domingo, fevereiro 16, 2020

A autonomia do MºPº segundo "o mais profundo estudioso desta matéria" .

A opinião de Paulo Dá Mesquita, (actual juiz Conselheiro no Tribunal de Contas) aqui enquanto jurista, no Observador, a propósito da questão da autonomia e hierarquia no MºPº e respectiva directiva, com o parecer anexo do Consultivo ( e de que Paulo Dá Mesquita fez parte até há uns anos atrás).

O texto é longo e quem não quiser ler tudo poderá passar para o segmento da "Uma Opinião". Deve ainda dizer-se que o próprio António Cluny considerou Paulo Dá Mesquita como "o mais profundo estudioso desta matéria" .

Daí o interesse acrescido nesta leitura.  A conclusão? Simples: a directiva da PGR põe em crise o equilíbrio de poderes, porque desequilibra os "checks and balances".

O escrito de Paulo Dá Mesquita, ipsis verbis:

"A discussão na esfera pública de atos e orientações relativos ao exercício dos poderes do Estado, incluindo interpretações da lei tornadas obrigatórias para o Ministério Público (MP) pelo Procurador-Geral da República (PGR) integra o núcleo do direito ao escrutínio dos titulares daqueles poderes. Uma das formas mais habituais para tentar a limitação desse controlo é o juridicismo para reservar o debate ao universo de iniciados, sendo frequente para o efeito o recurso a várias estratégias desde o jargão inextrincável, aos argumentos de autoridade pejados de sofismas ou mesmo o uso de muitas palavras e citações para diluir as questões fundamentais e com interesse público.

Neste contexto entendi pertinente alinhavar um pequeno contributo para enquadramento da ação da PGR concretizada na diretiva 1/2020 (e suas comunicações subsequentes) articulando em 14 pontos algumas constatações, seguidas de uma opinião e duas notas finais.

Algumas constatações

1. O Estatuto do Ministério Público (EMP) estabelece que compete ao PGR emitir as diretivas «sobre o cumprimento da lei» «a que deve obedecer a atuação» dos magistrados do MP.
2. A Procuradoria-Geral da República é uma entidade complexa dirigida pelo PGR que integra uma pluralidade de órgãos e serviços, designadamente o Conselho Consultivo (CC) ao qual compete pronunciar-se sobre as questões que o PGR, no exercício das suas funções, submeta à sua apreciação.
3. Neste quadro, um parecer do CC e uma diretiva do PGR sobre interpretação da lei são:


1. Atos que compreendem juízos de duas entidades com funções distintas (ainda que o CC seja presidido pelo PGR);

2. As diretivas genéricas do PGR sobre interpretação da lei derivam de uma decisão singular do titular desse poder sendo, consequentemente, o único responsável pelas opções expressas e respetivas consequências.

4. A atribuição constitucional da titularidade da ação penal ao MP articula-se com a regra legal de que os inquéritos de investigação criminal são dirigidos por concretos procuradores, devendo todas as decisões sobre a sua direção constar do “processo” para serem acessíveis aos outros sujeitos processuais, incluindo os juízes que venham a intervir no processo (nas fases de inquérito, instrução e julgamento), bem como a todos aqueles que venham a poder consultar posteriormente os autos, incluindo a comunicação social — os concretos atos e omissões dos procuradores expressos nos processos são também fonte primária da respetiva avaliação e procedimentos disciplinares cuja decisão final compete ao Conselho Superior do MP.

5. O Código de Processo Penal (CPP) compreende vários poderes de intervenção hierárquica concreta relativamente ao magistrado do inquérito, sendo alguns limitados ao imediato superior hierárquico (como os de revogar o arquivamento e ordenar que seja deduzida acusação ou empreendidas mais diligências, ordenar a reabertura de inquérito ou avocar o processo) e outros titulados pelo PGR, entre os quais, o de suscitar e decidir incidentes de aceleração processual, sendo certo que todos esses atos devem constar do processo.

6. O PGR pode, ainda, cumular com os seus poderes processuais exclusivos as competências de imediato superior hierárquico, bastando para o efeito que o diretor do DCIAP assuma a direção de inquérito, ainda que coadjuvado por outro(s) procurador(es) do mesmo departamento, o inquérito seja dirigido por um procurador do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), como sucede obrigatoriamente quanto a inquéritos em que são suspeitos juízes desembargadores ou procuradores equiparados, ou a investigação seja dirigida por um procurador-geral-regional. Por exemplo, de acordo com informações públicas, encontra-se neste momento pendente no MP do STJ um inquérito relativo a dois magistrados judiciais, apesar dos factos em causa já terem determinado uma sanção disciplinar aplicada pelo Conselho Superior de Magistratura, tendo um daqueles juízes sido objeto no passado de um outro inquérito dirigido pelo procurador-geral-distrital de Lisboa, tudo casos em que o imediato superior hierárquico do responsável pelo inquérito é o próprio PGR, posição que também assumiria se num inquérito o diretor do DCIAP divergindo da orientação do procurador titular em vez de formular ordens assumisse de forma transparente o encargo da respetiva direção. 

7. Por seu turno, o EMP também compreende um conjunto de poderes hierárquicos específicos quanto ao inquérito, nomeadamente, do PGR (mas não só), como seja o de substituir o procurador que dirige o inquérito ou determinar que um inquérito pendente numa procuradoria da República ou DIAP passe a ser tramitado e decidido no DCIAP, (consequentemente por um novo procurador).

8. Em termos de caracterização genérica, os comandos hierárquicos que podem ser proferidos no âmbito do MP são divididos em três tipos: diretivas, instruções e ordens.

9. De acordo com a diretiva 5/2014 do PGR, que está em vigor, os comandos diretos e vinculativos dirigidos a um magistrado do MP quanto a um processo concreto têm a forma de ordens e as diretivas e instruções não podem dirigir-se a um inquérito concreto.

10. Além de a lei estabelecer várias ordens concretas especificamente reguladas e relativas a inquéritos criminais (pontos 5 a 7), afigura-se pacífico que hierarquia do MP pode emitir diretivas ou instruções genéricas que devem ser cumpridas pelos procuradores responsáveis pelos inquéritos, constituindo também uma função da hierarquia coordenar a atividade dos procuradores e promover a troca de informações dirigida à eficácia da respetiva atuação, mas não à sua paralisação.

11. Desta forma, na direção do inquérito os procuradores estão sujeitos a múltiplos poderes hierárquicos, sendo as questões controversas sobre as quais incide a diretiva 1/2020 apenas duas:

1.Para além dos comandos referidos nos pontos 5, 6, 7 e 10, a hierarquia pode emitir outras ordens vinculativas (determinando ações ou omissões) sobre a direção de inquéritos concretos?
2. Na afirmativa, essas ordens devem constar do processo ou «podem ter um registo externo»?

12. A resposta do parecer n.º 33/2019, de 30-1-2020, emitido pelo CC por solicitação da PGR, foi clara sobre as duas questões, sendo afirmativa quanto à primeira e concluindo relativamente à segunda que essas ordens, apesar de dirigidas a um determinado processo concreto, «esgotam-se no interior da relação de subordinação hierárquica e não constituem um ato processual penal, não devendo constar do processo».

13. Decorridos apenas 5 dias sobre a aprovação pelo CC do parecer, foi emitida pela PGR uma diretiva inequívoca: «determino que a doutrina do parecer 33 do CC seja, no contexto das relações hierárquicas, seguida e sustentada pelo MP».

14. O sentido e fundamentação da doutrina adotada na diretiva 1/2020 apresentam-se muito discutíveis, mas importa reconhecer que a respetiva orientação compreendia respostas inequívocas às questões que a PGR pretendia ver esclarecidas (pontos 11 e 12), o que veio a ser posto em causa por duas notas entretanto veiculadas pelo Gabinete de Imprensa da Procuradoria-Geral da República:

1.Três dias depois da emissão da diretiva, num designado «esclarecimento» afirma-se que a respetiva doutrina não envolve poderes do PGR por se cingir à emissão das ordens dirigidas a um determinado processo concreto que se esgotam «no interior da relação de subordinação» «entre magistrado e o seu superior imediato», o que é contraditório com a tese do parecer no sentido de que esse poder diretivo é abrangente e não tem suporte nas normas do processo penal (as únicas que, em determinados casos, o limitam ao «imediato superior hierárquico»). O «esclarecimento» de 7-2-2020 caso tivesse valor jurídico seria, assim, uma restrição do que decorria da letra da doutrina tornada obrigatória pela diretiva 1/2020 à luz do qual as ordens classificadas como extraprocessuais (apesar de dirigidas a um processo concreto) são exclusivamente enquadradas na pirâmide por degraus da organização do MP em que o vértice é assumido pelo PGR, o qual, além de poder ser o imediato superior hierárquico do procurador do inquérito (ponto 6), não sofre de uma proibição genérica de emitir ordens destinadas, ainda que mediatamente, a ser cumpridas por um procurador que esteja abaixo em mais do que um grau do PGR na respetiva cadeia.

2. Volvidos 7 dias sobre a emissão da diretiva 1/2020 que tornou obrigatória a doutrina segundo a qual a emissão de uma ordem, «ainda que dirigida a um determinado processo concreto» se «esgota no interior da relação de subordinação» e «não deve constar do processo» (com o argumento de de que «os restantes sujeitos processuais» «não têm qualquer interesse no seu conhecimento»), surge uma nova nota para a comunicação social a anunciar que a «PGR decidiu solicitar parecer complementar ao Conselho Consultivo versando o regime de acesso ao registo escrito de decisões proferidas no interior da relação de subordinação hierárquica» e «decidiu suspender a publicação em Diário da República da Diretiva nº. 1/2020». 

Uma Opinião

a.As duas questões resolvidas pela diretiva (vd. acima 13.1, 13.2 e 14) não são, ao invés do que aí se defende, relativas à organização interna do MP, mas ao modelo de processo penal reportando-se a elementos nucleares do respetivo desenvolvimento num Estado de direito.

b. O comando genérico a que se pretende subordinar agora toda a magistratura do MP põe em causa os checks and balances do sistema de investigação criminal, a legitimidade da direção do inquérito pelo MP e impõe uma interpretação geradora de um conjunto de desequilíbrios em termos de transparência e controlo externo (pelas partes processuais, tribunal e sociedade em geral) das decisões concretas de agentes hierárquicos do MP que se me afiguram incompatíveis com princípios estabelecidos na Constituição

c. A diretiva 1/2020 determina que «no contexto das relações hierárquicas» seja «seguida e sustentada pelo MP» uma interpretação colidente com um conjunto de valores nucleares do regime legal sobre a direção do inquérito colocando em causa a legitimidade da atribuição desse poder ao MP, podendo referir-se sobre este ponto quatro tópicos ilustrativos:

1.A qualificação de ordens impostas por um hierarca ao procurador que dirige o inquérito como atos «extraprocessuais» visa não as sujeitar à transparência imposta pelas regras processuais sendo incompatível com o regime legal sobre investigação criminal, em que a aplicação daquelas regras a atos concretos é imposta pelo respetivo fim processual (ainda que dirigido à não indagação de eventuais crimes), e constitui uma fraude à lei com o fundamento formalista e falacioso de a atuação ser expressa fora do processo e apenas interessar aos agentes do MP.
2.O modelo adotado pela diretiva 1/2020 de intervenções decisórias ocultas emitidas sem suporte legal por hierarcas integrados numa pirâmide encimada pelo PGR afigura-se, ainda, incompatível com a qualificação de autoridade judiciária do subordinado sendo suscetível de se repercutir no (não) preenchimento pelo MP português dos requisitos sobre esse conceito desenvolvidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia para efeitos do exercício de poderes reservados a autoridades judiciárias no auxílio mútuo para a investigação criminal entre Estados membros da União.
3. A circunstância de o mesmo agente que pode proibir fora do processo o procurador do inquérito de desenvolver determinadas diligências investigatórias cumular a competência exclusiva para apreciar o direito das vítimas e da generalidade dos cidadãos relativamente a alguns crimes (que atingem interesses coletivos como o de corrupção) provocarem a reapreciação da omissão de atos de investigação ocultamente imposta pelo aludido hierarca esvazia um elemento nuclear do equilíbrio do regime legal (quem controla é, afinal, quem decidiu).
4. Já a eventual tentativa de contenção de danos através da criação de um mecanismo sem suporte legal «de acesso ao registo escrito» é incoerente com a diretiva que já tinha estabelecido a irrelevância para terceiros do que se passava no interior das paredes do MP em matéria de ordens dirigidas a inquéritos concretos e apresenta-se, ainda, incompatível com o labor para justificar ordens concretas extraprocessuais e não sujeitas a qualquer regime legal para o respetivo controlo, dizendo-se na fundamentação da diretiva que, apesar da direção ser um poder legal próprio do MP, esse órgão «não tem que justificar a sua posição, ou seja o processo interno que, numa magistratura “una e indivisível”, foi necessário para assumir uma determinada solução processual», no que se revela a cultura sobre os poderes do Estado defendida no parecer e acolhida na diretiva que tornou a respetiva doutrina obrigatória para o MP.

Duas notas finais tingidas pelo pecado da autocitação

1.ª) António Cluny, a propósito do caso que esteve na génese da diretiva 1/2020, num artigo em que defende a admissibilidade das ordens sem suporte direto na lei afasta-se do sentido do segundo comando que veio a ser aprovado pela PGR, fazendo, para o efeito, uma simpática e imerecida referência ao ora articulista: «Tal como defende o mais profundo estudioso desta matéria – Paulo Dá Mesquita –, considero, também, que este tipo de intervenção hierárquica deveria ter o seu lugar apropriado no processo».

Sendo verdade o que refere Cluny quanto ao sentido de uma das minhas posições, importa acrescentar que sempre defendi a inadmissibilidade de ordens concretas da hierarquia do MP sem suporte direto na lei dirigidas ao procurador responsável pelo inquérito, entendimento expresso em vários escritos ao longo de um período em que os mandatos de PGR foram exercidos por cinco pessoas distintas — o escrito mais recente está no Comentário Judiciário ao Código de Processo Penal publicado em 2019 (vd. tomo I, pp. 562-565).

Sobre o motivo essencial da aludida rejeição de ordens sem suporte na lei posso referir uma passagem de estudo académico intitulado Direção do inquérito penal e garantia judiciária, concluído em 2001 e publicado em 2003, em que na crítica da tese agora defendida por Cluny e a atual PGR, se sublinha que a mesma: «para além de contrariar a opção de política criminal sobre o controlo do exercício da ação penal, atingiria garantias de transparência, limitaria o controlo interno da decisão (o membro com os poderes de vigilância e controlo além de titular concreto da função resolutivo-repressiva seria o autor de facto da decisão que era suposto controlar) e, o que é fundamental, afetaria gravemente as garantias processuais dos particulares, sejam eles arguidos ou assistentes, bem como a expectativa comunitária de reação à violação da norma penal» (ob. cit., p. 299).

2.ª) Por seu turno, na última frase da fundamentação que precedeu as conclusões tornadas obrigatórias para o MP pela diretiva 1/2020, também se empreende uma referência, menos simpática, ao ora articulista, quando se alega que «será, aliás, contraditório dizer que a hierarquia apenas pode intervir nos casos previstos na lei e depois fazer constar dos autos a sua intervenção e afirmar que também ela é um verdadeiro ato processual penal» (o dedo apontado ao suposto sofista contraditório não consta daquele texto, mas da 260.ª nota de rodapé que o acompanha).

Neste ponto, apenas cumpre reconhecer que não se lobriga qualquer contradição quando se afirma que «a hierarquia apenas pode intervir nos casos previstos na lei», mas que todas as ordens proferidas devem «constar dos autos», pois são em termos materiais «um verdadeiro ato processual penal» na medida em que visam impor a alguém, e contra a sua vontade, a omissão ou realização de uma diligência em sentido contrário ao entendimento da pessoa que vai surgir como responsável pela decisão.

Reiterando no pecado da autocitação, os motivos de tal perspetiva não são o fruto de uma deriva argumentativa, mas apenas de uma vinculação a princípios: «O fundamento garantista (no sentido abrangente de garantia e controlo) da processualização dos atos do inquérito implica que a circunstância de os atos serem da responsabilidade de um magistrado-decisor que não é pessoalmente o responsável pela direção do processo não afaste o regime processual. Pelo que, à partida não se afigura admissível uma categoria de decisões extraprocessuais com repercussão no processo que escapem às exigências legais dos atos do processo» (op. cit., p. 98).

E, como não há duas sem três, no mesmo livro sublinha-se à frente: «a coerência que se encontra nos defensores de uma ação penal discricionária e de um MP monocrático cujas decisões de não procedimento possam ser incontroladas e fruto da mera vontade do chefe (político ou técnico designado e controlado politicamente), não se descortina naqueles outros que em nome do carácter judiciário da atividade processual penal preconizam a sua autonomia externa e simultaneamente a concentração de poderes num monocrata não sujeito a controlo» (op. cit., p. 301).

Em matéria de coerência, por ora, nada mais tenho a acrescentar, contudo devo confessar que, atentas as constatações sobre o parecer 33, aguardo curioso o que vai ser dito no futuro parecer complementar ou, mais propriamente, como aí vai funcionar o detetor de contradições."

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