segunda-feira, fevereiro 03, 2020

João Lourenço não é Nelson Mandela...

O presidente de Angola, João Lourenço deu esta entrevista interessante à DW ( veiculada pelo Sapo) que merece ser lida e comentada.

DW África: Há algumas semanas, uma investigação global revelou um esquema através do qual centenas de milhões de dólares [de recursos do Governo] foram canalizados para empresas privadas, possivelmente por causa de conexões. Uma das principais suspeitas é Isabel dos Santos, filha do ex-Presidente. Agora há rumores de que ela está a negociar um acordo para devolver parte do dinheiro. Essas negociações estão a acontecer?
João Lourenço (JLo): Essas informações são infundadas. Nós gostaríamos de deixar aqui garantias muito claras de que não se está a negociar. Mais do que isso, não se vai negociar, na medida em que houve tempo, houve oportunidade de o fazer. Portanto, as pessoas envolvidas neste tipo de atos de corrupção tiveram seis meses de período de graça para devolverem os recursos que indevidamente retiraram do país. Quem não aproveitou esta oportunidade, todas as consequências que puderem advir daí são apenas da sua inteira responsabilidade. Esse período de graça terminou em dezembro de 2018. Estamos hoje em fevereiro de 2020. Portanto, pensamos ser bastante extemporânea a possibilidade de negociação. Para além de que, processos que estão em tribunal não são negociáveis fora do tribunal.

DW África: Os documentos divulgados foram bastante claros. O senhor quer ver Isabel dos Santos atrás das grades?
JLo: Eu prefiro nem responder a isso. É uma decisão da Justiça. Eu não sou juiz.

DW África: Isabel dos Santos disse considerar um regresso a Angola para concorrer à Presidência. O que é que acha disto?
JLo: Nas próximas eleições, que ainda estão bastante distantes, nenhum candidato está no direito de escolher os seus adversários. Portanto, que apareçam os adversários que aparecerem. Não conheço mais ninguém que, nesta altura, dois anos antes, se tenha apresentado já como candidato. Porque, de facto, não é normal. Mas cada um é livre de expressar os seus desejos e as suas ambições.

DW África: Muitos dos documentos indicam que aquilo que aconteceu foi com o conhecimento, ou por vezes até ordem, do ex-Presidente. Por exemplo, decretos presidenciais para dar terras subvalorizadas a empresas de Isabel dos Santos. Porque não se investiga o ex-Presidente?
JLo: Tem de conhecer a nossa legislação.
DW África: O que quer dizer com isso?
JLo: Os antigos Presidentes gozam de imunidade durante pelo menos cinco anos.
DW África: Mas consideraria investigá-lo depois desse período?
JLo: Quem abre os processos crime na Justiça não são os políticos. É a própria Justiça quem vai atrás de possíveis crimes. Portanto, todos aqueles que estão a contas com a Justiça que não pensem que é o poder político quem os empurrou para a Justiça. Os políticos têm a missão de traçar políticas que deixem aos órgãos de Justiça as mãos livres para poderem atuar dentro das suas competências. Portanto, não se pode pensar que é o Presidente da República quem mandou para tribunal A, B ou C. Nem teria tempo para isso. São muitos casos no país. Todos os dias, a Justiça, os tribunais aqui em Luanda, nas províncias, julgam e em alguns casos condenam casos de corrupção.
DW África: Mas alguns membros da oposição dizem que o sistema de Justiça não é tão independente como está a dizer. Dizem que é muito controlado pelo Governo. Qual é a sua resposta a isto?
JLo: Talvez fosse assim no passado. Hoje não. Hoje eles têm absoluta liberdade. Só isso justifica o facto de estar a haver "n” casos de julgamentos diversos, e particularmente nesta matéria da luta contra a corrupção. Se a Justiça fosse conduzida pelo poder político, o lógico seria o poder político proteger os seus. Proteger ministros e outras figuras com grandes responsabilidades na sociedade e no Governo em particular. Portanto, esta é a lógica. O que está a acontecer é precisamente o contrário, o que significa dizer que a Justiça tem as mão livres para atuar.
DW África: Ainda assim, pessoas como Isabel dos Santos dizem que é uma "caça às bruxas" por ganhos políticos. É o que a empresária afirma. Foi o que ela também disse e algumas pessoas com quem conversei aqui em Angola também têm a sensação de que alguns poderosos permanecem intocáveis. Um exemplo: o ex-vice-Presidente Manuel Vicente, acusado de pagar quase um milhão de euros de suborno a um procurador português. O senhor pessoalmente pressionou para que esse caso fosse transferido de Portugal para Angola, onde nada aconteceu desde então. Agora Manuel Vicente é basicamente seu conselheiro...
JLo: Ninguém pode dizer "eu não posso ser ouvido, ser constituído arguido, porque o meu vizinho também não foi." A Justiça não funciona assim. E se quer falar no caso Manuel Vicente, o que aconteceu é que nós pedimos, de facto, que o processo fosse transferido para Angola, e foi. E isso não significa absolvição. O caso está a ser tratado pela PGR, que há dias veio a público defender que quer o ex-Presidente da República, quer o ex-vice-presidente da República gozam de imunidade durante os primeiros cinco anos [após o mandado]. Daí o facto de eu ter dito há bocado que convém procurar conhecer um pouco a legislação angolana.

DW África: Talvez não tenha tentado, mas está a aconselhá-lo..
JLo: É falso. Eu não tenho esse senhor como meu conselheiro. Os meus conselheiros são conhecidos. Alguém acordou bem disposto e inventou isto. (...) Ele não é meu conselheiro para área nenhuma. O que se diz é que é meu conselheiro para o setor dos petróleos, mas isso é absolutamente falso. Não trabalha para mim, nem de forma remunerada, nem de forma gratuita. E há formas de se checar isso. Portanto, quem quiser checar tem a liberdade de o fazer. E há-de chegar à conclusão de que quem está a dizer a verdade sou eu. Aqueles que não queriam que o processo fosse transferido de Portugal para Angola é que inventaram esta mentira. Há quem não tivesse gostado da posição firme que Angola tomou no sentido de solicitar a transferência de Portugal para Angola. Mas, repito, a simples transferência de um processo de um país para o outro não constitui absolvição. Quem absolve são os tribunais. E que dizem se a pessoas cometeram crimes ou não cometeram crimes.

DW África: O senhor foi secretário-geral e ministro da Defesa também. Conheceu o ex-Presidente e trabalhou com ele durante um bom tempo. Porque não fez essas críticas durante aquele período?
JLo: Não, de facto eu trabalhei debaixo da orientação do Presidente José Eduardo dos Santos. Todos nós trabalhamos. Um Presidente que ficou quase 40 anos no poder. Ninguém pode dizer que não fazia parte do sistema. Todos nós fizemos parte do sistema. Mas quem está em melhores condições de corrigir o que está mal e melhorar o que está bem são precisamente aqueles que conhecem o sistema por dentro. Isso foi assim em todas as revoluções, se assim quisermos chamar.

Quem fez as grandes mudanças não são pessoas de fora, são as que conhecem o sistema. Quem fez as reformas na Rússia foram os russos; quem fez as reformas na China foram os chineses. Quem fez as reformas em todos os países da antiga Europa do leste foram os povos e políticos desses países. Os de fora começam por conhecer mal a realidade dos países e dos povos. Isso é assim em todo o mundo, quem fez a Revolução dos Cravos em Portugal foram os portugueses e aqueles que eram do regime de Marcelo Caetano.

É evidente que as oposições gostariam muito que fossem elas a fazer essas grandes reformas e transformações na sociedade, mas, no caso de Angola, não é assim que está a acontecer. Somos nós, do partido que sempre governou o país, que estamos a fazer as reformas que eram absolutamente necessárias que fossem feitas.


DW África: Disse que faz parte do sistema há muito tempo. Então, deve ter percebido que é um sistema bastante corrupto e é isso que os documentos [do "Luanda Leaks"] mostram.
JLo: Mas é precisamente pelo facto de eu ter assistido ao longo desses anos a esses níveis de corrupção, e por não concordar que a situação continuasse, é que hoje estamos a combater aquilo que vimos ao longo de décadas. Talvez fosse cómodo para nós deixar que a coisa continuasse como era antes. Mas seria correto? Seria em benefício do povo? Hoje temos a oportunidade de mudar esse estado das coisas, pensamos que é o momento de fazê-lo, Sabemos que é preciso muita coragem. Encontramos alguma resistência. Preferimos lutar contra ela do que nos acomodarmos e deixar que as coisas continuem como antes.


DW África: Algumas pessoas nos meios de comunicação social já lhe deram as alcunha de "exterminador" devido à sua dura postura contra a corrupção. Gosta desta alcunha?

JLo: Não, não gosto. Eu não estou a fazer mais do que deve ser feito, e é preciso que fique claro que os louros do combate contra a corrupção não devem recair apenas sobre o Presidente da República. Não seria justo que assim fosse. Os louros devem recair sobre todas as pessoas e instituições que se encontram em posições, das mais variadas possíveis, e que contribuem para que a luta contra a corrupção tenha sucesso, que em muito curto espaço de tempo estamos a ver que começa a ter. Estou-me a referir também a pessoas e a instituições que, antes de 2017, de forma muito corajosa, apontaram o dedo a práticas muito nefastas que prejudicaram o nosso Estado e o nosso povo de forma significativa. E até algumas pessoas foram parar nà prisão. Estou a referir-me a grupo de ativistas, jornalistas e fazedores de opinião que, de forma muito corajosa, enfrentaram o poder naquela altura. E o reconhecimento da sociedade a essas pessoas e instituições já chegou. Não podemos condecorar todos, mas, em nome dos outros, condecoramos ao menos um - estou-me a referir a Rafael Marques.

Vejamos então:

João Lourenço pretende acabar com a corrupção em Angola, pelo menos na extensão que teve durante o consulado de José Eduardo dos Santos. Meritório, sem dúvida alguma. 

Confrontado com a contradição de ter no actual poder algumas pessoas que também fizeram parte de tal regime anterior, diz claramente: todos participamos em tal regime e fomos coniventes com tal situação. 
Apontado o caso particular de Manuel Vicente, demarca-se e afirma nada ter a ver com o mesmo.
O entrevistador não lhe falou em mais ninguém...apesar de haver outros tanto ou mais implicados. 

Mas sobra o essencial: o actual regime angolano quer pôr cobro aos desmandos anteriores e ao sistema de corrupção anterior. Quem poderá negar o espírito positivo de tal atitude? 

Não obstante, o presidente Lourenço explica concretamente como é que fizeram agora para remediar erros passados: deram uma moratória de seis meses a algumas pessoas para reporem no erário público de Angola o que entenderam ter sido espoliado por tais pessoas. 

Uma delas é Isabel dos Santos e o actual PGR, general Gróz até já disse claramente o montante do "roubo": cerca de 4,5 mil milhões ( de dólares, de euros, whatever). 

Portanto, o que o actual regime pretende é a reposição do que foi "desviado", mesmo por decreto presidencial, como o presidente actual reconhece.

João Lourenço usa algumas expressões significativas para explicar o que estão a fazer em Angola: 

Todos nós fizemos parte do sistema. Mas quem está em melhores condições de corrigir o que está mal e melhorar o que está bem são precisamente aqueles que conhecem o sistema por dentro. Isso foi assim em todas as revoluções, se assim quisermos chamar." 

Portanto, trata-se de uma "revolução". E até faz o paralelo com a situação que se viveu em Portugal com o golpe de 25 de Abril de 1974:

"Os de fora começam por conhecer mal a realidade dos países e dos povos. Isso é assim em todo o mundo, quem fez a Revolução dos Cravos em Portugal foram os portugueses e aqueles que eram do regime de Marcelo Caetano."

Portanto, o que o presidente Lourenço pretende fazer é uma revolução por dentro, com particular incidência na corrupção e ainda mais particular atenção à família do antigo presidente Eduardo dos Santos. 

Repito: quem pode levar a mal tal intenção regeneradora e sanitária? Apenas quem se sentir afectado pela mesma...

No entanto, esta atitude radical esbarra em diversas dificuldades, algumas das quais também sentidas por cá na altura da transição do regime de Marcello Caetano para o dos democratas de inspiração marxista.  E os problemas são idênticos porque a natureza das intenções é a mesma: depurar o passado espoliando de qualquer maneira os que acusam de serem os responsáveis pela "corrupção", mesmo assumindo que fizeram parte de tal regime. 

As leis, incluindo a constitucional, assumem um valor relativo perante o mais alto valor que se alevanta e que no caso é o mesmo que por cá também foi: o jusiticialismo à outrance, a justiça sumária da revolução que se pretende impor, com um corte radical com um passado comprometedor e  com base no simplismo de que houve um "roubo". 
Alguns, mais afoitos tinham ido mais longe, afirmando filosoficamente com um certo Proudhon que "toda a propriedade é um roubo" e a legitimidade revolucionária estava simplesmente justificada por aí.

Em Portugal, durante o PREC foi exactamente essa a mentalidade que prevaleceu, com as nacionalizações: os capitalistas portugueses, monopolistas e exploradores da classe operária não tinham direitos; apenas deveres e o maior era o de "devolverem" o que roubaram ao povo que expoliaram, sob o mando da direcção política dos novos representantes do povo, no caso os marxistas de todos os partidos com assento parlamentar. 

Antes disso, porém, o novo poder em Portugal, particularmente o da esquerda comunista e socialista, tentou por todos os meios legais "julgar" o regime anterior, metendo na cadeia os fascistas. Prenderam alguns, tiveram que os soltar e no fim julgaram quase ninguém, expondo o ridículo da farsa. 

Até fizeram aprovar leis que insuspeitos juristas de quico na crista juraram serem plenamente constitucionais e mesmo sendo retroactivas eram "justas". Até um jurista falecido recentemente - Júlio Castro Caldas- considerou constitucional e válida a lei rectroactiva penal. Podem ler-se aqui, os considerandos sobre a lei celerada ( 8/75) e as vicissitudes para julgar o "fassismo".

Os "fassistas" não tinham direitos de defesa desse género...porque tinham atentado contra os direitos do Homem...

E foi assim em Portugal. Em Angola, os tempos são outros mas a mentalidade é exactamente a mesma: o desprezo pelas leis e pelo bom senso perante a justificação do que ninguém contesta: houve um roubo em Angola, durante décadas. Até a Ana Gomes o diz...e ela sabe porque foi do MRPP. Tal como a Morgado do MºPº, com idêntica mentalidade. O que pensavam aos 20 anos é o que pensam hoje, com a diferença de que já não acreditam no tal MRPP. A essência, porém, é a mesma e reside no intelecto, no fanatismo feito de inquisição, desde sempre. 

Percebe-se isto ou não? A mentalidade continua a mesma de sempre...

Ninguém se lembra de Nelson Mandela, pois não? João Lourenço tinha muito a aprender com ele...e a ingenuidade da "moratória" só vai trazer dissabores. Principalmente para nós que vamos ter de ver entrar outro regime do género no capital das empresas em que a dita Isabel dos Santos estava.

A cretinice do Expresso reside aí...


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