Um jornalista que insulta outro jornalista deve ser escrutinado acerca dos motivos por que o faz. Desconfio que neste caso será assunto nebuloso.
A croniqueta, de Ferreira Fernandes, vinda de uma loca infecta:
O Eu e os Políticos, o novo livro de José António Saraiva (JAS), é um capítulo da obra mais vasta Eu e o Mundo que o homem anda a escrever há décadas. Por falar em políticos, Jérôme Cahuzac, ex-ministro francês, está a ser julgado por trapaças com o fisco. Há dias, no tribunal, pediram-lhe explicações por um depósito na Suíça, há 25 anos, e que ele ainda mantém. "Ah, era para apoiar o Michel Rocard", desculpou-se. Rocard é um político francês que morreu há dois meses... Nada como os mortos para depositarmos culpas. Canalhices de políticos lembradas, passemos então, sem sair do género, ao magnífico "Eu...", o JAS e as coisas picantes que ele sabe sobre os nossos políticos. Olha, o irmão que já morreu, a contar ao "Eu" a sexualidade do irmão; olha, o escritor que já morreu, a contar ao "Eu" as brejeirices dum ministro; olha, um ministro que já morreu e que, moribundo, invocou ao "Eu" a sua doença para sacar umas massas... Na capa do livro desenha-se um buraco de fechadura, erro gráfico: o JAS espreitou menos do que cavou em campas. E é pena, porque o "Eu", só, é mesmo fascinante. Falava ele com o político Arnaut, um dos responsáveis do Euro 2004 em Portugal, e disse-lhe: "Já pensou que se mandam um avião contra um estádio matam 40 mil?" Um mês depois, tungas!, havia F-16 a vigiar o espaço aéreo... "Espantosa coincidência!", ironiza no livro o nosso JAS, inventor, além do saco de plástico, dos primeiros drones antiterroristas.
Comprei o livro e pelo que li das 260 páginas soltas não encontro motivos suficientes para a desmesura do ataque.
A principal veia argumentativa, também secundada pelos papagaios amestrados que peroram nas tv´s , do género dos daniéis oliveiras e outros que tais, segue a tese do livro dos mortos que não devem ser incomodados no eterno descanso.
Porém, este não é o livro dos mortos, nem sequer dos mortos-vivos e quem falou nisso enterrou-se.
As historietas pessoais que o autor conta no livro tem pouco interesse global para nos ajudar a compreender o regime que temos, a não ser o que já sabíamos: as personagens desta comédia são cromos repetidos ao longo dos anos. Sobre o argumento dos mortos-vivos torna-se interessante a revelação de Freitas do Amaral que terá dito em 1984 ao autor que poderia ter sido ele o candidato precidencial e que só o revelou então porque só de tal sabiam três pessoas, incluindo-se a ele próprio e duas delas tinham morrido ( Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa). Se isto é fazer falar os mortos, bem vinda a mediação. Freitas do Amaral contou o caso num ambiente de almoço em 1984...
A Visão desta semana dedicou algumas páginas a criticar a atitude do autor, José António Saraiva, citando o tal argumento dos mortos-vivos que falam por interposto medium...
De resto, o episódio sobre Portas é irrelevante. Saber que será homossexual porque o irmão já morto lhe teria dito tal coisa é motivo de indignação para hipócritas que já ouviram falar há uns anos numa tal Catherine Deneuve, relatada por um tal Rui Araújo, muito celebrado pelos mesmos que agora vituperam J.A.S. o que diz tudo sobre isso.
Este livro já vai em mais de meia dúzia de edições e não vale um chavo, para além daqueles relatos pitorescos sem rumo definido e desgarrados de contexto do nosso sistema político. Ponto final.
O livro que deveria estar a concitar as atenções é outro, da autoria de Gustavo Sampaio- Porque falha Portugal?- editado pela Manuscrito. Gustavo Sampaio tinha já publicado Os Privilegiados e ainda Os Facilitadores, em 2013 e 2014, sobre a mesma temática: o retrato do nosso sistema político-económico, feito através de notícias avulsas e sua interpretação.
Gustavo Sampaio, como jornalista, faz o que os demais jornalistas não conseguem fazer: apresentar factos, interpretá-los sem grande facciosismo e revelar o sistema no seu esplendor.
É um pouco o que tento fazer aqui neste blog, só para mim e para me orientar no labirinto dos acontecimentos quotidianos.
Muitos dos temas abordados neste livro já o foram aqui. Por exemplo este que serve de mote para o
preâmbulo ao livro.
Vale a pena ler esta dúzia e meia de páginas ( para tal basta clicar com o botão direito do rato e abrir outra página. Nessa página pode ampliar-se a imagem até se tornar perfeitamente legível, melhor que se fosse o livro) e perceber o regime que temos, porque é disso que se trata, em resumo.
Nestes relatos não aparece a corrupção escarrapachada porque afinal a mesma não existe assim, como aparentemente se poderia concluir pela mistura e promiscuidade existente entre os actores de poder político, as decisões dos mesmos que afectam os portugueses em geral e a actividade pessoal e privada de muitos deles que trocam de posição ou aceitam colaborar nessas decisões, com grandes rendimentos provindos de adjudicações vultuosas, participando eventualmente nos resultados, indirectamente.
Ninguém se atreveria, ao ler isto, dizer que Paulo Rangel ou António Lobo Xavier são indivíduos corruptos porque aceitam participar nesses esquemas em que o Estado está sempre presente a entregar dinheiro aos milhões a empresas que representam ou escritórios de advogados que integram.
O problema é outro e muito mais subtil: haverá nesta promiscuidade ruína para os interesses legítimos de todos nós que somos o Estado, incluindo eles próprios? Haverá necessidade estrita de o sistema político-económico funcionar assim em Portugal de há décadas a esta parte?
As rendas que certas empresas privadas obtiveram do Estado justificam-se racionalmente?
Como aceitar que indivíduos que nada tinham de seu e de relevante, sendo relativamente miseráveis economicamente, depois de passarem por esses centros de poder obtivessem rendimentos de milhões, aparentemente sem sombra de pecado? Estou a lembrar-me particularmente de casos notórios e públicos como Dias Loureiro ou Proença de Carvalho, este, um advogado vindo do mesmo sítio daquele e que vicejou sempre à sombra deste regime.
Percebe-se que haja quem diga que em Portugal não há corrupção endémica e preocupante. De facto, em modo criminal e susceptível de ser comprovada em tribunais, pode não haver.
O que há é um sistema que em si mesmo é completamente corrupto. Isto não tem que ser assim e nem sempre foi.
No tempo de Marcello Caetano isto não era assim. Ponto e desafio quem quiser para verificar, pelo que aqui tenho escrito.
Portugal poderia ser outra coisa que não o que se pode ver agora pelo que se passou na Caixa Geral de Depósitos.
Nas notícias de hoje aparece a revelação que o DCIAP está a investigar crimes de administração danosa no banco público de há uns anos para cá, particularmente no tempo de Sócrates e Vara.
Este já veio dizer que é o primeiro a querer que tudo se esclareça e percebe-se muito bem ao ler a página do livro supra em que elenca os ex-políticos nomeados para a CGD.
Vara nem percebe o alcance do crime em causa porque sempre entendeu o sistema como funcionando do modo exposto.
Será caso de falta de consciência da ilicitude? Veremos...
Este livro de Gustavo Sampaio é que é o verdadeiro livro dos mortos-vivos, dos vampiros que nos sugam os recursos económicos e tudo fazem para manter o sistema que os mantém vivos...