quinta-feira, maio 20, 2021

Crónica de dois canteiros da justiça penal

 Este artigo em tandem, na Sábado de hoje, dá-nos uma imagem da Justiça em Portugal com o foco na sua evolução na área penal. 

É da autoria do juiz Conselheiro jubilado, Santos Cabral e do PGA também jubilado, Euclides Dâmaso. Ambos de Coimbra e antigos canteiros do edifício projectado e em obras permanentes de construção da Justiça que temos. 

Santos Cabral é um dos juízes precursores na jurisprudência acerca do valor intrínseco da prova indirecta em processo penal, com várias decisões exemplares em tribunais superiores e por isso influenciador importante de outras decisões jurisprudenciais. 

Não obstante também é autor de decisões polémicas que retiram aos magistrados do MºPº a autonomia individual nos casos em que defendem publicamente e em primeira instância determinadas posições processuais, tornadas definitivas nas instâncias superiores, por se entender que essas iniciais, do MºPº, representam de forma já cristalizada o entendimento processual do MºPº no seu todo. 

Tal decisão da jurisprudência repetida e sufragada por Santos Cabral teve um efeito deletério e contra-producente: a hierarquia do MºPº impôs autarcicamente a regra de que os inferiores devem obedecer a ordens dos superiores, como se fosse na tropa e para evitar aquele efeito. É essa a génese da famigerada directiva da actual PGR e talvez o motivo porque alguns a defendem, particularmente as hierarquias superiores do MºPº. É esse um dos motivos principais do actual mal-estar no MºPº e na deriva a que se assiste, no MºPº, em tudo perniciosa e em si mesma prevaricadora da essência do que é a Justiça. O recente caso "Selminho" parece-me  apenas mais um exemplo flagrante de tal fenómeno crescente em que o afã de apresentar a Justiça de tal modo, irá ter eventualmente um efeito deletério. Outro é o caso da invasão da academia de Alcochete, pelos seguidores acéfalos do desaparecido Bruno de Carvalho. Outro ainda é o caso de Tancos e por aí fora, como são os casos que envolvem a corrupção selectiva do regime angolano,  porque há muitos mais, principalmente anónimos e por essas comarcas fora. 

A Justiça penal actual, em Portugal e por causa de decisões jurisprudenciais como essa, que sempre me pareceu insensata mas com boas intenções, pena pelas ruas de uma amargura cujo final vai ser triste. 

Para além disso que aliás não é abordado no artigo, mas devia ser, há o resto que é muito, imenso e nos dá a ideia do panorama geral: duvido que a justiça penal actual em Portugal seja melhor do que antes de 25 de Abril de 1974, no tempo do Estado Novo, por causa dessas e doutras. 

Há por exemplo isto que também aparece na edição de hoje da revista: o artigo habitual acerca da perplexidade de um jornalista em não entender os caminhos e veredas do direito penal que se ensina em Coimbra e o papel preponderante nestes fenómenos todos que a academia de Coimbra continua a representar, sem fim à vista. Quem é que se escolhe para presidente do Tribunal Constitucional ou para presidentes de comissões de revisão de leis penais fundamentais? Por exemplo um Costa Andrade ou um  Figueiredo Dias, dois dos mais lídimos representantes de tal academia que deu ao mundo português da modernidade os códigos penais cujas regas permitem aqueles efeitos, sem qualquer margem para qualquer dúvida. É aqui que esta porca torce e retorce o rabo, é preciso que isto seja dito, redito e proclamado para se ver que estes reis vão nus.  

O artigo, aliás,  também refere explicitamente a circunstância de a actual Justiça ser eventualmente pior do que a do Estado Novo, mas sob um alvo desfocado e apenas virado para um fenómeno, precisamente o apontado à academia e jurisprudência mais conservadora, esquecendo os demais. 

Sendo demasiado sintético e resumido a casos de fait-divers ainda assim os autores pretendem demonstrar algo essencial: a Justiça penal actual, nos tribunais, continua enredada nos paradigmas antigos e que provinham já do Antigo Regime, sem atender ao verdadeiro espírito e exigências modernas de celeridade, adequação e eficácia. Quase se adivinha nos exemplos mostrados, a prova de que se importaram para o direito penal as exigências formais de um direito processual civil que entretanto também já se modificou em prol do desiderato mais consentâneo com a verdade do caso, da  realidade subjacente aos procedimentos. 


Não obstante a pedrada no charco do komentariado nefelibata ou simplesmente ignorante destes assuntos, no sentido de os fustigar com evidências práticas que os desmentem, sobra um aspecto importante e que pode muito bem desmentir os autores naquilo que contestam de validade na asserção de que a Justiça de agora é melhor do que a do Estado Novo, no que se refere à independência perante o "Príncipe". 

Ora tendo a acreditar que assim não é de facto e os autores do artigo também devem saber melhor que isso, por várias razões, entre as quais a de terem lidado com casos concretos em que tal não foi como escrevem. Houve e há magistrados que actualmente respeitam mais o "Príncipe" do que antes, no Estado Novo. 

Nesse antigo Regime, os magistrados, apesar de ligações umbilicais ou formalmente institucionalizadas ao poder central de nomeação, mormente em tribunais de índole administrativa, eram porventura mais independentes de si mesmos e das suas convicções próprias que alguns, muitos mesmo,  dos actuais magistrados que andam por aí. 

A afirmação tem sabor de gratuitidade mas também tenho direito a dizer coisas assim. Quem quiser que o desminta, mas com factos. 

Por mim aponto dois factos que  suportam tal afirmação, aliás já repetidos por aqui: o primeiro poderia ter evitado o escândalo do Marquês de que o artigo também fala e refiro-me ao que se passou com a indagação do MºPº ao crime de violação de segredo de justiça, praticado eventualmente em 23 de Junho de 2009 e com suspeitos que nunca foram ouvidos como tal, por opção do mesmo MºPº.

O segundo tem a ver com outro assunto mais antigo mas padecente do mesmo mal: o caso Emaudio, com a figura de Mário Soares no assunto da corrupção de Macau, nos anos noventa. 
Esses dois casos, se tivessem sido investigados pelo MºPº com total independência do "Príncipe", teriam a virtualidade de modificar politicamente o país. Eppure...compreendo que o não tivessem sido, mas por isso mesmo não se diga que actualmente os magistrados são mais independentes do tal "príncipe" do que antigamente, porque não são, antes pelo contrário. No caso "ballet rose", o mais emblemático relativamente a tal fenómeno a prova pode ser encontrada, embora não pela autoria de um tal Moita Flores.

Esses são casos públicos, conhecidos, mas há outros, vários, relacionados com o actual arguido de corrupção, José Sócrates ou com outros governantes que nunca o chegaram a ser, por mero efeito real do "respeitinho" ou complacência e por um motivo que desmente os autores: os Príncipes actuais são mais respeitados que os do Estado Novo, por várias razões e a mais importante é simples de enunciar: a corrupção actual do regime é infinitamente superior à do Estado Novo. 

Os interesses cruzados com personagens dúbias, oportunistas, carreristas e quejandos, determinam tal corrupção que mesmo não tendo reflexos penais acabam por nos dar o panorama real que aqueles dois autores conhecem bem. 

O peso e influência da academia de Direito de Coimbra na feitura e organização das leis penais é evidente e comunga de tal fenómeno, além do mais por um motivo singelo: é considerada a melhor do país, mas...será mesmo, com estes efeitos que vemos e estão aliás à vista de todos?!

O que se passa em tal academia, no seio dos institutos jurídicos e do negócio dos cursilhos pós-graduação é apenas mais um dos fenómenos, aliás completamente ignorados pela opinião pública. 

O facto de o Código Penal de 1982 ter já em cima dos seus artigos coligidos e organizados por tal escola,  cerca de 52 alterações deveria suscitar um clamor público para se entender afinal que obra de cantaria foi essa que precisou de mais de meia centena de desbastes e entalhes para se manter em pé.

Se alguém quiser comparar tal código com o que vigorava no Estado Novo e que vinha de 1886 não precisa de ir mais longe...porque nem tem comparação e foi instrumento fundamental que vigorou até 1983, cumprindo a sua função.

Quem quiser perceber como tudo isto descambou pode ler um pequeno exemplo que aliás vem em apenso à colectânea de legislação penal de 1979, precisamente da Coimbra Editora. É uma lei de 1978 em que o "legislador" definiu o que são organizações fascistas, pretendendo podar a ideologia desse género: 




Por outro lado a escola de direito de Coimbra tinha um chantre, nos anos setenta: Figueiredo Dias, cidadão de Coimbra, como aqueles autores. 

Na sua "sebenta" de 1975 tinha assim estas primeiras páginas sobre o que era o "direito penal": 


Uma das referências primordiais e de começo é logo assim: "evitar que o direito penal se torne em tutela normal de puras violações jurídico-civis"...o que daria muito pano para mangas, ou se se quiser muita pedra para partir na concepção vigente e actuante do actual Ministério Público que anda sem rei nem roque ao saber das modas e de certos espíritos de torquemada e que aliás os autores conhecem muito bem. 

Se aqueles autores quiserem mesmo escrever sobre a cantaria do edifício da Justiça no que terão muito que fazer, devem necessariamente começar por aqui, por estas pedras angulares do actual edifício...e não se aterem apenas a uma colunata.

 Capacidade e saber não lhes falta e tempo também não. Então: bora lá! Estou aqui para ler. 

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