No tempo em que frequentei o ensino secundário na primeira metade dos anos setenta do século que passou, a Filosofia era disciplina que se ensinava em dois anos, no 6º e 7º, correspondentes hoje ao 10º e 11º.
O manual escolar que era seguido chamava-se "Compêndio de Filosofia", da autoria de J. Bonifácio Ribeiro e José da Silva e publicado pela Livraria Popular de Francisco Franco.
Quem não seguia pela via das Letras ficava por aí nos ensinamentos filosóficos de base. E depois, se quisesse lia o que entendia dever ser lido.
A pergunta que se suscita agora, depois de uma pequena discussão acesa de equívocos na caixa de comentários assenta num pressuposto: é possível conhecer as bases filosóficas fundamentais apenas com estes ensinamentos básicos ministrados em idade escolar?
Por mim, julgo que sim e basta consultar o manual em causa. Das duas, uma: ou é um manual adequado a tal conhecimento básico ou é um acervo de asneiras sem eira nem beira e num tertium genus improvável, um manual desactualizado e por isso imprestável.
O livro começava por dar a noção do que seria a Filosofia, aceitando uma definição de Foulquié ("a ciência do espírito do homem e de tudo aquilo que esse espírito é capaz de conhecer para além do domínio sensível") e mostrava o que seria a visão clássica e metafísica- tomística e aristotélica: "a filosofia procura explicar toda a realidade pelas causas mais remotas que a razão pode atingir". Por último mencionava a visão moderna, onde incluía um filósofo de Koenisgberg, criador do "criticismo", atribuindo-lhe o desiderato de ir além dessa concepção aristotélica-tomística, "quase a confundindo com a ciência e reduzindo-a ao estudo dos problemas cuja solução as próprias ciências exigem".
Kant era esse filósofo do séc. XVIII que escrevera obras de Crítica da razão pura, Crítica da razão prática, Fundamentos da metafísica de costumes e outras. Era considerado como negando à razão a possibilidade de atingir as causas primeiras da realidade e focado apenas na filosofia das ciências, no estudo dos problemas da ciência e portanto caberia à Filosofia a função de fundamentar as ciências e de as coordenar.
A Filosofia era então apresentada em "divisões", incluindo a psicologia experimental, a lógica, a moral, a estética e a teoria do conhecimento, para além da metafísica, num capítulo à parte e dividida em geral, sobre a ontologia e a especial que incluía a cosmologia, a psicologia racional e a teodiceia.
No que se refere à "moral" definia-se tal como a que" estabelece as normas que devem dirigir a actividade voluntária da prática do bem".
A distinção fundamental entre filosofia e ciência encontrava síntese na afirmação de que "a filosofia é um sistema coordenador e unificador de todas as leis científicas por princípios mais gerais". "Um sábio nunca é demasiado filósofo" e vice-versa. As ciências contentam-se com o como são as coisas; a filosofia pronuncia-se sobre o que elas valem em relação ao homem e para que deverão servir.
Nas ciências do "espírito" sobreleva o estudo do homem, um estudo portanto antropológico em modo positivo ou normativo, neste caso se incluindo o estudo da moral que tem como ideal o bem.
Atenta a especial dificuldade no estudo do homem e particularmente em virtude da natureza específica dos fenómenos do espírito, as conclusões e certezas são sempre relativas e apenas morais ou psicológicas, o que é tanto mais verdadeiro no que se refere ao estudo das ciências normativas, em que se inclui a moral. O método de tal ciência é espinhoso para se atingir a verdade ou o bem, como ideal.
Para se centrar o problema do conhecimento, uma das divisões importantes da Filosofia, há a "teoria do conhecimento" que equaciona a possibilidade de se obter tal saber na sua origem, natureza ou essência bem como o respectivo valor, limites e ainda o problema da verdade como objecto de tal estudo.
O resultado seria uma representação de alguma coisa distinta do sujeito que conhece. A teoria do conhecimento é por isso a gnoseologia que aquele filósofo de Koenisgberg entendia como sendo o problema fulcral da Filosofia porque será a base da metafísica e da moral, fundada aliás na metafísica, ou seja, na existência de certos princípios transcendentes.
Era assim que se ensinava nesse tempo e por isso resumo o estudo ao que interessa: "a moral de Kant não é a mesma da religião cristã"- foi uma asserção que me ocorreu.
Será verdadeira tal afirmação, segundo a teoria do conhecimento?
O que é que Kant diz a propósito da origem do conhecimento? Segundo o manual diz que o conhecimento se reduz ao juízo e estes podem ser analíticos ou sintéticos e nestes há os "a priori" e os "a posteriori" de acordo com a sua obtenção pela razão ou pela experiência. E portanto a ciência só se torna possível através de juízos sintéticos a priori que são universais e necessários.
O conhecimento será a síntese de um elemento a priori, subjectivo, universal e necessário- a forma- criada pela sensibilidade e entendimento e de um elemento a posteriori, singular e contingente- a matéria- que deriva da experiência. O conhecimento é a aplicação dos elementos a priori aos que a experiência forneceu.
Kant estudou por isso os elementos a priori- sensibilidade, entendimento e razão. No que se refere à razão, como todo o conhecimento é uma construção do espírito, no qual o objecto conhecido é construído pelo sujeito mediante a junção dos dados a priori aos da experiência, o conhecimento só atinge as nossas modificações subjectivas e não alcança a realidade. Essa realidade a que chama nómenos não é apreendida uma vez que apenas se alcança a aparência da mesma, ou seja o que chama fenómenos. O que conhecemos é uma realidade criada pelo sujeito conhecedor e não necessariamente a realidade objectiva.
Ora como a metafísica tem como objecto o estudo da essência da realidade, ela é inacessível, segundo a razão teórica.
Diz o livro que na razão prática Kant admite-a como postulado da moral.
E que diz kant sobre a natureza do conhecimento? Sendo também um idealista( reduz a realidade ao pensamento) diz que só podemos atingir os fenómenos através do nosso conhecimento e não os nómenos e por isso "fora do conhecimento não há nada que possamos opor a este e que lhe corresponda". O conhecimento é uma interpretação subjectiva da realidade que aliás admite existir mas inacessível por essa via.
E por isso qual o valor e limites do conhecimento para Kant? É tudo relativo...não terá valor absoluto porque o conhecimento sensível através das percepções não atinge a realidade em si e depois porque estas ainda são interpretadas pelas formas subjectivas dos a priori. No entanto, na razão prática irá contradizer-se algo a este respeito.
E chegamos ao ponto sobre a Ética, ou seja a Moral ou seja ainda a "ciência dos costumes".
Qual a moral de Kant? Pois diz o Bonifácio que não se baseia nem na metafísica nem na ciência. A moral é autónoma, não tem outro fundamento que ela mesma. "O homem, através da razão prática, cria as suas leis morais que se impõem à vontade como imperativos categóricos, dignos de todo o respeito e por isso de obediência."
Para Kant a lei fundamental do bem e da moralidade é a boa-vontade que consiste em bem querer, em agir de harmonia com os imperativos categóricos. Assim não haverá actos em si mesmo bons ou maus porque dependem intrinsecamente da vontade que é absolutamente autónoma.
A vontade tem dose tríplice: é princípio, sujeito e objecto da moralidade e é ela que livremente cria o dever e lhe obedece de modo a procurar sempre ser mais recta e mais livre. O ideal moral é esse.
A moral de Kant é puramente formal pois tem em conta apenas a intenção do acto e não a matéria ou conteúdo do mesmo. O princípio será: "procede em conformidade com a lei" ( daí que os jacobinos confundam ética com lei). E daqui derivam três máximas e uma delas é bem conhecida:
" procede sempre de tal modo que a norma da tua acção se possa transformar em lei universal".
Em que é que Kant pressupõe a existência de um Deus, nesta acepção? Pois como postulado. Kant admite a sanção metafísica para quem é "imoral" por uma questão de justiça.
Qual o catch? Só um: kant torna Deus servo do homem que afinal criou a moral pela razão. A metafísica em Kant não é o fundamento da moral mas o contrário: a moral é que fundamenta a metafísica.
Deus, em Kant, surge como uma exigência do homem para o recompensar ou castigar relativamente a leis que não derivam d´Ele, mas do homem.
Quem diz moral diz "ético", neste caso.
E qual é a moral cristã?
Pois é um pouco mais elaborada e de maior riqueza porque parte do pressuposto que o homem não é apenas razão mas também sensibilidade. A moral cristã faz consistir o bem do homem na satisfação de todas as suas aptidões. É uma moral racional a que se acrescenta a sensibilidade que a auxilia como forma de atingir a felicidade, servindo o interesse geral e desenvolvendo o espírito de fraternidade para com todos.
A moral cristã adopta as moutras concepções acrescentando-lhe esse plus, o da virtude tendo em atenção que a finalidade do homem é Deus.
Para tal o homem deve condicionar o procedimento a certas normas absolutas e imutáveis e universais que são as leis morais e o critério para tal é o da finalidade ou bem supremo: é bom para o homem a acção que não o afasta do seu fim.
É uma moram imanente e transcendente: vai buscar o motivo do bem e do mal a Deus e tal se impõe à nossa vontade.
A moral cristã é expressão de um imperativo categórico baseado na vontade de Deus e não apenas da razão humana.
E como? Para além da fraternidade aparece a caridade como dever e é uma moral de perfeição, nos desejos e pensamentos.
Obviamente para quem não acredita em Deus, a moral é a ética. E pode ser a de Kant e até tem sido...
Para mostra e ilustração ficam aqui as páginas sobre a "Moral de Kant" e a "Moral Cristã".
Sobre a "consciência moral":
Páginas de um livro de Iniciação ao Filosofar, de Joel Serrão, da Livraria Sá da Costa, de 1970-74, com uma passagem da Crítica da Razão Pura em que Kant explica o que são as dificuldades em conhecer as coisas...
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