Sobre as inspecções a magistrados, no caso a juízes, o
Diário de Notícias publicou já uma reportagem em que se dá conta de alguns casos avulsos que contrariam a ideia transmitida no editorial de ontem, no sentido de não existir uma avaliações de magistrados.
O texto do jornal é publicado na revista digital
In Verbis, e cita alguns exemplos, publicados no boletim informativo do CSM, de Fevereiro deste ano.
O
turno do juiz terminava ao meio-dia e meia de sábado. Mas, já às 09.30, um funcionário judicial tinha--o avisado de que iriam chegar a tribunal dois detidos para primeiro interrogatório judicial. O juiz contactou a secretaria, procurando saber se o "expediente" (processo) tinha entrado na secretária. Às 12.28, a funcionária comunicou ao magistrados que os presos entraram no Ministério Público. Às 13.03, o expediente chegou à secretaria judicial, mas o juiz não fez o interrogatório porque o turno terminava às 12.30.
O relatório do inspector que analisou o caso referido é peremptório: "O magistrado, investido nas funções de juiz das liberdades, não poderia deixar de ouvir os detidos, sendo a justificação por ele apresentada meramente formal e desadequada." O juiz foi punido com uma pena de advertência não registada. Uma juíza foi punida com pena de advertência registada, suspensa por dois anos. Eram muitos os comportamentos incorrectos imputados à magistrada. Ferreira Girão disse ao DN que "tem havido mais cuidado na avaliação. Só se atribui a excelência aos excepcionais", sublinhou. "A avaliação é feita por um órgão colegial, em que há oito magistrados e nove não magistrados", explicou, considerando que Portugal tem dos regimes de avaliação mais avançados. "Enquanto noutros países da Europa, o Conselho só intervém em questões disciplinares, em Portugal faz-se uma avaliação de mérito, da qualidade das decisões", argumentou.
Estes exemplos avulsos da actividade dos inspectores, no caso judiciais, abre a porta a um sector de reposteiros corridos: o das inspecções aos magistrados.
Quem é que as faz? Um corpo de inspectores, que funciona junto dos conselhos superiores ( CSM, CSMTAF, CSMP). Como são escolhidos estes inspectores ?
A tudo isto responde o Estatuto das magistraturas. No caso dos juízes, os artigos
160º a 162º do Estatuto e no do MP, nos artigos 34º, 35º e 132º : os inspectores são magistrados de carreira, em comissão de serviço, com classificações de mérito elevado e experiência comprovada.
Não há limite para a duração dessas comissões, geralmente renovadas pelos conselhos. Assim, há inspectores em funções, há anos e anos. Alguns foram-no durante dezenas ( Borges de Pinho, do MP, por exemplo).
Os critérios de inspecção estão legalmente definidos em regulamento próprio. No
Regulamento das inspecções aos juízes, escreve-se tudo o que é preciso saber de essencial, sobre o assunto: para que servem – “
facultar o perfeito conhecimento do estado, necessidades e deficiências dos serviços nos tribunais”, para propor ao Governo medidas e ainda para possibilitar o “
conhecimento sobre a prestação efectuada pelos juízes dos tribunais judiciais e o seu mérito.”
No regulamento dos juízes, há uma norma muito importante e que diz assim:
“Os serviços de inspecção não podem interferir com a independência dos juízes, nomeadamente pronunciando-se quanto a mérito substancial das decisões judicias”. Ou seja, as inspecções, neste caso, param quando chegam à análise do caso concreto. O inspector pode ficar com uma ideia, mas não vai dar o seu parecer sobre o mérito da decisão soberana do juiz concreto. E assim está bem.
As inspecções destinam-se essencialmente a obter informações sobre o serviço e o mérito dos magistrados. Essas inspecções judiciais, devem fazer-se em regra cada quatro anos, sem prejuízo da verificação anual de uma “visita inspectiva sumária”.
As inspecções distinguem-se dos inquéritos e sindicâncias, na medida em que estes são actos “isolados” para averiguação de eventuais anomalias no funcionamento do serviço de um magistrado ou geral.
Quanto aos critérios concretos das inspecções: o regulamento dos juízes, no que a eles se refere, esclarece alguns pontos, como sejam “o bom senso”, a “assiduidade, zelo e dedicação”, a “produtividade, método, celeridade na decisão e capacidade de simplificação processual”; a direcção do tribunal, das audiências e outras diligências, designadamente quanto à pontualidade e calendarização destas.”
Na análise da preparação técnica, outros índices são ponderados: “ categoria intelectual, capacidade de apreensão das matérias e de convencimento decorrente da argumentação na fundamentação das decisões, com especial realce para a original.”
Há ainda uma apreciação do nível jurídico do trabalho realizado, com referências ao "senso prático, ao saber e ponderação.”
Não faltam critérios concretos e práticos para uma correcta avaliação.
Tal como não faltam
no caso do MP, como se pode
ler por aqui e que têm uma dimensão paralela.
Portanto, as inspecções existem, são efectivamente realizadas periodicamente e os magistrados dependem delas, essencialmente para evoluírem na carreira, porque é através delas que se classificam os méritos e possibilidades de progressão.
Todos os anos, no início, os respectivos conselhos superiores elaboram um plano de inspecções, onde são indicados os magistrados a inspeccionar e por quem. O magistrado sabe de antemão quem o vai inspeccionar e quando.
Além disso, só os magistrados dos tribunais de primeira instância são sujeitos a esta avaliação inspectiva. Os magistrados dos tribunais superiores estão efectivamente entregues a si próprios, sem avaliação por inspecção. Quando muito, poderá haver uma ou outra sindicância aos serviços se estes se mostrarem escandalosamente parados. Tal aconteceu há uns anos na Relação do Porto, onde havia juízes que pura e simplesmente não trabalhavam, apesar do elevado mérito intelectual, por todos reconhecido.
Tudo isto parece um mundo perfeito. Eppure…algo pode correr mal, com estes cuidados todos e estes princípios bem definidos e estruturados.
O que pode correr mal, nas inspecções aos magistrados?
Várias coisas: a qualidade idiossincrática dos inspectores, na avaliação dos itens e ponderação dos elementos criteriosos e a natureza da isenção, imparcialidade e objectividade nesse trabalho inspectivo.
Como os inspectores são nomeados sem limite temporal nas comissões de serviço, tendem a passar anos nessas funções por não haver razões para se mudarem ou terminarem o seu tempo de avaliação.
O que resulta deste fenómeno? Num universo relativamente pequeno de magistrados ( um milhar de magistrados judiciais de primeira instância e quase outro tanto de magistrados do MP), todos se conhecem, ao fim de alguns anos.
Conhecem-se os magistrados muito bons, como se conhecem os maus. Tanto uns como outros, são uma minoria. mesmo minoria. E o resto, como é natural, é a imensa mediania.
E no entanto, as classificações de serviço não espelham esta realidade da vida. Os muito bons, aparecem como cogumelos na época de chuva, sendo certo que os critérios parecem estar a mudar.
Que consequências para isto? Uma ascensão à segunda instância de alguns que nunca deveriam sair da primeira.
E que mais? Uma relativa injustiça para a qualidade excepcional de alguns, poucos, que se vêem englobados no grosso do pelotão de mediania alavancada a uma putativa excelência.
Por outro lado, as inspecções aos serviços e mérito dos magistrados, raramente tocam no essencial das medidas úteis para uma mudança efectiva e proficiente, nos mesmos serviços.
Os inspectores são recrutados entre os magistrados com alta classificação, mas são eles mesmos, magistrados que exerceram durante anos ( sempre superior a uma dúzia), em tribunais cuja rotina raramente questionaram em termos de mudança e melhoria. Por falta de vocação ou capacidade, os inspectores são afinal, magistrados que ajuízam os pares, segundo o costume e a rotina que eles mesmos seguiram, dando cumprimento às leis que aprenderam a aplicar, sem grande questionamento prático.
Um dos motivos fulcrais para a continuada crise de modernização na justiça e alteração de hábitos e rotinas adquiridas, prende-se essencialmente com esse fenómeno da ausência de contribuição dos inspectores para a melhoria das leis e práticas correntes. A inovação ou a sugestão de melhorias práticas no funcionamento da Justiça, não virá dos inspectores.
E no entanto, poucas pessoas conhecerão tão bem e de modo tão profundo, a realidade do funcionamento dos tribunais.
São os inspectores, no final de contas, quem pode ver e analisar, de modo concreto e processo a processo, como funciona a justiça concreta e cuja junção de casos inspeccionados, determina uma ideia geral de funcionamento que não se afigura muito famoso, no panorama nacional.
O ditado que melhor se pode aplicar neste sentido é o exemplo do conservadorismo mais empedernido; o que vem de trás, toca-se para a frente.
Os inspectores são conservadores por excelência, do status quo. Não são inovadores, nem se pode esperar deles um contributo significativo para essa melhoria efectiva.
Porquê, afinal? Quanto a mim, por uma razão de senso comum: quem inspecciona, fá-lo segundo regras e critérios que já conhece, praticou e aceita como válidos, sem grandes problemas existenciais.
Se se puserem a questionar o modelo, perdem o sentido do que fazem. Esse fenómeno que suscita alguma perplexidade, deve ser entendido neste contexto.
Tal como os militantes que deixam de acreditar na ideologia adoptada, se vêem perdidos e sem rumo, assim os inspectores dubitativos, ficam sem referências para a positivação das classificações.
Como é que se muda este status quo? Limitando as comissões de serviço dos inspectores, a meia dúzia de anos, no máximo. E publicitando os seus relatórios aos serviços dos tribunais, para se verificar o seu grau de capacidade de análise e projecção.
No fim de contas, seria uma avaliação aos avaliadores.