Obs- Pedro Feytor Pinto, diretor de Informação de Marcello
Caetano, disse-me que o seu pai, se fosse um animal, seria uma águia. E depois
fez a afirmação que deu título à entrevista: «Marcello era muito mais às
direitas do que Salazar». Quer comentar?
Miguel Caetano- Podia ser tanta coisa, podia ser uma águia, podia ser um
leão… Dizer que era mais à direita que Salazar, era preciso conhecer o
pensamento de Salazar. Agora, Salazar era muito mais conservador que o meu pai
e isso viu-se quando o meu pai foi ministro da Presidência, era muito mais
viajado, conhecia a Europa, África, quando falava das coisas não falava de cor.
Era um homem preparado, professor de Direito muito considerado em Portugal e no
estrangeiro, e isso dava-lhe outra visão, tinha outra abertura ao mundo. Mas tinha,
ou talvez por isso, por ser professor, um espírito pedagógico permanente e isso
criou nele uma tendência de ver quase todos como alunos, não aceitava bem que
lhe dissessem o que fazer. Era um homem de convicções, mas procurava
compreender as transformações que se iam passando no mundo. O facto de
compreender não queria dizer que concordasse.
(…)
Obs- Falavam de política em casa?
Miguel Caetano- Em política, nesse sentido, não. O meu pai não trazia para
casa questões políticas, mas dizia o que pensava sobre as coisas. Ouvíamo-lo
falar com várias pessoas e sabíamos a opinião que tinha. Mas não havia
doutrinação política lá em casa. Havia valores, isso sim. A sua profunda
formação cristã levava-o a falar-nos do corporativismo como uma doutrina
assente nas Encíclicas e na tradição portuguesa das corporações medievais.
Durante a guerra, a de 39-45, que acabou quando eu fiz dez anos, sempre o ouvi
defender os nossos aliados históricos, os ingleses.
(…)
Obs- Quando é que percebeu que defendia ideias diferentes das do
seu pai?
Miguel Caetano- Não havia propriamente um confronto de ideias, e houve
vários períodos da minha actividade que coincidiram com o tempo em que o meu pai
não estava na política e em 68 até houve uma aproximação. Mas eu era parte de
uma geração que entendeu sempre que era possível fazer melhor. Não escolhemos
fazer uma revolução, mas apostámos que a transformação de Portugal passava por
agarrar todas as oportunidades de fazer coisas novas, de encontrar novos
caminhos, que nos conduzissem a ser um país mais moderno, através de mais
criação de riqueza e da sua melhor distribuição.
Obs- Quando começa a afastar-se?
Miguel Caetano- A partir da eleição do presidente da República, em 1972. Na
primeira fase ele está interessadíssimo em saber o que o meu grupo quer,
falamos muito sobre o assunto.
Obs- E o que queria o seu grupo?
Miguel Caetano- Houve uma transformação de movimentos ligados à igreja, com
percursos diferentes. O meu grupo convenceu-se que era possível e desejável
transformar a sociedade portuguesa pelo desenvolvimento económico, pelos
movimentos cívicos, pelas cooperativas e envolvemo-nos nisso. Evidente que na
minha idade eu achava que se não fosse por esse caminho, não havia caminho.
Agora, quem é que teve razão? Lá que não houve caminho, não houve, mas também
não sabemos se pela dinâmica que propúnhamos íamos lá. O problema foi a
descolonização, tudo o resto teria sido resolvido, mas sem a guerra colonial.
Nós também não tínhamos solução para a guerra colonial. E aí dá-se um impasse:
o meu pai achava que tinha de fechar a torneira, nós achávamos que fechando a
torneira não se ia a lado nenhum.
(…)
Obs-Como era a sua relação com o Partido Comunista?
Miguel Caetano- Sempre colaborei com gente que sabia estar ligada ao Partido
Comunista, ou a outros partidos de inspiração marxista, desde que os objectivos
fossem comuns. Mas não tinha dúvidas sobre a concepção totalitária do Estado que
perfilhavam. E ainda hoje me espanto quando vejo, num Estado que perfilha o
modelo das democracias ocidentais, atribuir a Ordem da Liberdade a todos
aqueles que lutaram contra a ditadura do Estado Novo para a substituir por outro
modelo de ditadura. No entanto, sempre defendi que se devia caminhar para uma
democracia onde partidos comunistas tivessem o seu lugar, deixassem a
clandestinidade.
Obs- O 25 de Abril foi agridoce?
Miguel Caetano- O 25 de Abril foi um momento extremamente difícil e ambíguo.
A esperança de que fosse o início da construção duma sociedade mais justa, mais
livre, que não se podia transformar em alegria por significar simultaneamente a
derrota, a prisão e o exílio do meu Pai. Permitiu acabar com a guerra, com a
censura e com a polícia política. Descolonização exemplar não houve, nem sei se
podia haver, mas não conseguimos proteger minimamente os interesses dos
cidadãos portugueses. Penso que nos anos cinquenta, quando o meu pai foi
ministro da Presidência, deixou bem claras as suas opções quanto ao
desenvolvimento económico, a industrialização do país, a abertura à Europa.
Creio que se tivesse tido oportunidade teria tentado pôr em prática as soluções
que defendeu mais em privado para o nosso problema colonial: autonomia progressiva,
integração dos quadros locais de todas as raças e etnias no governo e na
administração, negociação ainda em contexto de paz.
(…)
Obs- Em que estado encontrou as empresas públicas?
Miguel Caetano- No final dos anos setenta, fui convidado para assessor do
secretário de Estado do Planeamento e uma das minhas missões era assegurar a
articulação do Instituto das Participações do Estado com a orgânica de
planeamento. Não tive contacto directo com as empresas que constituíam o
universo do IPE, mas o objectivo era pôr a casa em ordem. Entre 1980 e 1988,
envolvi-me em duas empresas com resultados bem diferentes nas negociações
financeiras. Encontrei um mundo de empresas descapitalizadas, dependentes da
banca nacionalizada, numa altura em que as taxas de inflação se situavam entre
os 20% e os 30% e os bancos cobravam juros na ordem dos 25% a 35%. Se
reorganizar uma empresa, fixar objectivos, definir funções e métodos de
trabalho, estava dentro das minhas competências, na gestão financeira eu era
inexperiente. Num dos casos, encontrei esquemas de empréstimos concedidos em
que o gestor do banco recebia uma comissão e vi o interesse desse mesmo gestor
bancário na realização de negócios que eram prejudiciais à empresa em questão.
Tentei, sem sucesso, apresentar a situação à administração do banco, que
recusou tomar conhecimento. No outro caso, pelo contrário, encontrei gestores
competentes e sérios, empenhados em colaborar na procura e concretização de
soluções que fossem do interesse de ambas as partes.
Obs-Parece que não mudou muita coisa na banca…
Miguel Caetano- É evidente que toda a banca foi sempre permeável a esse tipo
de situações. Simplesmente, havia umas mais estruturadas do que outras. E a
seguir ao 25 de Abril era uma prática quase generalizada, digamos que as
hierarquias estavam mal escolhidas, era fácil fazer, não havia controlo. Hoje é
outro género, naquela altura houve algo parecido com a democratização da
corrupção. De repente, parece que se descobriu que todos tinham direito a isso.
Encontrei um ambiente incontrolado. Quando tentei resolver, percebi que estava
tudo cheio de pequenos interesses.
(…)
Obs- Acredita que a sua geração de políticos era diferente da que
está hoje no poder?
Miguel Caetano- Na geração anterior à nossa, no caso do meu pai, por
exemplo, o que se passou foi que se criou uma escola de discípulos. E ele
sentia isso, que os tinha formado. Na transição, do fim do Estado Novo à
consolidação do regime democrático, que é quando a minha geração vai para a
política, não havia políticos de carreira. Havia independentes e chefes de
grupo que tinham uma atitude integradora. E, mesmo com opiniões diferentes,
havia uma enorme amizade. O nosso relacionamento de grupo era tão forte que a
maior parte ainda hoje mantém relações de amizade. Os políticos de então, na
maioria, continuaram a contribuir sem se entregar ao jogo do poder.
(…)
Obs-Como se define hoje, politicamente?
Miguel Caetano- Sou socialista cristão. Defendo o socialismo em liberdade,
são os valores que escolhi e que mantive. O que não quer dizer que me reveja
neste PS, que não revejo. O meu ponto de partida foi uma educação tradicional,
de matriz católica, mais ou menos conservadora, mas aconteceu em 1958 a eleição
de um novo Papa, João XXIII, e o início de um novo ciclo de vivência dos
valores cristãos.
Obs- Os seus filhos, votam? Falam sobre política?
Miguel Caetano- Votam, em geral mais à direita do que o Pai [risos]. E
conversamos, mas gosto pouco de discutir política. Aceito argumentos, mas cada
um tem os seus.
Obs-A ideia que tinha de que o país podia ser melhor e o que vê
hoje, que sentimento lhe deixa?
Miguel Caetano- Frustração.
15 comentários:
"E ainda hoje me espanto quando vejo, num Estado que perfilha o modelo das democracias ocidentais, atribuir a Ordem da Liberdade a todos aqueles que lutaram contra a ditadura do Estado Novo para a substituir por outro modelo de ditadura."
Lapidar.
gostei do tratamento dado ao social-fascismo
e do sentimento de frustração
por mim nunca tive ilusões sobre uma 'democracia' de esquerda
os contribuintes privados estarão em breve
na fila para
'a sopa dos pobres'
Excelente entrevista dada por Miguel Caetano e oportuna transcrição de pedaços da mesma. Pena não ser toda. Parabéns José.
A entrevista pode ser toda lida no sítio do Observador que "linkei". É muito extensa.
O link é do Sapo, José.
Obrigada José e Zazie, vou ler.
Miguel Caetano- Sou socialista cristão.........
Miguel Caetano- Frustração.............
Estas 2uas foram o suficiente pra mim!
Era. Sabia mais e havia de endireitar o mundo melhor que o pai. Frustrou-se.
Cumpts.
A «democratização» da corrupcinha dos pequenos interesses vicejou na corrupçona dos magnos interesseiros. Maturou em tão grossas vergônteas que a árvore das patacas não aguentou e apodreceu. Democràticamente. Socialista cristãmente até...
Miguel Caetano não honrou o pai, ideologicamente. É pena, mas foi assim.
Miguel Caetano andou sempre mal acompanhado do ponto de vista politico.
Socialista cristão? O que é isso???
Se continuassem com entrevistas de descendência seguinte, então é que ia haver surpresa da grossa...
É curioso como dessa geração há tantos assim que saem, politicamente, o oposto aos pais.
E curioso é também como depois se acaba por saber que os pais até davam bastante liberdade...
Em casa de ferreiro...
josé disse...
"Miguel Caetano não honrou o pai, ideologicamente. É pena, mas foi assim."
Completamente d'acordo. E de facto foi pena.
José Luís disse...
"Miguel Caetano andou sempre mal acompanhado do ponto de vista politico.
Socialista cristão? O que é isso???"
O José Luís pergunta com razão o que é ser-se socialista e cristão. Eu, quando li essa expressão de M.C., perguntei-me exactamente o mesmo. Não há qualquer lógica naquela asserção. Política e ideològicamente M.C. não saiu nadinha ao Pai.
O César das Neves fala disso numa entrevista recente
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