Mas adiante, que a onda de indignação suscitada pela obra tem uma vantagem: revela como a hipocrisia é moeda corrente entre nós. E como é fácil fazer tiro ao alvo contra alguém que já não tem poder e ficar calado quando as coisas são muito mais graves mas pode-se incomodar colegas e amigos.
Um bom exemplo daquilo a que me refiro é o que se passa no grupo Global Media, um dos maiores do país e proprietário do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF. A “indignação” de alguns dos jornalistas-colunistas desse grupo com o livro de Saraiva foi imensa. O que dá para ficar espantado, por causa dos telhados de vidros daquela casa. Por isso desculpem-se ser desmancha prazeres, mas num fim-de-semana marcada pelo protagonismo político de José Sócrates não é possível continuar a ignorar a passadeira vermelha de que continua a beneficiar naquele grupo de comunicação. Mas vamos a factos.
Primeiro facto. Sabemos hoje, graças à Operação Marquês, que José Sócrates teve um papel determinante na transferência de propriedade daquele grupo em 2014, poucos meses antes da prisão do ex-primeiro-ministro. A sua preocupação era controlar as direcções dos dois jornais, tendo, através do seu amigo e advogado Proença de Carvalho, defendido a nomeação de Afonso Camões para esses lugares. Esse jornalista, amigo de Sócrates, chegou mesmo a definir-se como um “general prussiano” que “não se amotina”, podendo ser um “joker” em qualquer posição de direcção. O actual director do Jornal de Notícias é, de resto, um amigo de longa data de José Sócrates, que o colocou em lugares tão importantes como a direcção da Lusa e que contou com a sua colaboração noutras “operações” (aí, refira-se, o livro de Saraiva revela alguns episódios curiosos sobre a acção de Camões que eu desconhecia).
Mas sabemos mais. Sabemos que Proença de Carvalho é hoje o homem forte da administração do grupo e que os órgãos de informação da Global Media têm sido utilizados, com pouco ou nenhum escrutínio, por José Sócrates para difundir as suas mensagens. Correndo o risco de me falhar alguma intervenção, fiz um pequeno levantamento – pequeno mas significativo:
- 27 de Novembro de 2014: Primeira mensagem de Sócrates depois da prisão, divulgada pela TSF (e pelo Público);
- 4 de Dezembro de 2014: Carta publicada no Diário de Notícias;
- 5 de Março de 2015: Carta escrita a partir do estabelecimento prisional de Évora e entregue ao Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF, com críticas a Passos Coelho;
- 4 de Abril de 2015: Texto de opinião publicado no Jornal de Notícias;
- 8 de Junho de 2015: Declaração exclusive ao Jornal de Notícias sobre a recusa de pulseira electrónica;
- 12 de Junho de 2015: Declarações enviadas por escrito à TSF e ao Diário de Notícias;
- 30 de Junho de 2015: Entrevista conjunta ao Diário de Notícias e à TSF;
- 19 de Agosto de 2015: Carta enviada ao Jornal de Notícias (e à SIC);
- 19 de Junho de 2016: Texto de opinião publicado ao mesmo tempo no Jornal de Notícias e na TSF;
- 26 de Junho de 2016: Texto de opinião na TSF (não se encontram no site da TSF textos de opinião de mais nenhum político);
- 10 de Setembro de 2016: Texto de opinião no Diário de Notícias.
- 16 de Setembro de 2016: Entrevista à TSF sobre o juiz Carlos Alexandre.
No que diz respeito ainda ao grupo Global Media refira-se ainda que os órgãos de informação que o integram recusaram publicar a publicidade do Correio da Manhã em que se criticava uma decisão judicial que, durante alguns meses, impediu aquele jornal de publicar informação relevante sobre a Operação Marquês.
Estes dados indicam que aquele grupo de comunicação tem servido ao ex-primeiro-ministro como plataforma para defender as suas posições, com privilégios de acesso únicos, quase absoluta ausência de escrutínio, tudo isto quando se sabe que ele interferiu, em 2014, na escolha das direcções editoriais e que tem o seu amigo e advogado como presidente do Conselho de Administração.
Contudo parece haver uma espécie de “conspiração do silêncio” que não questiona esta situação, isto enquanto fervem as indignações por causa de um livro que, na verdade, só põe por escrito aquilo que todos sabem sobre a vida privada de algumas figuras públicas. O povo pode gostar muito de mexericos (enquanto diz mal deles), mas certo, certo, é que falar de mexericos é muito útil para não se falar de coisas realmente importantes. E para mascarar a hipocrisia reinante.