e decidiu arquivar o expediente, sem mais. Nem sequer autuou ou mandou autuar como inquérito, ( o que é assunto a discutir em público porque é isso que já acontece) e arquivou liminarmente, julgando definitivamente, no uso do poder que a lei lhe confere.
Qual lei? O Código de Processo penal, precisamente. E onde aplicou as regras do Código de Processo Penal? Num inquérito ou num expediente administrativo?
É aqui que reside o nó górdio desta vexata quaestio, na possibilidade juridico-processual de o PGR despachar num expediente avulso, algo que só poderia fazer num Inquérito e com as regras inerentes. É evidente que só podem aplicar-se regras de processo penal em inquérito formalmente organizado e se isso não acontecer, algo pode sofrer limitações que o direito e principalmente o senso comum, não deveriam admitir, perante as circunstâncias conhecidas.
Como refere o mesmo jornal, Correio da Manhã, uma das regras é permitir o que em Portugal é uma novidade em relação a outras legislações europeias: a intervenção de assistente.
A lei processual pena, no artº 68º consagra a possibilidade de qualquer pessoa poder constituir -se assistente no processo penal, em determinado tipo de crimes, como por exemplo o de tráfico de influências. Mas só pode haver intervenção se houver processo, como é óbvio. Mas só podem aplicar-se as regras de processo se este existir, como parece também ser óbvio.
Logo, o processo terá que existir, porque se assim não for, algo de grave fica prejudicado e é a credibilidade do próprio sistema jurídico-penal que o poderá estar.
Na lei que estabelece a responsabilidade de titular de cargo político, a Lei 34/87, de 16.7, fixam-se especialidades em relação à lei geral ( sabendo nós que a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior, a não ser que o faça explicitamente, como princípio de direito...) e uma delas é a de o primeiro-ministro por crimes dessa responsabilidade responder perante o plenário do tribunal da Relação de Lisboa, com recurso para o STJ ( artº 35º nº 3 da citada lei) . E ainda outra: a de que "Nos crimes a que se refere a presente lei têm legitimidade para promover o processo penal o Ministério Público, sem prejuízo do especialmente disposto nas disposições do presente capítulo, e, em subordinação a ele:
a) O cidadão ou a entidade directamente ofendidos pelo acto considerado delituoso;(...)"
Ora, sabendo-se já que um dos factos indiciários apontados nas certidões remetidas por Aveiro, será a interferência do PM, directamente, na composição de órgãos de informação, com intervenção indirecta do Estado por sua influência junto de responsáveis pela banca ( CGD e BCP), como o afirma hoje o director do Sol, ao mesmo jornal Correio da Manhã, ( "Na altura quem tinha o dossier do "Sol", era o Armando Vara e nós tínhamos a noção de que ele estava em contacto com o primeiro-ministro. Portanto eram ordens directas.", deverá entender-se que é legal e processualmente possível, a intervenção dessas pessoas como assistentes ou mesmo como denunciantes ( estando ainda a tempo de o fazerem), relativamente a esses factos.
Perante este panorama jurídico, como é possível sustentar que as certidões valem um quase nada jurídico que o PGR lhe atribuiu ao mesmo tempo que as remeteu ao presidente do STJ ? Aliás, ao abrigo de que lei? A de processo penal? Mas como, se não é de um inquérito o que se trata?
Estas questões enunciadas de modo implícito no editorial de Eduardo Dâmaso, precisam de esclarecimento público.
Hoje, no mesmo jornal, a professora Fernanda Palma, fatalmente escreve a defender a tese mais favorável ao suspeito, primeiro-ministro de um governo em que o seu marido é ministro, já por duas vezes e uma delas, encarregado precisamente destas mudanças extraordinárias na lei geral e abstracta do CPP: a de que as escutas ao PM têm sempre de ser autorizadas pelo presidente do STJ. "Abrange os casos em que as referidas entidades são só parceiros de conversa." Assim tal e qual.
E para evitar o absurdo evidente, incorre num vício de raciocínio: em caso de escuta fortuita, com conhecimento de um crime, a escuta é inválida, ainda assim, porque...não foi validada pelo presidente do STJ. "Os conhecimentos fortuitos só podem ser utilizados se a escuta for legal. o crime a investigar a admitir e for indispensável para a prova. " Portanto, a escuta fortuita ao PM só é válida se for autorizada pelo presidente do STJ, mas isso implica que se entenda o fortuito como fenómeno irreparável. Não sendo previsível pela sua natureza, devia sê-lo sempre para validar uma escuta fortuita. É isto que Fernanda Palma defende, sem espinhas argumentativas ou obstáculos de monta intelectual. O absurdo.
E depois de escrever isto com o maior dos à-vontades de quem despacha uma dúvida que Costa Andrade não tem e nunca terá, por a aplicação daquela regra conduzir ao absurdo de não ser possível meio de prova contra o escutado se o mesmo confessar a prática de um crime horrível, ainda tem o topete intelectual de escrever que "nada disto constitui uma ponte para a impunidade, porque é sempre possível desencadear uma investigação contra quem é suspeito".
Claro que é. Como é sempre possível a um suspeito calar-se e nada dizer. E a escuta de nada valer, nesse caso...mesmo que seja a indicação probatória de um crime grave e de sangue.
A professora Fernanda Palma é uma penalista da faculdade de Direito de Lisboa. Será que ensina estas coisas aos seus alunos ou só as escreve aqui, à moda de um Vital Moreira em que o que diz não se escreve?
E para tanto rigor processual e legal, num formalismo à outrance, é preciso perguntar a Fernanda Palma e já agora, a Germano Marques da Silva, um dos autores da revisão penal de 1998, como é que analisam a intervenção processual do PGR e do presidente do STJ, assinalando e aplicando regras de processo penal num processo administrativo?
Isso é que gostaríamos todos de ler...
PS. Segundo a mesma notícia do CM, foi instaurado um processo de inquérito no STJ, por indícios de crime relativo a um conhecimento também fortuito obtido na escuta a um dos arguidos no processo. O facto diz respeito ao conhecimento antecipado de um acórdão a proferir dias depois por um juiz da Relação. Ora este facto envolvendo um juiz da Relação só pode ser investigado pela secção criminal do STJ. E os actos jurisdicionais com ele relacionados só podem ser praticados pelos juizes do STJ, como juizes de instrução. Logo, escutas telefónicas e autorizações para a mesma.
Logo, o problema, aqui será idêntico e se a solução de Fernanda Palma for a aplicada, de nada vale essa certidão e inquérito respectivos. O que não se compreende é a disparidade de critérios.
Provavelmente se perguntassem a Fernanda Palma o que pensa deste caso e não existisse o outro, seria interessante ouvir a resposta.
7 comentários:
Depois do artigo de Costa Andrade, e mesmo não sendo especialista na área do direito penal e processual penal, fiquei sem grandes dúvidas sobre a norma em causa. É uma questão de pura interpretação jurídica. E como já tem sido dito pelo José e por outros, a interpretação de Fernanda Palma não faz sentido.
Sobram-me algumas curiosidades.
Como é que MMG, por exemplo, querendo constituir-se como assistente, poderia requerer a abertura de instrução se não pode conhecer as escutas, objecto das certidões? Como é que, nesse caso, fundamentaria o requerimento de abertura de instrução? E, na hipótese de não ter havido inquérito, se MMG entendesse denunciar o crime, quem seria competente para instaurar o inquérito? O PGR que já fez "caso julgado" sobre a matéria (presumindo que MMG não tem novos elementos probatórios)? E no caso de JAS, do Sol, não se trataria da denúncia de um crime novo, atendendo a que não se sabe se nas escutas havia elementos sobre as questões que o director daquele jornal levanta na entrevista de hoje do CM?
Enfim, não me parece que o caso tenha pernas para andar.
Fica apenas suspensa a questão de saber se as escutas serão utilizadas, ainda que parcialmente, no processo de Aveiro ou se algum jornal as publica. Aí sim, o caso voltará a ensombrar o regime.
MMG pode requerer a constituição como assistente, com base no conhecimento dos factos: atentado contra o Estado de Direito, fundado nas escutas fortuitas mas já veiculadas pelos media em que a TVI e o jornal de Sexta são visados directamente. Logo, a mesma tem interesse legítimo no caso e pode por isso constituir-se assistente, até por essa via.
Se não puder o PGR terá de dizer porquê e o despacho ser conhecido.
Quanto à denúncia que ainda pode apresentar, deverá ser dirigida à secção criminal do STJ onde existe o MP que regista a entrada de inquéritos.
É o meu parecer, com o acrescente de quem tem pernas para andar.
Ok, José, obrigado pelo esclarecimento.
Mas em todo o caso, parece que MMG nunca terá acesso às escutas. No caso de ter havido inquérito, já passaram os prazos de recurso relativamente à decisão do Presidente do STJ. No caso de não ter havido inquérito, os despachos do PGR e do Presidente do STJ serão inexistentes, mas em todo o caso, o seu teor seria repetido em futuras decisões se assim se tornasse necessário.
Donde, sem as escutas, não estou muito bem a ver que prova é que subsistiria. A ERC ao decidir sobre o assunto, só considerou que houve interferência da PRISA, não do governo. Muito bem, partindo do princípio que se provava facilmente a ilegalidade da decisão da PRISA, como é que se provava o envolvimento de Sócrates na decisão da empresa espanhola? Sem escutas, não estou a ver...
Por isso é que deveria ter sido aberto inquérito com as escutas a serem meio de prova.
E se não foi, há um problema que o PGR vai ter muita mas mesmo muita dificuldade em explicar.
Aliás, já se nota essa dificuldade.
E se não foi, há um problema que o PGR vai ter muita mas mesmo muita dificuldade em explicar.
Aliás, já se nota essa dificuldade. - José
Nesse sentido que refere, é muito interessante esta notícia do CM:
http://www.correiomanha.pt/noticia.aspx?contentid=97388C90-2685-472E-B939-7C6C5EB13EDE&channelid=00000009-0000-0000-0000-000000000009
Afinal, isto ainda pode dar pano para mangas se houver alguém que queira fazer avançar a investigação.
Chame-se-lhe dossier, documentação, whatever, essa papelada tem de constituir o corpo de uma investigação de natureza criminal que dá pelo nome de inquérito e na qual devem ser levadas a cabo as diligências necessárias a apurar a existência de um crime, a determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (262.º-1 CPP).
No âmbito da promoção processual, o princípio da legalidade determina que a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura
de inquérito (262.º-2 CPP).
Se um magistrado do MP vislumbra em certo elemento probatório indícios da prática de um crime, tem que ser aberto inquérito criminal. O resto é conversa.
E isso implica que se esgravate o suficiente para perceber, de forma cabal, se há ou não crime; e, se o houver, quem o praticou. Doa a quem doer; incomode a quem incomodar. Se isso não for feito, o dito inquérito sofre de nulidade insanável por falta de promoção do processo.
Claro que não se esperava que o primeiro guardião do princípio da legalidade, o PGR, pudesse ser o primeiro a atirá-lo borda fora à primeira ocasião. Mas se o PM não está imune à lei penal, o PGR também não está. E parece que há um crime chamado de denegação de justiça, no qual incorre quem, conscientemente e contra direito, decide não promover um processo criminal.
O crime de denegação de justiça é público e o MP tem obrigação de instaurar inquérito.
Assim, quem o irá fazer? O DCIAP?
Quem, afinal?
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