As notícias, logo pela manhã já apresentavam obituários de páginas completas e virtuais. Num deles até aparecia o nome de René Goscinny como filho dele...coisa entretanto corrigida porque parecia mesmo mal e sinal inequívoco da ignorância mais crassa. E no entanto as informações sobre o artista abundam, vindas de nenhures porque em nenhum lado que se leia poderá saber-se de onde veio o acervo de informação. Nicles, tudo de ciência infusa e cópia assegurada, evidentemente e sem qualquer pejo de vergonha ou algo que o valha.
Copiar, copiar da internet é o ofício deste novo jornalismo...enfim.
Neste sítio, o autor Luís Salvado até indica que Uderzo foi artista que apareceu por cá logo nos anos sessenta, com o duplamente "irredutível" Astérix. Sem dizer de onde obteve tal informação e sem citar qualquer fonte para as partes de entrevista ao falecido que aparecem vindas do nada. Um nadir ético e deontológico. Deve ser isto que ensinam agora nas madrassas do jornalismo nacional:
O irredutível guerreiro gaulês apareceu pela primeira vez em Portugal, nas páginas da revista Foguetão, no dia 04 de maio de 1961. Foi publicado ainda em revistas como Cavaleiro Andante, Zorro, Tintin, Flecha 2000 e Jornal da BD.
Portugal foi o primeiro país não francófono a publicar as aventuras do pequeno gaulês e do seu amigo Obélix, na defesa da irredutível aldeia contra as tropas romanas de Júlio César, com a ajuda de uma poção secreta.
Em 1967, foi editado o primeiro álbum de Astérix em Portugal: "Astérix, o Gaulês".
Evidentemente que toda esta informação anda à solta na internet nos sítios mais variados. Ora que interesse tem repetir, sem sequer indicar a fonte, a informação que se pode ir buscar aos sítios de origem? Não sei que jornalismo é este, de cópia sistemática de trabalho alheio sem indicação de cortesia. Plágios descarados, roubos evidentes, é esta a ética. Não há direcções editoriais para pôr cobro a isto ou afinal até estimulam tal prática?
Enfim, vamos a isto.
Comecei a comprar o Tintin, edição portuguesa no início de 1972 por causa de Uderzo. Explico:
Foi esta capa vista nos escaparates que me levou a comprar a revista dali a algumas semanas.
A capa tinha pouco a ver com Uderzo, no entanto. O desenho era de Yves Thos, conhecido e vizinho de Uderzo e mostrava uma dupla de heróis que eram então desenhados por Jijé ( Joseph Gillain, de origem belga) publicados nas páginas da revista, com as aventuras de Tanguy e Laverdure na Luta no Deserto a que se seguiram outras
A imagem mostrava os artistas que apareciam então nos écrans de tv, ainda a preto e branco ao Sábado à noite nos episódios dos Cavaleiros do Céu, como mostra esta página da R&T de Julho de 1971.
Ora isso é que eu gostava de ver...e ao olhar as imagens exactas dos artistas da tv fiquei intrigado e folheei a revista. Eram mesmo eles...
Esta série no entanto começara a publicar-se em desenhos, muitos anos antes, numa revista francesa que começou exactamente com tais episódios em 1959. E Uderzo era o autor original, que a desenhou até 1966. Portanto, em 1972 já nem era o artista dos desenhos que me intrigaram.
A revista que publicara tais desenhos era a Pilote e Uderzo estava lá quando foi lançado o primeiro número, aqui mostrado numa imagem tirada do livro Les Années Pilote, editado pela Dargaud em 1996:
Uderzo foi um dos pilares da revista Pilote, desde o seu começo, a par de René Goscinny e Jean-Michel Charlier.
O mesmo livro em entrevista ao artista explica como surgiu a ideia e apareceu a historieta que o celebrizou, Astérix, em meados dos anos sessenta quando tudo indicava que a série do Tanguy seria porventura mais interessante para os leitores da época:
A partir de 1965 foi o delírio: 30 mil, 100 mil e 300 mil exemplares em pouco tempo, na venda de álbuns da personagem emblemática.
Assim, foi com aquele Tintin, por causa da série Tanguy e Laverdure desenhada por outros que comecei a reparar nos desenhos de Uderzo na série Astérix.
A revista Tintin, na edição nacional começada em 1968 reunia o melhor da congénere belga, original e também o que a Pilote francesa tinha a oferecer de melhor, como Lucky Luke, Blueberry e Astérix. As historietas apareciam cá com um intervalo de alguns meses, por vezes mais de um ano.
Nessa altura do início de 1972 ainda se publicava na revista a história de Astérix e os Normandos e uma capa, de Março desses ano mostrava uma imagem que ainda hoje considero de antologia na ilustração da água do mar e da autoria de Uderzo.
Porém, não eram as historietas de Astérix que me captavam a atenção nessa altura, na revista. Havia outras mais interessantes, como as de Bruno Brazil ou Lefranc.
Depois de terem acabado a historieta sobre os Normandos, que é de 1966, Goscinny e Uderzo fizeram outras e em 1970, publicada por cá no Tintin de 1972, esta: a Zaragata, com o título original La Zizanie. Fabulosa! A personagem impagável e caricaturada de Tullius Detritus vale a pena a leitura, só por si.
Depois disto não deixava de ler o Tintin, o que fiz até 1974 e as historietas do Astérix que apareciam sempre na revista, umas a seguir ás outras.
Devo confessar, porém que não sou especialmente adepto da série e nem sequer tenho qualquer álbum completo, para além das histórias avulsas que apareram na revista Pilote e depois na Tintin nacional.
Há uns anos Uderzo reformou-se do desenho da série que continuou com outros autores, particularmente Didier Conrad, outro virtuoso do desenho e impressionando no modo como imita o mestre Uderzo agora desaparecido.
Esta página é da revista Casemate, de 2015 e segundo o autor demorou uma semana a fazer:
Em Portugal, logo no início dos anos sessenta a revista Cavaleiro Andante publicou as primeiras historietas da série.
Aqui no número 510 de 7.10.1961, nem sequer traz o nome dos autores da primeira delas, Astérix, o gaulês.
Este é o desenho original, de Uderzo, na primeira página da primeira aventura, tal como publicado num supplemento especial da revista L´Express de 2017, consagrado à "Arte de Astérix":
ADITAMENTO em 25.3.2020:
Os jornais Público e Correio da Manhã fizeram o respectivo obituário, tiveram todo o dia de ontem para o fazerem e o resultado é este:
A informação é toda copiada, com excepção do truque habitual do Público: convidar um ou dois "especialistas" nos assuntos e perguntar-lhes algo sobre o que não sabem. E então repete-se o mantra: se não sabe, porque pergunta?!
No caso do Público é notória a confusão, mesmo do "especialista" de serviço, Pedro Moura: "A série Astérix foi um sucesso quase imediato, assim que começou a ser publicada em 1959".
Vejamos: nos recortes que ontem publiquei aqui, tirados do livro da Dargaud, de 1996, contendo a história detalhada da revista Pilote, desde a sua primeira publicação em 1959 fica claro e explícito até pela entrevista de Uderzo que a série Astérix era no início, "uma série como as outras". Só em 1965, meia dúzia de anos depois se tornou o estrondoso sucesso que veio a ser. Portanto...basta ler os recortes.
Em tempos de internet e de jornais em crise muito por causa disso, a solução do Público é dedicar duas páginas pretensiosas com transcrições copiadas e eventualmente plagiadas da internet, dos inúmeros sítios dedicados ao tema.
Pior: nem sequer são originais porque a cartilha jornalística da sensaboria noticiosa está aí toda espelhada.
Mais grave ainda: não se dão ao cuidado de indicar as fontes onde foram buscar a informação nem sequer referem sítios ou modos de saber mais. Publicam tudo como se fosse original e da lavra dos próprios. É assim, o jornalismo actual, em Portugal?
Queixam-se da crise e da falta de leitores e nem se dão conta da mediocridade que a provoca.
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