quarta-feira, outubro 07, 2020

No tribunal de Contas provavelmente já houve heróis...

 Um deles é este que escreveu um livro in illo tempore e quando era raro alguém dizer mal do nefando governo de um tal Sócrates. Chama-se Carlos Moreno e não tinha papas na língua, como alguns teimam em mastigar sempre que falam de certos assuntos. 

Já escrevi por aqui no tempo em que poucos diziam o que Carlos Moreno anunciava:

Em 3 de Novembro de 2010, Carlos Moreno tinha acabado de lançar um livro sobre a despesa pública dos governos do tal Sócrates ( já ia no segundo, esse com maioria relativa e alegremente a caminho da terceira bancarrota nacional). Escrevi então assim:

O juiz jubilado Carlos Moreno exerceu durante muitos anos funções no tribunal de Contas por onde passaram processos relativos às despesas do Estado-Administração, com obras e serviços de grande relevo.
Acabou de lançar um livro precioso e indispensável para quem pretenda saber algumas coisas do modo como o Governo governa o país.l Este que está e outros que foram.
O livro chama-se Como o Estado gasta o nosso dinheiro e vale todo os quase 15 euros que custa. É um livro oportuníssimo, lê-se de um fôlego, até no Metro ou em intervalos de almoço. Prende o leitor desde os primeiros parágrafos e é um contributo valiosíssimo para o esclarecimento de uma classe jornalística que pouco ou nada sabe destes assuntos e anda sempre pela rama das notícias que estouram no dia a dia.

Carlos Moreno concentra alguma da atenção do livro, no fenómeno das parcerias público-privadas para explicar coisas inexplicáveis como esta que mencionou numa entrevista ao Público:

Durante estes 18 anos, o Estado viveu, em matéria de apoio para preparar, lançar e negociar PPP com recurso a consultores externos, pagos a peso de ouro. A experiência adquirida por esses consultores externos não fica no Estado, fica no sector privado, à custa dos contribuintes. Mas hoje, e digo-o com conhecimento de causa, há técnicos reputadíssimos na unidade de PPP da Parpública, no GASEPC, que funciona junto da Direcção Geral de Tesouro e FInanças e ainda na Caixa Geral de Depósitos. Porque a CGD aparece em algumas PPP como banco financiador, mas tambem participando no capital dos consórcios.

Porque acha que não avança?

Não constituir esta unidade é uma coisa inexplicável. Há 15 anos que o TC recomenda ao Estado que acumule dentro do sector público o conhecimento que tem pago a peso de ouro. Há ainda outro efeito pernicioso que às vezes é esquecido. A consultoria externa tem ajudado o Estado na preparação, no lançamento e na negociação das parcerias. Mas não encontra esses consultores externos a entrar numa outra fase que é indispensável dado o volume de PPP que há em Portugal, a fase de monitorizar e fiscalizar a execução das PPP .

No livro também se menciona o fenómeno das fundações que são às centenas e muitas delas a depender directamente do Orçamento do Estado com é o caso da incrível Fundação Mário Soares.
No entanto, não menciona uma outra fundação que foi motivo de escândalo noticioso por estes dias: a Fundação Cidade de Guimarães, cujos dirigentes auferem muitos milhares de euros por mês, do Orçamento, para preparar o evento dessa cidade como capital europeia da cultura, daqui a dois anos.
O presidente do Conselho Geral é o antigo presidente Jorge Sampaio, um indivíduo conspícuo cujo escândalo no entanto tornou mudo. Um dos vogais foi seu chefe de gabinete. É ler aqui, tudo sobre o assunto.

Em 26.9.2011 sobre o mesmo assunto das PPP e do tribunal de Contas dizia o mesmo e que então mencionei: 

Entrevista ao i de Carlos Moreno, Conselheiro jubilado do Tribunal de Contas. Deve ler-se e perguntar-se porque razão o MºPº e a PGR não instauraram um inquérito criminal para a averiguar indícios muito graves de corrupção, nos negócios da parcerias público-privadas. Além do mais por causa desta simples afirmação: "Em todas as PPP que auditei há uma manifesta incompetência do sector público, e eu falo só de incompetência e desleixo, na negociação de contratos que são muito pormenorizados."

Esta afirmação, produzida ao longo da entrevista é a verificação factual de um fenómeno muitas vezes denunciado e nunca assumido como constituindo um indício claro de corrupção, porque os negociadores por parte do Estado não devem nem podem ser ingénuos ao ponto de comprometerem seriamente a viabilidade económico-financeira de um país.
Os indícios de corrupção, neste caso, residem muito simplesmente em saber quem negociou e como negociou e que vantagens económicas e mesmo financeiras obteve pessoal e institucionalmente, no caso de ser pessoa inserida numa estrutura empresarial ou político-partidária. Cabe ao Ministério Público do DCIAP ou do DIAP averiguar esses indícios, partindo de verificações de factos como este que agora é apontado e tem-no sido já noutras ocasiões. O que Carlos Moreno diz nesta entrevista é suficiente para tal.
Haja quem tenha coragem de investigar o que tem de ser investigado e se alguma coisa ou alguém for detectado e apanhado nesta marosca que se afigura evidente, que seja punido com longos anos de prisão. Esta actuação inaudita de certos indivíduos não pode passar impune, porque tal constitui uma injustiça muito grave, para além do prejuízo colossal que representa para o país. Coisa mais grave e corrupção mais séria não conheço, no actual estado a que o Estado chegou e se os poderes públicos não tiverem essa consciência, a democracia em Portugal é um simulacro.

Mais passagens da entrevista:

O que eu sei é que dizem que há um buraco e dívida omitida. De onde? Das contas e dos orçamentos. Isso foi o que aconteceu nos últimos dez anos em todo o lado. Quando se criam hospitais empresas, umas Estradas de Portugal, Parceria Público-Privadas (PPP), empresas municipais e fundações nacionais ou autárquicas, está-se a criar entidades jurídicas distintas da administração pública central, local ou regional, para passar a todas essas entidades uma série de funções que pertenciam ao Estado. Para retirar receita e despesa do Orçamento do Estado, permitindo que estas entidades se endividam ao infinito. Mais tarde ou mais cedo, isto tem de ser pago pelo Orçamento do Estado. Veja, na sequência da troika ter vindo a Portugal, toda a dívida das Estradas de Portugal foi assumida como dívida orçamental. Grande parte dela estava escondida do orçamento. Relativamente às PPP foi assumida pelo Orçamento de Estado e nessa altura aparecem os buracos.

Não acha que muitos desses negócios ruinosos para o Estado são bastante mais graves do que uma simples desorçamentação?

Sabe tão bem como eu que na quase totalidade das PPP foram e continuam a ser excelentes negócios para os concessionários privados e péssimos negócios para os contribuintes.

Mas isso tem a ver com a natureza das PPP ou com incompetência dos representantes do Estado?

Em todas as PPP que auditei há uma manifesta incompetência do sector público, e eu falo só de incompetência e desleixo, na negociação de contratos que são muito pormenorizados.

Há só incompetência e desleixo ou também há manipulação de negócios a favor dos privados?

Falo desta coisa bem portuguesa de que é preciso é mostrar obra, independentemente dos custos que ela vá ter no futuro. As PPP foram apresentadas a custo zero para o contribuinte, como aconteceu à ponte Vasco da Gama e à Fertagus, em que os privados desenhavam, construiam, mantinham e eram pagos pela exploração durante mais de 30 anos. Os contratos são assinados, são mal negociados, há falhas graves. No caso da ponte Vasco da Gama foi sete vezes renegociado, e aquilo que era para ser a custo zero, acabou por ter uma derrapagem de 700 milhões de euros.

Volto a dizer, não acha que para além da competência , existe em alguns sectores governamentais uma certa cumplicidade com os privados. Ministros que passam do governo para as empresas que negociavam...

Não posso falar daquilo que não sei. Cumplicidade ou corrupção são fenómenos que não cabe ao TC investigar. O que lhe posso dizer sobre aquilo que encontrei é que os sucessivos contratos de PPP eram negociados por parte do Estado com incompetência, desleixo e sem cautelas mínimas para se fazerem bons contratos. Em quase todos eles o Estado assumiu riscos comerciais e de financiamento que cabiam aos privados. Por exemplo, nas autoestradas, se não passasse um determinado número de carros o privado seria indemnizado. O que foi um péssimo negócio porque essas previsões foram altamente inflacionadas. O assumir desses riscos próprios de um negócio privado tornou as PPP caríssimas para o contribuinte. Nalguns casos, os contratos têm contornos leoninos, o Estado assume riscos que deviam ser assumidos pelos privados, aceita taxas de rentabilidade para os capitais privados da ordem dos 14 % e não mete uma única norma que caso o negócio corra muito bem o Estado também vai colher uma parte dos benefícios. O Estado assume todos os riscos e abdica de grande parte dos proveitos.
(...)

Na sua carreira qual foi o pior exemplo de gasto de dinheiros públicos?

Eu tive na minha alçada as finanças públicas das empresas públicas, grandes obras públicas e parcerias pública-privadas. O pior exemplo que assisti foi em grandes obras públicas e na generalidade das PPP rodoviárias e ferroviárias. Li há pouco tempo esta notícia: Portugal é o país que mais quilómetros de autoestrada tem por habitante. Quando eu hoje, como cidadão, me desloco ao longo do país, constato aquilo que os meus auditores descobriram: maus negócios que custaram rios de dinheiro ao contribuinte. Constato isso como cidadão e desta forma: se for daqui ao Porto no mês de Agosto, por determinadas autoestradas, eu até tenho medo de lá circular, não porque o piso seja mau, mas porque me arrisco, mesmo no mês de Agosto, a fazer quilómetros sem ver um carro. E parar numa estação de serviço, estar lá 45 minutos, e ser o único cliente. É a verificação prática do desperdício enorme que foram as PPP."

Como é agora sabido o actual e novel presidente do tribunal de Contas foi um dos responsáveis pelo estenderete que Carlos Moreno acima denuncia, em entrevista de 2011. Portanto estamos bem encaminhados para a quarta bancarrota...

 Sobre o tribunal de Contas e o Ministério Público, figura muito apagada dessa estrutura judiciária e fundamental para que se pudesse fazer alguma coisa em modo jurisdicional, falou antes disso outro herói do mesmo tribunal, pai de uma antiga ministra inadaptada à administração interna no tempo dos incêndios de Pedrógão. 
Falo de Alfredo José de Sousa que em várias ocasiões mencionou a displicência e inoperância do então representante do Ministério Público nesse tribunal,  de seu nome António Cluny . Este, para se defender,  em 2013 dizia que "era difícil ao tribunal de Contas responsabilizar políticos".  

Já escrevi aqui sobre tal assunto. Duas vezes, pelo menos. Em 2013 e em 2018

Resta agora saber o que pensam os actuais representantes do MºPº no mesmo tribunal de Contas. Estão aqui todos...mas se alguém esperar que digam alguma coisa, é melhor estarem albergados algures porque se cansarão se estiverem sentados. 

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