sábado, fevereiro 25, 2012

Venham mais cinco...fruteiras. E um capote para o frio..



No documentário que a RTP1 consagrou à efeméride dos 25 anos da morte de José Afonso, da autoria de um improvável Joaquim Vieira ( mas nem tanto porque é autor de uma fotobiografia do artista), há uma característica que é denominador comum da arte de José Afonso: genial. Artisticamente genial, dizem alguns dos intervenientes no documentário. Também concordo com a qualificação, sem reservas.
No entanto, o documentário centra muita atenção em aspectos da vida pessoal e privada do artista, designadamente familiares.

José Afonso, segundo os conhecidos da época, entre os anos cinquenta e sessenta, era essencialmente pobre. Necessitado. Carenciado de meios económicos. O pai era juiz, na jurisdição ultramarina e ganharia pouco, porque os magistrados antigamente eram muito mal pagos. Tinham casa de função e eram obrigados a andar com as trouxas às costas, por vezes literalmente, de seis em seis anos. Ainda por cima, o pai de José Afonso foi um pai ausente, eventualmente por necessidade. Esteve em Angola, Moçambique e Timor e os filhos sofreram muito com isso, particularmente José Afonso que cedo despertou para a arte musical.
Nos primeiros anos da década de cinquenta, casou-se com uma costureira de origem humilde e sem meios económicos. Como os dele eram também parcos e sobrevivia ensinando particularmente, em explicações e em trabalhos ocasionais ( revisão de textos num jornal local, de Coimbra), viu-se por diversas vezes em apertos financeiros.
Para completar os dias de alguns meses demasiado longos, o casal obrigou-se a recorrer ao prego, às lojas de penhores.
Como conta um amigo antigo, no documentário, a única peça que o casal tinha com algum valor venal era...uma fruteira, em vidro, com base em latão. Oferecida pelo casamento.
Pois foi essa fruteira que serviu o prego diversas vezes, segundo conta o amigo e que coloriu a narrativa com o pormenor de ambos ficarem a ver, da janela de casa, a mulher de José Afonso, grávida, com a peça vidrada, embrulhada a caminho do prego. Então comentava para o amigo, em tom jocoso que se calhar era melhor ser ele a lidar com tal tarefa para o ouvir dizer que não tinha jeito para essas coisas.

Outra pequena história sobre José Afonso foi contada noutro local e revela o mesmo género de desprendimento das coisas materiais. Um dia, no final dos sessenta ou já nos setenta, José Afonso ia cantar à Holanda e precisava de roupa quente. Como não tinha sobretudo, pediu um emprestado a...Manuel Alegre. Porque lhe tinham dito que por lá fazia frio. Este cedeu-lhe o melhor que tinha para o ver pouco tempo depois do regresso. Ao ver o estado lastimoso do seu agasalho emprestado parece que terá comentado que o capote parecia ter andado na guerra do 14...
São estes pequenos pormenores, para além de outros, pessoais, da vida de José Afonso que contrastam com a retórica ideológica de firmeza de princípios contra a "burguesia", o "grande capital", a "luta armada" e o "poder popular" e outros refrões cantados e proclamados em entrevistas que ajudaram a formar toda uma esquerda portuguesa que o admira e propõe como símbolo de uma "luta de classes" que ainda não esqueceram e cuja actividade artística assume apenas o fenómeno lateral de uma circunstância.

Quase todos os intervenientes no documentário salientam esse aspecto que se sobrepõe à genialidade musical. Muitos desses intervenientes acreditaram nos mesmos princípios e proclamações de guerra à burguesia e ao capital, guerra armada e aos tiros e bombas. Aliás, ainda acreditam e não se descosem com a frustração.

José Afonso foi efectivamente um génio musical cuja vida pessoal foi um autêntico fracasso segundo os cânones de sucesso burgueses. Mas não só: os filhos, muito pequenos e após o divórcio da primeira mulher, foram recambiados para os avós paternos, em Moçambique. José Afonso não tinha meios para os sustentar...
Será preciso melhor metáfora para a esquerda utópica portuguesa?

6 comentários:

Floribundus disse...

conheci-o de vista em Coimbra
cantou em 1971 na Mutualité em Paris.
estaVA lá um coro de comunas portugueses que o assobiou constantemente.-
senti-me envergonhado de semelhante afronta a um caNTOR PORTUGHUÊS.

em relação a mim estava politicamente nos antípodas

josé disse...

Também esse episódio é contado no documentário.

Floribundus disse...

conheci-o como 'bicho-cantor'. também conheci a Amália. apoucavam-no os tradicionalista do fado.

eu tinha boa amizade com António Pinho de Brójo e mais tarde alguma ligação com António Portugal quando este era delegado de informação médica. estes levavam-no a sério.

em Paris entre os seus apoiantes pareceu-me ver Moisés Espírito Santo, ao tempo animador cultural em Saint-Denis.
estavam comigo os meus amigos do semanário 'Rouge' e a minha amiga Margot. eu e a dita baiana iamos aos sábados à noite para a Place du Tertre 'causer e boire un verre de Beaujolais'
um comuna destrui-me 200 exemplares do Rouge que me propunha doar à BNP

hajapachorra disse...

tive muitos anos depois a mesma senhoria na rua dos combatentes e sempre lhe ouvi muita tristeza a respeito do genial cantautor; a propósito, e como homenagem, fazei o favor de ouvir esta belíssima recomposição do ainda mais genial Joaquim Santos com uma magnífica interpretação dos ança-ble:
http://www.youtube.com/watch?v=H6t5B3ILWik

hajapachorra disse...

E mais esta, pelos mesmos artistas:
http://www.youtube.com/watch?v=Ob8Mp_ivTCE

josé disse...

Muito bom mesmo, o arranjo de Joaquim dos Santos, da canção de embalar.

O Público activista e relapso