sexta-feira, fevereiro 03, 2012

Ambrósio e a Justiça: algo lhe apetece.

Daqui:

A) 2000

I) A Quinta do Ambrósio foi vendida por 1,072 milhões de euros (cerca de 215 mil contos), em Novembro de 2000

II) Os terrenos da Quinta do Ambrósio estavam abrangidos pela RAN e como tal neles não se podia construir.

III) A vendedora foi representada no negócio pelo advogado Laureano Gonçalves

IV) Entre os compradores e a fazer fé nas declarações e pagamentos de sisas que posteriormente fizeram contavam-se o advogado da vendedora, Laureano Gonçalves, um dos filhos de Valentim Loureiro, então presidente da câmara de Gondomar, onde se localiza a Quinta do Ambrósio, e José Luís Oliveira então vice-presidente da Câmara de Gondomar

B) 2001

I) A Quinta do Ambrósio sai da RAN e foi vendida por quatro milhões de euros (800 mil contos)

II) O comprador era a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) que comprou o terreno para uma estação de recolha de autocarros que não chegou a ser construída.

C) 2012

O Tribunal de Gondomar absolveu hoje o presidente da Câmara local, Valentim Loureiro, que estava acusado por burla qualificada no âmbito de um processo relacionado com o negócio milionário da Quinta do Ambrósio. Segundo o colectivo de juízes, não se provou um alegado “esquema ardiloso” para ludibriar a dona dos terrenos. Ainda assim, o juiz-presidente disse que não lhe parecia “curial que a Câmara sirva de agência de mediação imobiliária”.

No âmbito do mesmo processo, o vice-presidente da Câmara, José Luís Oliveira, e o fiscalista Laureano Gonçalves foram igualmente absolvidos da acusação de burla qualificada, mas condenados por branqueamento de capitais, com referência a fraude fiscal simples, a um ano e dez meses de prisão, pena suspensa por igual período. (…) Igualmente condenados por branqueamento de capitais foram o filho de Valentim Loureiro, Jorge Loureiro (um ano e dez meses de prisão, pena suspensa), e o advogado António Ramos Neves (um ano e dez meses de prisão, pena suspensa). O Ministério Público dizia que o fiscalista Laureano Gonçalves obteve uma procuração irrevogável para negociar os terrenos da quinta, em troca de 1,072 milhões de euros, pagos através de cheque da ‘immerton’ uma sociedade offshore que teria sido constituída exclusivamente para este negócio. Pouco depois, mas ainda antes de os terrenos serem desafectados da Reserva Agrícola Nacional, a propriedade foi revendida à Sociedade de Transportes da Cidade do Porto por quatro milhões de euros. Ainda segundo o processo, Valentim Loureiro, o seu “vice” José Oliveira e Laureano Gonçalves teriam feito crer à dona da quinta que essa desafectação nunca se concretizaria, o que o tribunal não deu como provado.

Comentário:

O crime de burla assenta em pressupostos substantivos cuja realização por vezes se torna difícil comprovar e muito mais em julgamento. É essencial que se demonstre factualmente a existência de um artifício que leve alguém a ser enganado e prejudicado por isso. Obviamente um artifício prévio, um engenho para enganar e ludibriar, causando prejuízo.
Habitualmente o senso comum diz-nos algo sobres os artifícios e os enganos. Basicamente, se alguém se predispõe a comprar um terreno a outrém, por determinado valor, sabendo que é um valor relativamente baixo por conhecer uma qualidade do terreno que o valoriza e só o comprador o sabe, não há engano, necessariamente, que consista numa burla criminal.
Se alguém compra o mesmo terreno com o fito de o valorizar posteriormente e conta já com o apoio de um grupo de pessoas capazes de o fazerem, e que realmente o fazem, este engano provocado intencionalmente ao vendedor é do âmbito da burla criminal?
É este o problema em causa que aliás é o mesmo que o problema Duarte Lima. Aliás, neste caso, os elementos para a burla ainda são mais escassos.

Assim, se há um grupo de pessoas com poder e influência, directamente relacionados com os organismos competentes para alterar a qualificação de um terreno, passando-o de agrícola a urbanizável em dois tempos e organiza um negócio com esse fito em mente e que realiza, quem é que sai enganado após o negócio realizado?
Os vendedores? Só se o terreno viesse efectivamente a ser tornado urbanizável, também em dois tempos e independentemente da vontade daquele grupo. Portanto, no caso não me parece que tenham sido burlados.

Quem foi efectivamente burlado foi o erário público e a confiança nas instituições, porque o que se comprova no caso, mesmo sem sentença transitada em julgado, é que existiu um grupo, uma associação de indivíduos que se organizaram para realizar um negócio em que tomariam conta de um terreno agrícola, passando-o a urbano e revendendo-o por isso mesmo a entidades que também dominam e que assim pagaram o que de outro modo não pagariam.
O prejuízo é evidente e os ludibriados também: todos nós.

Sendo assim, espera-se que a sentença seja revogada pela Relação e eventualmente o STJ a confirme. Daqui a uns anos, mas menos do que antes costumava ser. É que esta justiça penal, ao contrário do que muitos pensam, não tem sido tão lenta quanto isso.

Valentim ganhou apenas uma batalha.
Neste caso, a Justiça pode muito bem dizer para o Ambrósio: "apetecia-me algo".

STA: quatro anos para isto!