terça-feira, março 03, 2020

Morreu Jean Daniel, um guru da esquerda moderada

Jean Daniel, um dos fundadores da revista francesa Le Nouvel Observateur, actual L´Obs, morreu no outro dia e por cá pouca gente deu atenção ao facto.

A revista desta semana (27.2) dá-lhe uma honra de capa com número especial.


Não me lembro de obituários de relevo entre nós mas talvez seja útil recordar quem foi o indivíduo e que influência teve por cá, durante a "revolução de Abril de 1974",  particularmente na esquerda moderada de um certo PS.

Jean Daniel, enquanto jornalista que se queria intelectual ( Jacques Julliard scripsit na revista Marianne desta semana) influenciou a esquerda que tem uma matriz comum ( marxismo) e que optou há umas décadas pelo liberalismo nas questões de sociedade; reformismo radical nas económicas e progressismo nas sociais ( pró-aborto, pró-gays, e ultimamente pró-causas minoritárias).

Jean Daniel foi a alma da revista Le Nouvel Observateur que se fundou em 1964, sob o patrocínio intelectual de Sartre e Pierre Mendès France. Judeu, como este último, era tolerante e poderia ser considerado um "literato da política", na sua vertente de intelectual.

Jacques Julliard que lhe fez o obituário da Marianne desta semana ( 28 Fevereiro) resumia assim:


Um dos intelectuais franceses que acompanhou o caminho de Jean Daniel, Bernard Henri-Lévy também escreveu neste número especial de homenagem, assim, mostrando a influência que teve em Portugal naquela altura, particularmente em Mário Soares de quem se dizia que as suas opiniões sobre política estrangeira dependiam da visão de Jean Daniel, ou coisa que o valha. Os "capitães de Abril", provavelmente um Melo Antunes ou um Vítor Alves porque um Otelo ainda nem sabia ler, também esperavam os editoriais de Jean Daniel para terem ideias sobre certos assuntos.



E que ideias eram essas, em 1974 e 1975 que Jean Daniel e a então Le Nouvel Observateur dispensavam aos leitores, incluindo aqueles, muito atentos, em Portugal?

Quando ocorreu o golpe de 25 de Abril, o primeiro número que saiu do Le Nouvel Observateur foi já na segunda semana de Maio e a capa nem fazia referência ao assunto porque era toda dedicada à política francesa de Giscard D´Éstaing e o modo de o evitar nas eleições próximas. Tiveram azar porque acabaram mesmo por o ter durante alguns anos. "L´ami Miterrand" só apareceria meia dúzia de anos depois.
Dentro havia duas páginas assinadas pelo repórter René Backman, com o estribilho da euforia em que o jornal República passou a vender 120 mil exemplares em vez dos 40 mil habituais e os entrevistados eram todos da esquerda reaparecida à luz do dia revolucionário.




O número seguinte da revista já trazia uma entrevista a Mário Soares, breve mas promissora...conforme resulta da republicação efectuada pela revista no seu número de comemoração dos 40 anos, em 2004.
O que dizia então Mário Soares sobre o país? "O fascismo foi atingido mas a sua base social está intacta: o baronato político-corporativo continua. Nove grupos económicos e financeiros controlam quase toda a economia portuguesa".

Está aqui todo o programa político-económico de Mário Soares e a causa da destruição de todo o tecido produtivo capitalista em Portugal a nível de grandes indústrias, bancos e seguros. A diferença entre esta visão e a dos comunistas é nula e revelou-se em Março de 1975 com as nacionalizações apoiadas por Mário Soares.
É isto o herói da democracia: um padrinho das bancarrotas...


Não sei o que seria se a França em Junho de 1974 tivesse eleito  Mitterrand em vez de Giscard. Mitterrand estava colado a Giscard em sondagens, mas perdeu. Se tivesse ganho, em vez do director do L´Express, JJ Servan Schreiber como ministro das Reformas talvez tivesse sido Jean Daniel...

Seja como for, Mitterrand propunha ao eleitorado nacionalizações em programa comum com uma esquerda que pretendia passar nove grandes empresas para o controlo do Estado e também nacionalizar o crédito, tal como se fez depois, em Portugal.

Sabemos que Mitterrand, meia dúzia de anos depois, mesmo com a experiência de bancarrota de Portugal, em 1976, nada esqueceu e pouco aprendeu. A não ser quando viu que se preparava uma fuga maciça de capitais e então recuou...mas já eram os anos oitenta.

Talvez se tivesse ganho e tivesse feito a asneira que por cá se fez, nós aprendêssemos...mas isso é tudo menos certo.

Esta página da L´Express de 6 de Maio de 1974 explica "l´enjeu", o que estava em causa na eleição:


Nesse mesmo número de L´Express uma página assinada por Jean-François Revel explicava os equívocos dessa esquerda que era também a de Mário Soares e nos arruinou a esperança de décadas melhores, a seguir:


Só me questiono porque razão em Portugal, depois de décadas a combater o comunismo e o esquerdismo socialista, a sociedade portuguesa em geral e em eleições acabou por entregar o país a tal ideologia...e só concluo que não estava suficientemente informada como os franceses estavam e o artigo de JFR o revela. Numa única frase revela o drama dessa esquerda : "querem tornar a sociedade mais justa mas não percebem como ela funciona"...

Também a análise da revista sobre o que tinha acontecido em Portugal dias antes, se revelava mais sensata e acertada, sem compromissos ideológicos tão marcados como no Le Nouvel Observateur:


Obviamente esta notória diferença ideológica denotava a influência marxista no Le Nouvel Observateur que era um viveiro de tal peste ideológica, desde o tempo de Sartre.

O aparecimento da revista foi evocado por altura dos 40 anos da publicação, em Novembro de 2004. Assim:


E o primeiro artigo de Sartre no primeiro número, não deixava qualquer dúvida:


Em 16 de Junho de 1974 a revista explicava o que era o radicalismo esquerdista que originou os Blocos e Livres da actualidade e que mostram o carácter fóssil de tal ideologia revelha e gasta mas que continua a apelativa a papalvos.


E como é que dei conta disto?

No Outono de 1973 estalou uma guerra no Médio Oriente que opôs árabes e judeus, o que não sendo novidade pelo menos desde os famigerados seis dias de 1967, teve uma inovação: os judeus israelitas foram atacados de surpresa num dia de descanso, no Yom Kipur e conseguiram ripostar de modo eficaz, esmagando novamente o poder árabe.
Tal como em 1967 a reacção deles foi fulgurante e abafou as veleidades árabes. Ler algo sobre isso tornava-se empolgante e foi então que comprei pela primeira vez  Le Nouvel Observateur e também  L´Express, ambas do mesmo lado: dos judeus porque os respectivos directores eram judeus...

Duas capas, ambas de 15 de Outubro de 1973. A melhor capa era a do L´Express e não sei se comprei as duas no mesmo dia ( 25$00 e 20$00 respectivamente; a esquerdista era mais cara...):


Ao folhear a primeira deparei com outros artigos interessantes e que me prenderam a atenção. O primeiro era uma recensão da biografia de Hitler por Joachim Fest. Um must have que só tive décadas depois e num alfarrabista, por 15 euros...mas o interesse também residia na caricatura de David Levine.


Curiosamente a L´Express também dedicou páginas ao tema, reproduzindo passagens do livro mas...num número seguinte, de 12 de Novembro de 1973 que comprei por causa de uma capa alarmista: o petróleo era a causa e que nos influenciou nas décadas a seguir. E assegurar a paz naquela região do Golfe era muito importante, tal como hoje.
Quanto aos efeitos da guerra, a inflação veio a seguir e o 25 de Abril dali a alguns meses...




Quanto a esse primeiro número que comprei de Le Nouvel Observateur,  para além dos relatos da guerra e da recensão ao livro de Joachim Fest, tinha um artigo desenvolvido sobre...as multinacionais. Uma novidade...que sublinhei nalgumas passagens. Por exemplo uma que nos poderia ter esclarecido alguma coisa na altura, sobre o sindicalismo e o esquerdismo comunista.





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