Hoje já não sorrimos assim. Mas nesta primavera de 1981, Francisco Balsemão sorria para a jornalista do Expresso, que acabava de receber um prémio internacional, devido a uma reportagem publicada nas suas páginas. E eu olhava para o fundador do jornal e na altura primeiro-ministro, como se aquilo que me ocorria fosse uma coisa a meias. E de certo modo era. O Expresso, ele, eu, alguns colegas mais, tínhamos sido, por esses tempos, uma espécie de entidade quase indesligável, tanto oficiáramos em conjunto: a revolução, os militares, o Conselho da Revolução, Soares, Sá Carneiro, Cunhal, os partidos, o PREC, os quartéis… Essa vida que vivemos entre dois mundos, duas realidades, balançando entre o possível e o impossível.
Sim, toda a imprensa estrangeira ali rumava e aportava. Dos diretores do Le Monde, L’Express e Le Nouvel Observateur, aos gigantes norte-americanos, aos nossos vizinhos espanhóis, aos alemães, ingleses, italianos. (Como foi, por exemplo, o caso de Oriana, não a fada mas a Fallaci, que lá foi expressamente contar ao dr. Balsemão que Cunhal, dez minutos antes, acabara de lhe dizer que nunca haveria em Portugal uma democracia burguesa). Sim, e essa grande plateia internacional da comunicação pasmava ao ouvir aquele diretor suis generis, doublé de proprietário, doublé de político… Ao mesmo tempo que abria a boca de espanto face ao que fora daquele edifício de esquina, com vista para o Marquês de Pombal, ia ocorrendo país fora: golpes, inventonas, prisões, a ocupação do vespertino “A República”, o assalto à Rádio Renascença, o assalto à embaixada de Espanha, greves diárias, um Parlamento sequestrado, a quase asfixia de Lisboa.
Enquanto isto, no Expresso, nós ouvíamos, reportávamos, contávamos, entrevistávamos, 24 horas non stop. De tal forma que um dia até foi preciso inventar o Expresso Extra que existiu no fogo de 1974/5 e “saía” às quartas-feiras! Uma invenção do dr. Balsemão para escoar a prodigamente vertiginosa informação que a Rua Duque de Palmela atraía como ninguém no país, mas que não durava até ao sábado seguinte!
Mas agora, ao tempo da foto que abre esta história, a política levara-me um excelente diretor que no dia em que ela foi tirada era um primeiro-ministro feliz.
Aprendi muito com ele. Respirava informação, possuía um agudo sentido da notícia, sabia construí-la, tinha a boa perceção dos tempos e dos ritmos da entrevista, uma curiosidade imparável, cheirava bem o ar, aspirava bem o tempo. Tinha faro, intuição, talento. Tinha paixão. Sempre ofegante, apressado, desorganizado, impontual — nunca o conheci de outra maneira — era por vezes leve, por vezes ligeiro. Mas era um jornalista dos pés à cabeça que adorava o que fazia e foi por isso um ótimo diretor do Expresso.
E era hábil. Ao conviver tão placidamente numa espécie de tácita “aliança” entre um assanhado MRPP maioritário na redação e o então PPD, que ele fundara com Francisco Sá Carneiro em maio de 1974, tinha o Expresso pouco mais de um ano. Os comunistas do PCP eram os odiados “revisionistas”, o PS um partido “fascista”, o PSD não tinha direito de cidade, vomitava-se o CDS. Mas no número 37 da nossa rua, o casamento de conveniência entre o maoismo militante e os patrões do PPD vigorou com felicidade: espantando o mundo produzia-se o melhor jornal desse tempo (e do seguinte).
Uma edição do Expresso de Agosto de 1975
Não sou da fundação do Expresso, entrei no primeiro dia de setembro de 1974. Entrei, é como quem diz: “Vens fazer o mês de setembro, o mapa de férias foi mal organizado mas depois não te encostas à nossa amizade, não preciso de mais gente”, disse-me o diretor com moderado entusiasmo.
Não me encostei, o 28 de setembro é que se encostou a mim. A fatídica data desabou-me sobre a cabeça como um bem vindo prémio e devo ser das raras pessoas no país a ousar tal desabafo. Mas a verdade é que a minha conquista do Expresso se fez à conta das aventuras vividas naquela indecente, armadilhada, longa noite: o dr. Balsemão gostou do que fiz, reconsiderou e incluiu, coitado, mais um (parco) ordenado na sua “pesada” (dizia ele) folha de pagamentos.
“Aqui escreve-se sempre dos dois lados do papel de máquina…”, disse-me um dia, logo no início, no seu amplo gabinete, enquanto me “ditava” uma notícia com o objetivo de testar os meus (sofríveis) conhecimentos na matéria. “É para poupar”. O efeito era horrível, mas que importância tinha? Poupava-se.
Com o país a arder, mandava-me a todo lado: que reportasse o que visse e ouvisse! Dos quartéis que eu frequentava como se fossem pastelarias, às noitadas no Restelo, no prédio alto onde então habitava o Conselho da Revolução; do COPCON, aos comandos militares do país; dos Passos Perdidos da Assembleia da República às sedes dos partidos políticos onde entrevistava, um após outro, Freitas do Amaral, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal. Ou Zenha, ou Almeida Santos, ou Amaro da Costa, ou Gama e… toda essa gente pronta a construir o edifício da democracia civilista e pluripartidária que tão a custo se tentava erguer.
Fique-se por aqui, para mostrar o que quero dizer:
Este artigo de MJA é um testemunho pessoal acerca de Balsemão e do Expresso. A passagem transcrita reporta-se ao período do PREC, altura em que a jornalista começou a trabalhar "à peça" e à experiência, na redacção.
A produção da imagem da edição do Expresso de Agosto de 1975 é da minha autoria, publicada aqui no blog.
Como se alcança através de um click no Google, na secção de "imagens" e com as indicações "Expresso portadaloja", esta, como outras, torna-se pública e sem restrições de copy-right e não será isso que fica em causa.
A imagem resulta de uma cópia feita em scanner da edição original do Expresso que comprei em Agosto de 1975 que ainda guardo e encontra-se visivelmente deteriorada. Nem isso impediu a reprodução pelo Observador sem qualquer menção de origem...
Passados 42 anos sobre a aquisição dessa propriedade sobre um exemplar de um jornal, o direito de reproduzir a imagem desse exemplar parece-me juridicamente indiscutível. A imagem, sendo da minha autoria reporta-se a um objecto que então adquiri e que era um jornal que então se vendia às dezenas de milhar. Quem guardou o respectivo exemplar poderá fazer o mesmo. Então, como agora, o Expresso não reserva direitos de reprodução do conteúdo e por isso me sinto à vontade em reproduzir a imagem do meu exemplar, comprado e que contribuiu então para que os jornalistas e empresa tivessem avviamento, incluindo o actual PR. Conclusão lógica, nessa perspectiva: deve-me mais a mim do que eu a ele, o que é sempre confortável...
Porém, pode colocar-se a questão, assim formulada e que traz outras à ilharga: temos o direito de reproduzir livremente imagens que são propriedade intelectual de outrém e andem à solta na internet?
Pois se andam à solta...podemos. Mas deveria existir uma ética básica, a de indicar o sítio de proveniência, para se esconjurar o espectro do furto virtual. Confesso que convivo mal com tal espectro e procuro sempre obviar a tal maleita, indicando a proveniência da imagem, sempre que possível.
O Observador optou por não o fazer o que diz algo sobre quem administra o Observador ou quem pratica o acto de furto virtual.
Esta mesma edição do Expresso de 23 de Setembro de 1975 revela ainda outra coisa interessante: nessa altura, cerca de 30 jornalistas do Diário de Notícias, dirigido efectivamente pelo nóbél Saramago, subscreveram um manifesto de protesto contra a manipulação partidária do jornal pelo PCP e MDP/CDE, satélite daquele.
Na parte da secção Gente que então seria animada pelo actual presidente da República, escrevia-se assim a propósito de Saramago, do DN e de certos próceres da esquerda que colaboraram com o anterior regime...
O Sol, pelo contrário, consagra várias páginas ao assunto e a quase totalidade do suplemento b.i. em homenagem ao antigo patrão do actual director do Sol...
Curioso...