quinta-feira, março 13, 2014

O Tarrafal era um gulag?

Logo nas semanas a seguir à Revolução de 25 de Abril de 1974 os jornais e revistas da época mostravam o que nunca fora mostrado no tempo do Estado Novo e Estado Social, mas cuja existência era por demais conhecida.

Em 1 de Junho de 1974 a revista Século Ilustrado mostrava o que de mais horroroso havia no sistema repressivo do anterior regime. No caso, o campo de Tarrafal, entendido como um "campo de concentração" à semelhança dos nazis.

Para dar mais colorido à mostra, apresentava uma entrevista com Francisco Miguel, um dos antifassistas mais perseguidos de sempre e que passara meia dúzia de anos no Tarrafal e mais três numa segunda vez, pelos mesmos factos e motivos: actividades subversivas ligadas ao Partido Comunista.


Como conta Francisco Miguel, em 1935 conseguiu ir clandestinamente para a União Soviética para lá "frequentar um curso de preparação política".

Que preparação política seria essa? Em 1935, antes da II Guerra , decorria em Moscovo, onde Francisco Miguel se encontrava na tal preparação, a célebre "purga dos intelectuais" conduzida por Estaline, nos famigerados "processos de Moscovo". Francisco Miguel, em 1974 já não tinha memória de tal coisa. Porém, todos os companheiros de Lenine, todos os rivais de Estaline, foram...eliminados, Mortos. Francisco Miguel nunca soube de nada, mas estava lá, na tal "preparação política."
Também não terá ouvido falar nas "torrentes" de deportados para uns campos de trabalho, simpáticos, na Sibéria, chamados Gulags. No entanto,  tais factos ocorriam na mesma altura e desde há dez anos antes de Francisco Miguel lá chegar. Na realidade, o Gulag soviético existia ao mesmo tempo que o Tarrafal nacional, mas Francisco Miguel só se lembrava do Tarrafal, porque lá estivera, naturalmente. Por cá, víamos, ouvíamos e líamos e...não poderíamos ignorar, como cantavam  os comunistas de 74.  Mas só " a verdade a que tínhamos direito", claro está. A outra, inconveniente, não existia e ficava o problema resolvido.

Alguém se atreverá sequer a comparar o "horror" vivido pelos prisioneiros em ambos os campos? A comparar as condições de vida, de trabalho, etc etc? Não,  porque os comunistas não comparam. Negam os gulags, simplesmente, apesar de Krutschev.

Em 1974, precisamente na mesma altura em que aquele Francisco Miguel, muito desmemoriado ou ignorante, falava sobre o Tarrafal português, um russo, Soljenitsine, falava em Paris sobre os campos que Francisco Miguel nunca viu ou soube da existência, mas que existiam, ó se existiam!

Na verdade, Soljenitsine tinha lá passado mais tempo do que Francisco Miguel passara no Tarrafal nacional e conseguira escrever um livro com centenas de páginas, que primeiro memorizara e depois,  foi escrevendo até 1968. Em 1970 ganhou até o Nóbél, por causa da escrita. Por causa de um memorial... mas dos Gulags.

Dez anos depois de Francisco Miguel ter estado na União Soviética a aprender política e os métodos do estalinismo, porque foi nesse tempo que lá esteve, Soljenitsine foi preso, durante mais ou menos o mesmo tempo que aquele, mas no Gulag. Crime? O mesmo ou quase de Francisco Miguel: escrever coisas que não agradavam a Estaline. Só isso. Mas não por ser subversivo, uma vez que o corpo de delito foi a escrita de cartas privadas a um amigo. Oito anos de campo.  Que diria Francisco Miguel, o perseguido por Salazar, em face disto? Como compararia?

Portanto, em 1974, Francisco Miguel teve ocasião de saber o que se passava pelo testemunho presencial dos gulags que aquele então apresentou publicamente, em livro, tão importante quanto o do próprio FM sobre o Tarrafal. O escândalo internacional provocado com a publicação do Arquipélago Gulag foi tanto que Francisco Miguel deve ter ouvido falar, mas...moita carrasco.  Ligou alguma coisa? Tirou ilações? Não, nada. Aliás, sobre os crimes de Estaline, já nos anos cinquenta um camarada secretário-geral da URSS se tinha pronunciado e nos anos sessenta tinha autorizado aquele Soljenitsine a publicar um livro que foi o que lhe mereceu o Nóbél: Um dia na vida de Ivan Denisovitch. O que pensava Francisco Miguel ( ou Cunhal, ou Domingos Abrantes, para o caso tanto faz...) de Soljenitsine, em 1974? Nada, porque não se falava no assunto em Portugal. E em 1975 muito menos. Tabu que os Letrias e Saramagos, Ruellas, e tutti quanti mantinham, sempre. Até hoje.

Mas em França falava e muito. Até se publicou aí, nessa altura,  o seu livro de denúncia dos campos do Gulag, O Arquipélago Gulag. Como é que os comunistas de então lidaram com esse acontecimento? Mal. Negaram os factos, desvalorizaram o autor e expulsaram-no da União Soviética. Foi esse o escândalo que por cá se ouviu pouco antes de 25 de Abril de 1974 e que foi depois silenciado, até agora em que passam 40 anos e continua a não haver memória dessa coisa. Mas do Tarrafal há e até há antifassistas que falam disso na Antena Um, convidados pela intelligentsia actual como heróis perseguidos pela PIDE.

Para que estas afirmações não soem a fantasias ficam aqui as provas:

Primeiro a revista L´Express que então se vendia em Portugal ( ao contrário da URSS onde era expressamente proibida para não contaminar com ideias burguesas e capitalistas, degeneradas, a fantástica vida na URSS) e que então, em Janeiro de 1974 publicou passagens do livro, pela primeira vez. 



A simples leitura destas três páginas é suficiente para se poder estabelecer um paralelo entre uma prisão pela PIDE e pelo KGB ( na altura com outro nome, mas não interessa porque para os comunistas também é sempre PIDE). Em 1974, antes de 25 de Abril já se sabia que era assim. Só não sabia quem não queria saber.

Na altura da Revolução do MFA o primeiro tomo do livro saiu em Paris. Não tenho nenhum documento dessa época em jornais e revistas portuguesas que tenham mencionado o facto. Ou seja, nas redacções da imprensa de então isso foi um "não acontecimento", tal como o regime anterior fazia de certos acontecimentos ( e o de agora continua a fazer).
Ninguém quis saber de Soljenitsine e do que ele denunciara sobre os campos de concentração e trabalho, os Gulags. Ninguém e muito menos os comunistas. Aquele Francisco José estava mais interessado em denunciar o Tarrafal que era uma espécie de campo de férias comparado com aqueles que os camaradas do partido da URSS tinham lá. E esta comparação que tinha que ser feita, não se fez. Aliás nunca se fez, mesmo agora, motivos pelos quais o PCP continua a mandar os bitaites democráticos e se apresenta como da mais pura democraticidade existente à face da terra. Sem qualquer réstea de pudor.
Será ocioso imaginar o que os comunistas portugueses preparavam para cá, para os "fascistas" se tivessem alcançado o poder total em 1975 ? Não, não é porque é demasiado evidente e indesmentível: seria o que sucedeu em todos, mas mesmo em todos os países comunistas. O regime de Salazar faria saudades então, mesmo aos comunistas.

Em 1975, Soljenitsine já tinha sido expulso da URSS, sua terra e voltou a França, onde participou numa célebre emissão dum programa de Bernard Pivot, Apostrophes, em Abril de 1975, depois de ser publicado o segundo tomo da obra.

Em Portugal, nessa época, Soljenitsine era nome esquecido e maldito. Porém, no programa, um dos intervenientes, Jean Daniel, director da revista Le Nouvel Observateur fazia o ponto da nossa situação politica, assim e a propósito da entrevista à quele Soljenitsine:

"Or, Jean Daniel est soucieux : il a appris que Soljenitsyne, à une conférence de presse quarante huit heures auparavant, à laquelle il n’avait pu assister, avait critiqué les accords de Paris et accusé les occidentaux de ne pas défendre la liberté au Vietnam comme au Portugal.
Ces deux pays sont les théâtres d’affrontement de la guerre froide, au moment où l’écrivain est interrogé. La révolution des œillets, accomplie en avril 1974 (juste un an avant l’émission) par le Mouvement des Forces Armées (MFA), renverse le régime du dictateur Salazar le 25. Un gouvernement de coalition est formé, principalement constitué de communistes, socialistes et sociaux-démocrates. Mais l’extrême-gauche et les modérés ne tardent pas à s’opposer : l’antagonisme se développe entre les socialistes (menés par Mario Soares) et les communistes (Cuntal). Le MFA, son conseil de défense et son exécutif militaire s’efforcent de leur côté d’imposer leur prééminence (la présidence est assurée par des militaires plutôt favorables aux communistes). Le 25 avril 1975 (soit quatorze jours après " Apostrophes "), les élections pour l’assemblée constituante doivent avoir lieu. Cependant, le MFA obtient des partis l’engagement que le résultat des élections n’aura aucun effet sur le gouvernement du pays, les députés étant confinés dans leur rôle constitutionnel. Le PC, maître de la rue, et seule force politique sérieusement organisée, contrôle les syndicats ouvriers et la plupart des moyens d’information. Favorisés par le colonel Gonçalves, le président du conseil, les communistes semblent proches de la victoire."

Em Portugal, em Abril de 1975 nós tínhamos mais que fazer: tínhamos um PREC em andamento e um Soljenitsine era um atraso de vida...