sexta-feira, julho 03, 2020

Amália: estranha forma de vida

Surgiu agora uma espécie de movimento reabilitador do  nome de  Amália, a fim de o colocar no panteão antifassista.

Através de uma revisitação histórica manipulada, o jornalista Miguel Carvalho, indivíduo notoriamente de esquerda e próximo do PCP, pretende reabilitar a cantora Amáluia Rodrigues, limpando-lhe todo o verdete fassista que a mesma sempre poliu, sem grande pudor, aliás.

Num artigo do Jornal de Negócios desta semana dá-se conta do livro daquele jornalista escrito para tal efeito e destinado a contar "a história secreta" que é apenas isto: Amália durante o Estado Novo, ao mesmo tempo que se deixava aproveitar pelo regime, ajudava os pobres comunistas que podia, a fugirem à desgraça da PIDE e depois de ajudar tais desvalidos a escapar "à fome, à guerra, à prisão e à tortura" recolhia-se a penates e fazia a sua vidinha de sempre.



Enfim, uma lenda cuja realidade será certamente outra e portanto um livro repleto de fake news convenientes ao discurso antifassista de recuperação  e aproveitamento político de uma artista singular no nosso pobre panorama.

A realidade é mais simples que a ficção e diz-se em poucas palavras: Amália, a cantora genial da voz singular,  era apenas mais uma oportunista por força da personalidade e circunstâncias. Como muitos o são, mesmo os antifassistas de gema.

Senão repare-se:

Quando Salazar teve o acidente, em finais de Agosto de 1968  que lhe provocou o hematoma que acabou por o incapacitar, dias depois, com a ocorrência de outro acidente, dessa vez vascular cerebral,  esteve uns dias lúcido e recebeu visitas importantes no hospital ( Casa de Saúde da Cruz Vermelha, em Lisboa).
Amália não foi lá mas enviou uma cesta com botões de rosa e uns dizeres em verso quadrado que mostram bem a afeição pessoal que tinha por Salazar.
Está contado no livrinho recente de José António Saraiva, sobre o mistério da cadeira partida que afinal nunca existiu.


Em 1968 Amália não era antifassista pela certa e nunca o foi, nem antes nem depois. Aproveitou as ondas mas dessa vez não teria necessidade alguma de enviar rosas ao então presidente do Conselho juntando-lhe os versos de pé quebrado e coração partido, sem dúvida da sua pobre autoria.

Bastaria este episódio para o jornalista, autor do livro, ter algum pudor pelo que escreve e refrear o branqueamento político, mas há mais.

Amália foi grande artista nos anos sessenta, em pleno Estado Novo tardio em que os movimentos de oposição já tinham mostrado ao que vinham: derrubar o regime, se pudessem, para o substituir pela ditadura comunista que preferiam claramente e na altura, por mor da censura não foi possível denunciar de modo eficaz.  Nunca puderam e não foram eles que o derrubaram, a tal regime que tinham por hediondo e ainda hoje tem, como denota este pobre livro. Foi a tropa por motivos ínvios conduzindo ao oportunismo político do PCP e esquerda em geral.

O grande disco de Amália, a sua obra prima, costuma ser indicada como sendo esta, de 1962. Um busto em efígie de fado a cantar ( imagens tiradas do discogs, ou seja sítio de discos usados de pessoas que os querem vender):



É neste disco que está gravado o Povo que lavas no rio e a Estranha forma de vida, composições efectivamente geniais e cantadas do mesmo modo.

Não obstante, este disco e outros anteriores e posteriores desta artista nunca impressionaram os antifassistas comunistas e esquerdistas em geral.
Amália era uma artista de variedades que também cantava fado e tornou-se a maior artista nacional, com espectáculos em todo o mundo porque tinha valor para tal. Nada ficou a dever a qualquer regime quanto a tal sucesso comercial e artístico. Tinha valor próprio.

Porém, o fado e as variedades, antes de 25 de Abril de 1974 e principalmente depois, eram géneros menores e apreciados pelo povo da arraia miúda que também gostava da Hermínia Silva, da Lenita Gentil ou da Tonicha ou até do Fernando Tordo dos primórdios que cantava coisas sobre o "café" e ouras touradas.

Quando surgiu o movimento das cantigas de intervenção política, nos finais dos anos sessenta, Amália não estava lá, porque  nunca esteve. Antes pelo contrário,  continuava a cantar em espectáculos pelo mundo inteiro onde cobrava "cachets" de luxo e condizentes com o estatuto artístico.

Por isso, em 1974 quando surgiu a revolução, Amália, como outros, adaptou-se. Como tinha os rabos de palha da ligação ao regime anterior, por ser uma grande artista e ter sido de algum modo aproveitada politicamente ( como agora acontece com todo o artista da cantoria ou do atletismo ou mesmo na enfermagem inglesa que no exterior  mostram a bandeira nacional) recatou-se nos primeiros tempos.

O antifassismo não esqueceu quem era então Amália e o que representava e ignorou-a ou vilipendiou-a, nos media da época.

Um pequeno exemplo, tirado da revista Mundo da Canção ( uma revista orientada por comunistas)  de Maio de 1974.


Como é que Amália lidou com isto e o perigo de se tornar persona non grata do novo regime? Adaptou-se e continuou com essa estranha forma de vida que sempre foi a sua. Assim, logo em 1974:




Contudo Amália nunca poderia concorrer e adaptar-se completamente neste ambiente dos primeiros meses de 1974, com estas amostras retiradas da revista Cinéfilo nos dois meses posteriores a 25 de Abril de 74. Por isso declarou-se "analfabeta" logo que lhe perguntaram algo sobre o assunto:




Perante esta onda avassaladora de revolucionários das cantigas de intervenção, até empresários de espectáculos do antigo regime se tentaram adaptar. Foi o caso de um Vasco Morgado, coitado que foi logo corrido do convívio democrático destes novos heróis...


O pequeno mundo artístico português passou a ser dominado por este tipo de artistas de gabarito político: os comunistas de sempre.




E de resto, nessa altura as preocupações era outras: entregar logo, de imediato as nossas então províncias ultramarinas aos amigos políticos dos novos artistas, ou seja os comunistas e esquerdistas em geral.


Amália nunca foi deste mundo. E quem quiser agora reescrever a história para a incluir, falsifica-a, prestando um mau serviço, escrevendo um mau livro.

Desesperada pela ausência de reconhecimento, em 1975 Amália dedicava-se novamente a isto:


Portanto, tenham ao menos uma réstia de pudor e deixem a artista descansar em paz no panteão onde a colocaram.

Aliás, Amália Rodrigues foi logo reabilitada, política, artistica e pessoalmente, durante a década de oitenta.

Em 9 de Julho de 1980 o jornal Sete mostrava tal reabilitação plena: a consagração de Amália num espectáculo no S. Luís, organizado pela Câmara Municipal de Lisboa, com a presença de mais dois fadistas lendários já galardoados- Alfredo Marceneiro e Hermínia Silva- e a quem foi concedida a Medalha de Ouro da Cidade.
A homenagem contou ainda com a presença de vários poetas entre os quais, Pedro Homem de Melo, Alexandre O´Neill, Ary dos Santos e David Mourão Ferreira, autores das letras de várias canções de Amália.
A homenagem reconheceu esses artistas  como "expoentes da cultura popular da cidade e do país".

Deste modo torna-se anacrónia e espúria a suposta reabilitação antifassista agora operada.


Este jornal Sete, um veículo mediático da esquerda soft,  nunca deixou de acompanhar o percurso artístico de Amália.

Em Novembro desse mesmo ano de 1980 publicitou o disco de Amália então saído, "Gostava de ser quem era" ( o título diz tudo...) :



Uma das pessoas da crítica jornalística que se destacou na defesa de Amália foi Miguel Esteves Cardoso que começara a escrever no O Jornal e depois no Sete sobre música popular de expressão anglo-saxónica, no período pós-punk.

No Verão de 1980 comparava Amália aos intérpretes mais genuínos do Ska, algo absolutamente surreal:


Em 24 de Novembro no mesmo Sete, entrevistou Amália, assim:


Em 1 de Novembro ao mesmo Sete, Amália disse algo que hoje talvez nem fosse publicado:


Chega, por isso,  de revisionismos históricos...

Sem comentários:

O Público activista e relapso